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Ao nos debruçarmos com mais vagar sobre o instituto do melhor interesse da criança, podemos perceber que a definição de o que era melhor para a criança mudava à medida que se mudava a própria concepção da infância e do espaço que lhe competia na

acepção procedimental para revisar a decisão da justiça de origem. Cf. ALEGRE; HERNÁNDEZ; ROGER, op. cit., p. 26.

142 Como diz o autor, trata-se da leitura da “objetividade, a partir da subjetividade monológica da consciência

de si”. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate: o constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 26.

143 Sobre os riscos do isolacionismo judicial com enfoque para as tutelas de urgência da criança, cf. AMARAL,

Sasha Alves do; SOUZA NETO, Manoel Onofre de. A tutela de urgência e a criança e o adolescente: em defesa de uma atuação especializada e efetiva. Revista de Direito da Infância e Juventude, ano 1. n. 1. jan./jun. 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais/Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude.

sociedade – nem sempre, porém, numa linha contínua de progresso.144 Desse modo, da figura do infante – que, segundo a raiz latina da palavra, significa “que não fala”, “incapaz de falar”145 – para a da criança sujeito de direitos perpassa a humanidade por períodos cuja atitude vai desde negar aos mais novos um olhar de especificidade146, atravessa outros em se começa a ver no petiz interesses próprios, inda que atrelados ao de um adulto – seu pai ou mãe (com as doutrinas, respectivamente, do patria potestas e da tenra idade) – até a época atual em que a criança ganha posição de destaque na sociedade e no ordenamento jurídico, sendo credora de prioridade absoluta nas ações governamentais e sociais.que

Iniciou-se, então, uma tendência nas políticas voltadas à criança e ao adolescente que busca emancipá-los, libertando-os de práticas opressoras que lhes cassem, no espaço público ou privado, o direito de se expressar e participar. Tal visão, porém, acarreta uma série de desafios, na medida em que se observa que, sendo a família o primeiro espaço de socialização e proteção dos pequenos, a relação com os pais passa a ter uma especial relevância para as ações governamentais, restando os limites entre os assuntos públicos e privados cada vez mais tênues.

Tem sido cada vez mais frequente nos dias atuais o tensionamento do debate sobre os direitos da criança entre a sociedade e o Estado. No meio, põe-se o infante boquiaberto, ora à margem da discussão, ora com fala mimetizada pela de um adulto (não necessariamente seus pais, mas também por meio de agências governamentais ou privadas de proteção – o que faz nascer, segundo informa Théry (não sem crítica) o conceito de infância enquanto lobby147), mas poucas vezes com voz própria.

144 Nesse sentido, a pesquisa de Hugh Cunningham sobre a evolução histórica do conceito de criança na

Inglaterra, da Idade Média aos dias atuais. Em seus estudos, o autor britânico relata o fato de, apesar de a idade de responsabilização penal ser a de doze anos na Inglaterra medieval, foram encontrados registros do século XVIII – em pleno século do Iluminismo – dando conta do enforcamento de uma criança de sete anos pelo roubo de uma saia na cidade inglesa de Norwich. CUNNINGHAM, Hugh. The invention of childhood (ePub). Londres: BBC Books, 2006.

145 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio (Mobile) versão 2.0. São

Paulo: Positivo, 5. ed.

146 Nesse sentido, as obra de Neil Postman e Philip Ariès, autores que, no seus campos de estudo

(respectivamente, a Comunicação Social e a História) chegaram a conclusões semelhantes: até o final da Idade Média não havia qualquer concepção de desenvolvimento infantil e a criança era um ser invisível em tal sociedade. Tal realidade começa a mudar com a invenção da prensa tipográfica, a necessidade de se formar leitores e, então, a criação de uma instituição própria de repasse de conhecimentos não mais de uma forma oral, mas sistematizada. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Grafia, 2012. SARMENTO, Manoel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade. Disponível em: <http://cedic.iec.uminho.pt/textos_de_trabalho/textos/encruzilhadas.pdf>. Acesso em: 6 maio 2014.

Enfrentar tais dilemas implica adentrar em debate sinuoso, no qual a infância descortina-se como etapa da vida onde o dilema proteção versus emancipação faz-se presente de uma forma especial e cujo fiel inclina-se para um lado ou o outro a depender da ideologia de quem fala. Nesse contexto, a intervenção estatal – enquanto ação oriunda de um ente que busca a neutralidade do ponto de vista moral – enfrenta o desafio de responder à seguinte questão: afinal, a intervenção na família é no interesse de quem: da criança, dos seus pais, da sociedade, do governo ou de um modismo?

Nos próximos capítulos, trataremos dessa discussão pelo prisma tanto dos pais, procurando entender as origens, o alcance e as aplicações no Brasil da teoria constitucional do poder familiar – desenvolvida de forma mais proeminente nos Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX –, como também pela perspectiva da criança e do adolescente, momento em que analisaremos a influência que o movimento europeu em prol dos direitos da criança teve (e ainda tem) no Brasil.

Para isso, tomaremos como mote de discussão, no capítulo sexto, um tema da atualidade do direito da criança e do adolescente – o polêmico instituto da adoção intuitu personae – que bem ilustram o tensionamento do binômio proteção-liberdade da criança a fim de que, ao final, possamos refletir sobre a seguinte questão: até onde, de que forma e com que fundamentos pode o Estado intervir na família em nome da proteção e emancipação de um ser que é naturalmente dependente dos seus pais?

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