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Como visto anteriormente,56 o melhor interesse teve na sua gênese um olhar de proteção à criança, não propriamente de sua liberdade – vista aqui como emancipação –, pois, diferentemente do que ocorrera com os movimentos feministas do início dos séculos XIX e XX, não se poderia falar propriamente em liberação de um ser que é essencialmente dependente de seus cuidadores.

E foi assim que, espelhando uma construção teórica de índole protetiva, o parâmetro do melhor interesse da criança ganhou expressão mundial no início do século XX. Com as experiências tormentosas da I Guerra Mundial – sobretudo para o público infantojuvenil, mais vulnerável –, em 1924, a Liga das Nações adotou o primeiro documento internacional de proteção à infância, a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança ou, simplesmente, Carta de Genebra.57

Fruto do trabalho da inglesa Englantyne Jebb à frente da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children Internacional Union), o documento continha cinco princípios de proteção, voltados a salvaguardar os interesses dos petizes, notadamente em contextos de guerras ou calamidades. Entretanto, em decorrência das fragilidades socioeconômicas oriundas da Grande Depressão, em 1929, sucedida essa pela segunda grande guerra do século XX, a Declaração de 1924 teve o mesmo fim que os demais trabalhos sociais da Liga das Nações: perdeu força e feneceu.58

Posteriormente, com o fim dos horrores advindos da II Guerra Mundial, seu nefasto legado de regimes totalitários e genocídios, ganhou força o pensamento humanista de matiz kantiana, cuja motriz axiológica era fornecida pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Tratava-se do movimento de internacionalização dos direitos humanos, cuja etapa inicial foi inaugurada com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, seguida da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. 59

56 Item 2.2, ao tratarmos do caso Commonwealth v. Wales Briggs, de 1834.

57 GENEVA Declaration of the Rights of the Child (1924). Disponível em: <http://www.unicef.org/vietnam/01_-

_Declaration_of_Geneva_1924.PDF>. Acesso em: 27 jun. 2016.

58 Nesse sentido, COCKBURN, op. cit., p. 166.

59 Nesse sentido, a lição colhida em José Carlos Viera de Andrade: “Embora já no tempo da Sociedade das

Nações se tivesse revelado a necessidade de garantir internacionalmente certo direitos (fundamentais) de grupos minoritários, religiosos, culturais ou rácicos, foi durante a II Guerra Mundial que se sentiu de modo particularmente intenso a necessidade de criar, ao nível da comunidade internacional, mecanismos jurídicos capazes de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos nos diversos Estados. A experiência da guerra e dos totalitarismos, sobretudo num momento em que se anunciava uma nova ordem social e já não é possível condenar à abstenção o Estado – definitivamente consagrado administrador da sociedade –, impôs que se

A segunda etapa do movimento de internacionalização dos direitos humanos foi a de elaboração de tratados específicos que levassem em conta a tipologia dos direitos envolvidos – tal como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos60 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,61 ambos de 1966 – ou grupos específicos de titulares de direitos, tais como a criança, a mulher,62 e mais recentemente, as pessoas com deficiência.63

Nessa segunda fase, a construção dos direitos partiu então de um núcleo genérico para se desdobrar em especificações, conforme as necessidades especiais dos seus titulares.64 A noção de direitos, outrora assentada sobre uma concepção estática, herdeira de uma tradição jusnaturalista do século XVII – na qual, supunha-se, os direitos descobririam-se de forma autoevidente –, começou a adquirir, com os movimentos sociais dos séculos XIX e XX, uma perspectiva evolutiva.65

No cenário pós-II Guerra, as crianças ganham destaque, ao se lhes conceber uma segunda declaração de direitos, proclamada pela ONU em 1959, em que foram estabelecidos dez princípios atinentes à infância – o dobro, portanto, dos que constavam da Carta de

aproveitassem os laços internacionais, entretanto criados, para declarar um certo núcleo fundamental de direitos internacionais do homem”. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004. p. 25; 26.

60 BRASIL. Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos. Promulgação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- 1994/d0592.htm>. Acesso em: 27 jun. 2016.

61 BRASIL. Decreto 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação.Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- 1994/D0591.htm>. Acesso em: 27 jun. 2016.

62 Nesse sentido, BRASIL. Decreto 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de

20 de março de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm>. Acesso: 27 jun. 2016.

63 Nesse sentido, BRASIL. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre

os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso: 27 jun 2016.

64 Na visão de Norberto Bobbio, “Essa multiplicação (ia dizendo “proliferação”) ocorreu de três modos: a)

porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. Em substância: mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo. É supérfluo notar que, entre esses três processos, existem relações de interdependência: o reconhecimento de novos direitos de (onde “de” indica o sujeito) implica quase sempre o aumento de direitos a (onde “a” indica o objeto). Ainda mais supérfluo é observar, o que importa para nossos fins, que todas as três causas dessa multiplicação cada vez mais acelerada dos direitos do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e explícito, a necessidade de fazer referência a um contexto social determinado”. BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. 19. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992. p. 68.

Genebra.66 Percebe-se, no documento de 1959, a preocupação em se veicularem mais direitos para as crianças e mais crianças para o direito: a Declaração referia-se agora não apenas aos petizes que vivessem em cenários conflagrados ou calamitosos, mas também em contextos de normalidade cívica. Assim, a par de sua feição clássica, o direito à proteção recebe outras acepções tais como

 o direito à previdência social, com os respectivos cuidados de saúde pré e

pós-natal ao bebê e sua mãe (princípio 4);

 o direito à educação é adensado, mediante a previsão de ensino público

gratuito e obrigatório pelo menos durante o primeiro grau (princípio 7);

 uma idade mínima para o trabalho, em condições que não prejudiquem a

saúde ou educação do petiz (princípio 9);

 o direito à convivência familiar (princípio 6); dentre outros aspectos

inovadores com relação à Declaração de 1924.

No que se refere ao princípio do melhor interesse da criança, vê-se que o instituto faz-se presente na Declaração de 1959 em dois momentos: o primeiro, na sua acepção de origem, relativa à Tender Years Doctrine;67 o segundo, de forma expressa, quando se lhe atribui uma função-diretriz na relação dos adultos com o petizes, tanto no espaço público (especialmente no que se refere à atividade legiferante) como no privado, mediante expressa referência aos pais.68

Porém, apesar da evolução que a Declaração de 1959 representou para a infância – na medida em que adensara o conteúdo dos seus direitos com relação à Carta de 1924 –, algumas lacunas permaneciam abertas na proteção jurídica dos pequenos, gerando críticas e insatisfações. A primeira e principal delas dizia respeito ao fato de a Declaração não ser um

66 DECLARATION of the Rights of the Child. Proclaimed by General Assembly Resolution 1386 (XIV) of 20

november 1959. This was the basis of the basis of the Convention of the Rights of the Child adopted by the UN General Assembly 30 years later on 20 November 1989. The Convention on the Rights of the Child was entered into force on 2 september 1990. Disponível em: <http://www.unicef.org/malaysia/1959-Declaration- of-the-Rights-of-the-Child.pdf.>. Acesso em: 29 mar. 2016.

67 Trecho do Princípio 6 da Declaração de 1959: “A criança de tenra idade não deverá, salvo circunstâncias

excepcionais, ser separada de sua mãe”. No original: “A child of tender years shall not, save in exceptional circumstances, be separated from his mother”. DECLARATION of the Rights of the Child...

68 Nesse sentido, assim dispunha a Declaração de 1959: “A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão

proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança” (princípio 2). (Grifo nosso). Por sua vez, quanto ao espaço privado, o princípio 7 assim dispunha: “Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais”. DECLARATION of the Rights of the Child...

documento de conteúdo vinculante, mas, antes, ter um apelo mais ético do que propriamente jurídico (soft law).69

Nesse sentido, o próprio preâmbulo da Carta de 1959 apelava – literalmente – “a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de indivíduos, e as organizações voluntárias, as autoridades locais e os governos nacionais reconhecessem os direitos ali constantes e se empenhassem pela sua observância através de medidas legislativas e de outra natureza, a serem progressivamente adotadas”.70 Sintomático era, pois, o fato de a Declaração de 1959 não conter qualquer mecanismo de monitoramento do grau de implementação dos direitos ali previstos junto aos países integrantes das Nações Unidas, o que terminava por fragilizar qualquer pretensão de coercibilidade de suas normas.

A segunda crítica referia-se ao fato de a Declaração de 1959, sendo um reflexo do estado de discussão vigente à época, só ter privilegiado aspectos relativos à proteção e ao bem-estar dos mais novos, tendo, entretanto, silenciado quanto aos direitos voltados ao seu empoderamento e à conquista da autonomia – a qual, inda que somente plena no futuro, deveria, para tanto, abranger atualmente categorias como direitos civis e políticos.71

Tais insatisfações fizeram com que, a partir da década de 1960, tivesse início um movimento pelo qual a criança seria vista como uma específica categoria de sujeitos de direito, para a qual se fazia necessária a construção de uma sistemática jurídica própria, em que seus interesses fossem capazes não só de se desatrelar do dos adultos, mas também de vinculá-los. Crescia uma consciência de direitos da criança em nível internacional.72

Essa tendência ganhou corpo em 1979, quando as Nações Unidas, em comemoração ao 20º aniversário da Declaração dos Direitos da Criança de 1959, proclamaram o ano

69 Cf. ALSTON, Philip; TOBIN, John. Laying the foundations for children´s rights: an independent study of

some key and institutional aspects of the impact of the Convention on the Rights of the Children. Florence: United Nations Children´s Fund (UNICEF), 2005. p. 3-8.

70 “Call upon” é a expressão constante do original em inglês da Declaração de 1959 na chamada aos atores

públicos e privados para reconhecerem os direitos constantes daquele documento. Segundo o dicionário Michaelis, call upon significa “recorrer a”, “apelar para”, “rogar a”, o que demonstra, de fato, o conteúdo mais ético do que propriamente jurídico desse documento. WEISZFLOG. Walter. Michaelis Moderno Dicionário de Português e Inglês. Versão 2.3, edição para iPad. Melhoramentos: São Paulo, 2015. No original: “The General Assembly Proclaims this Declaration of the Rights of the Child to the end that he may have a happy childhood and enjoy for his own good and for the good of society the rights and freedoms herein set forth, and calls upon parents, upon men and women as individuals, and upon voluntary organizations, local authorities and national Governments to recognize these rights and strive for their observance by legislative and other measures progressively taken in accordance with the following principles”. DECLARATION of the Rights of the Child...

71 Nesse sentido, ALSTON, Philip; TOBIN, John. Laying the foundations for children´s rights: an

independent study of some key and institutional aspects of the impact of the Convention on the Rights of the Children. Florence: United Nations Children´s Fund (UNICEF), 2005. p. 5; 6.

Internacional da Criança. Na ocasião, o governo da Polônia, aproveitando a abertura na agenda da ONU, apresentou uma moção visando a incorporar aos instrumentos internacionais de direitos humanos um tratado sobre os direitos da criança com caráter vinculante, o que representaria um avanço com relação à carta de 1959.73 Iniciava-se, então, um decênio de franco debate, que, em 1989, culminaria com a proclamação da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, hoje em vigor.

2.6 A PROCLAMAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: O

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