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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INFANTIL: ENTRE A AUTONOMIA E A PROTEÇÃO DA CRIANÇA

4 AUTONOMIA E DIGNIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INFANTIL: ENTRE A AUTONOMIA E A PROTEÇÃO DA CRIANÇA

A criança é um ser livre, porém, como proteção mesmo de sua liberdade, está sujeita a um poder alheio – o poder parental. Sendo assim, a observância da dignidade infantil reclama tanto uma dimensão individual (autonomia), como também relacional (heteronomia). A liberdade infantil perfaz-se, sobretudo, nos primeiros anos de vida, por meio do cuidado, da proteção e orientação que os pais fornecem aos seus filhos. Assim, tanto as referências para si como para o outro dão à dignidade dos petizes um sentido próprio, compatível com a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, nos termos do art. 6º, in fine, do ECA.

O art. 5º da Convenção sobre os Direitos da Criança, ao dispor que os Estados Partes haverão de respeitar os direitos e deveres dos pais ou responsáveis de proporcionar à criança a instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução da capacidade dos mais novos para o exercício de seus direitos, é complementado com a segunda parte do art. 18 do mesmo tratado, que diz caber aos pais ou, conforme o caso, aos representantes legais, “a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança”. Trata-se da dimensão heterônoma da dignidade, que, nesse ponto, é destacada na CDC.

Porém, da mesma forma que a CDC dá guarida à concepção da dignidade para os outros da criança – no caso, os seus pais ou responsáveis –, o documento também coloca como contraponto a essa dimensão comunitária a noção de que a criança tem direitos que lhe são próprios (art. 5, parte final) e o seu melhor interesse – que, como visto no item 2.7.2, é na CDC um princípio garantista, ou seja, referente a um catálogo de direitos – será a preocupação fundamental dos pais (art. 18, in fine).

De igual modo, pelo prisma dos pais, a definição do que consiste a sua responsabilidade (art. 5 da CDC) – ou seja, o seu poder parental – não é aclarada na Convenção, mas, como apontam os supracitados arts. 5 e 18, o conceito de responsabilidade é

contrabalançado pelo direito de seus filhos323 – o que mais ainda reforça a ideia de um poder familiar recíproco, tal qual defendido no capítulo anterior deste estudo. Vê-se, portanto, que, no direito de família, a autonomia de pais e filhos é sempre associada à heteronomia, respectivamente, de filhos e pais.

Os próprios teóricos do direito constitucional esforçam-se em corrigir eventuais concepções extremistas das filosofias kantiana e hegeliana, aproximando-as. Assim, Barroso informa haver na filosofia kantiana uma dimensão comunitária, pois o imperativo categórico aponta, em todas as suas formulações, para a vivência social: como derivação da sua racionalidade, o homem, ao construir as máximas que regem suas condutas, está obrigado a considerar o direito do seu semelhante.324 Só após a validação intersubjetiva da conduta, a máxima moral325 do indivíduo poder-se-á fazer universal. Esse o motivo por que a moral kantiana é identificada como procedimental326, o que aponta para seu aspecto comunitário.

Por sua vez, no que se refere à filosofia hegeliana, Kurt Seelman aduz que o aspecto heterônomo ali conferido à dignidade humana não nega a ideia de autonomia, antes, pelo contrário, parte justamente da ideia kantiana de autorreferência para, após, abraçar a concepção comunitária com vistas a colocar a dimensão subjetiva protegida, por meio das normas jurídicas, do estado de servidão oriundo da mediação entre os homens.327 A filosofia hegeliana, portanto, não impede que o ser humano seja reconhecido de forma independente a suas relações sociais, mas teria tal assertiva como pressuposto.

No direito da criança, a vantagem de se visualizar a dignidade enquanto autonomia –

323 Nesse sentido, HODGKIN, Rachel; NEWELL, Peter. Implementation handbook for the Convention on

the Rights of the Child. Genebra: UNICEF, 2007. p. 76.

324 BARROSO, op. cit. Aqui, uma nota se faz necessária. Parece-nos que o esclarecimento de Barroso não quer

apontar que haja na filosofia kantiana uma dimensão comunitarista, mas sim comunitária. Tais conceitos não são equivalentes. Assim, nos parece que o juscientista carioca quer se referir à dimensão procedimental da filosofia kantiana, da qual tratamos neste parágrafo. Assim, as normas morais, éticas e jurídicas, na filosofia de Kant, sempre levam em consideração o respeito ao outro sujeito moral, enquanto ser dotado da mesma racionalidade – e, portanto, dignidade –, que o ser formulador das máximas do imperativo categórico. Isso não equivale a afirmar que haja na filosofia kantiana uma dimensão comunitarista, pois isso efetivamente não seria possível já que o comunitarismo, enquanto corrente filosófica, permite a adoção de uma “concepção moral vigorosa”, a ponto de suplantar a dimensão subjetiva das decisões humanas. Como afirma Gargarella, ao traçar um paralelo entre o comunitarismo e o republicanismo – que não adota uma concepção moral forte, mas atrelada a certos valores “institucionalmente circunscritos”: “O comunitarismo, em contrapartida, não se mantém indiferente àquelas áreas da moral: as escolhas mais intimamente vinculadas com minha vida privada podem ser, em princípio, aceitáveis ou reprováveis, de acordo com o mundo moral onde estou inserido”. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução: Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 209.

325 Como visto no tópico anterior deste capítulo, a moralidade de Kant se refere tanto à ética como ao direito e

propende, a partir do imperativo categórico, para a universalidade.

326 TERRA, op. cit.

327 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, Ingo Wolgang

(Coord). Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 112 e 113.

dignidade para si – afigura-se na adoção da fórmula-objeto, a qual desafia as posturas que tão somente olham para os petizes como objetos de tutela. Foi a instrumentalização da criança e do adolescente que fez com que eles, sob o primado de um suposto melhor interesse seu, sofressem intervenções judiciais sem maiores questionamentos ou necessidades de justificações. Prender para proteger era a máxima menorista por meio da qual se afastavam crianças e adolescentes de suas famílias de origen, sem qualquer processo judicial do tipo contencioso e dentro de uma política governamental de cunho higienista. Tais eram os riscos inerentes que a objetificação dos mais novos – inda que para lhes fazer um suposto bem – acarretava para os seus direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir e a convivência familiar e comunitária.

Por outro lado, a dignidade enquanto heteronomia é uma dimensão não só necessária, mas também inescapável ao ser humano infantil, credor que é de cuidados por parte de seus genitores. Se a pessoa adulta é um ser que se desenvolve na coletividade – a qual ora lhe fornece um ponto, ora um contraponto à formação da identidade –, com maior ênfase tal evocação diz respeito à criança e ao adolescente: seu processo de desenvolvimento encontra, na dependência de seus familiares e do meio social em que estão inseridos, a garantia de seus direitos fundamentais e, nessa medida, de sua dignidade.

Mais do que se excluírem, as dimensões individual e comunitária da dignidade fornecem, pela sua soma, uma melhor posição para a análise do raio de liberdade da criança relacionada com a liberdade parental a que se encontra sujeita. Aqui, a lógica é a mesma da teoria geracional dos direitos fundamentais: cada acepção, ao invés de suplantar a anterior, mais a potencializa, trazendo-lhe novas percepções, tal como ocorreu com o direito de propriedade, primeiramente um típico direito liberal, depois ganhando uma feição social e, por fim, ambiental.

Contudo, se a dignidade da pessoa humana infantil aponta para harmonia entre os conceitos de dignidade para si e para o outro, por outro lado, nem sempre essa composição é fácil de ser equacionada na prática.

Desde temas frugais do cotidiano familiar até uma dimensão política dos direitos da personalidade, a tensão entre a proteção e a autonomia da infância se estabelece: uma menina de três anos pode escolher a roupa com que quer sair de casa (mesmo estando a indumentária, na opinião de seus pais, em total descompasso imagético)?; Um petiz de dois anos pode optar por não comer na hora do jantar frutas e legumes (escolhendo, em vez disso, balas e doces)?; Um garoto de dez anos pode decidir, contra a vontade dos seus responsáveis, fazer aulas de dança contemporânea, e não de karatê?; A regulamentação da propaganda comercial para a

criança e o adolescente viola a liberdade deles enquanto consumidores?328; Uma moça de treze anos tem o direito de namorar e se relacionar – inclusive sexualmente – com um jovem adulto de dezoito sem que isso configure o crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal?; Um rapaz de dezessete anos pode decidir mudar de sexo mesmo sem o consentimento de seus genitores?329 Considerando que a Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece em seu art. 15.1 o direito da criança “à liberdade de associação e à liberdade de realizar reuniões pacíficas”, o adolescente tem o direito de participar de protestos de rua contra o governo mesmo contra a vontade de seus guardiões?

A resposta a tais questões aponta para um tensionamento que importa em duas leituras da Convenção sobre os Direitos da Criança. Aos que buscam liberar crianças e adolescentes das amarras sociais a que estão sujeitas por laços jurídicos, Irène Théry denomina-os como “Children´s Liberationists”. Para esses, segundo a autora, “longe de serem direitos específicos, os ‘direitos da criança’ são, ao contrário, direitos desespecificados”.330 Aqui, a luta é por igualar o direito da criança aos do mundo adulto. Em outro giro, uma segunda leitura das normas do direito da criança contempla aos mais novos direitos específicos, compatíveis com sua proteção diferenciada: os direitos da menoridade. Essa proteção diferenciada decorre da não-autonomia da criança, sendo que sua incapacidade jurídica nada mais é do que “o direito à irresponsabilidade, isto é, o direito a não ser submetido aos deveres que a capacidade implica”.331

Equacionar as questões relativas aos direitos da menoridade (direitos na dependência) e direitos de liberdade (direitos à independência) é tarefa tormentosa para a ciência jurídica, sobretudo quando se percebe que a voz da criança é passível de ser manipulada por parte de um adulto – e isso, tanto numa dimensão individual, quando o petiz está sujeito ao poder parental, como também coletiva, momento em que a “criança” é

328 Atualmente, essa questão se encontra posta em discussão no Brasil através da Resolução 163, de 13 de março

de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Cf. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução 163, de 13 de março de 2014. Dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.

Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=4&data=04/04/2014>. Acesso em: 5 jul. 2015.

329 Essa discussão, da permissividade da mudança de sexo por adolescentes mesmo diante de discordância dos

pais, foi posta recentemente no Brasil, através do PL 5.002/13, de autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, o chamado “PL da identidade de gênero” ou “Lei João W. Nery”, o qual “Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973”. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1059446&filename=PL+5002/2 013>. Acesso em: 28 nov. 2014.

330 THÉRY, op. cit., p. 139. 331 Ibid., p. 138.

visualizada enquanto categoria e é pauta de uma agência adulta – porém não necessariamente vinculada aos anseios infantis.332

Uma resposta capaz de enfrentar o tensionamento proteção versus autonomia da infância deve, portanto, analisar, de um lado, a extensão do poder parental – o que fizemos no capítulo anterior –, como também, do outro, o conteúdo dos direitos enfeixados sob a condição de sujeitos de direito da criança e do adolescente.

4.2 A AUTONOMIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM QUESTÃO

Discorrendo sobre o lugar que cabe à criança no mundo contemporâneo, Clarice Cohn compara o ser infantil a um fotograma em negativo do mundo adulto.333 Não raramente, a imagem do petiz põe-se socialmente como um contraponto à cultura adulta, ora como encantamento – onde se recita a pureza dos mais novos – ora como interdito – quando os infantes são vistos como seres irracionais e passíveis de orientação e disciplina. A relação que daí se estabelece é a de uma imagem não-autônoma da infância, mas, pelo contrário, sempre associada ao universo adulto, quer para lhe servir de escapismo aos dramas cotidianos, quer para ter nos maiores o modelo de racionalidade futura.

Porém, desde o início do século XX, quando os estudos de Sigmund Freud ressaltaram a dimensão subjetiva – portanto, ativa – do petiz já em sua primeira infância334, passando pelos ensinos de Piaget e Vygostsky sobre a intervenção que a criança faz sobre o mundo ao seu redor para ressignificá-lo335, a imagem do infante, como ser passivo, foi minguando em prol de uma percepção que lhe atribui uma postura protagonista perante o mundo que se lhe descortina.

Tais pesquisas engendraram uma mudança cultural sobre o que é infância ao longo do século XX. De categoria inespecificada dos tempos remotos, perdida entre os adultos,336 aos mais novos foram conferidos espaço e voz próprios na sociedade contemporânea, o que leva Maria Luiza Belloni a afirmar:

332 Por esse motivo, Théry critica o conceito de infância enquanto lobby. THÉRY, op. cit., p. 135-161. 333 COHN, Clarice. Antropologia da criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 7 e 8.

334 Nesse sentido, ZORNIG, Silvia Maria Abu-Jamra. As teorias sexuais infantis na atualidade: algumas

reflexões. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n1/v13n1a08.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2016.

335 ANTUNES, Celso. Piaget, Vigotsky, Paulo Freire e Maria Montessori em minha sala de aula. São

Paulo: Ciranda Cultural, 2008.

As transformações relativas à infância estão entre as mais significativas mudanças socioculturais ocorridas ao final do século XX: mudaram os valores, as representações e os papeis atribuídos às crianças nas sociedades ocidentais. Doravante, a criança é reconhecida como um valor em si, no presente, não mais como uma promessa para o futuro (da nação, da família): a criança é desejada, amada, protegida, consultada.337

Assim, o pensamento de muitos teóricos das ciências sociais foi convergindo para atribuir ao ser infantil uma diferença para com o mundo adulto que não é de ordem cognitiva, mas qualitativa: a criança não sabe menos com relação aos maiores, sabe outra coisa.338

Quanto ao direito, sendo um campo do saber que não só é referido a um determinado contexto social, mas também influenciado por ele339 – cujas leis são uma das formas de expressão cultural de um povo –, tais pesquisas tiveram considerável impacto sobre a ciência jurídica, sobretudo a partir da década de 1960, quando se buscou aperfeiçoar a normativa internacional em vigor para a infância.340

A proclamação pela Organização das Nações Unidas, em 1989, da Convenção sobre os Direitos da Criança representou, para o direito, o auge da tendência científica e cultural de atribuir uma identidade própria à criança na sociedade. Como corolário, no campo das normas jurídicas, a criança341 se posta na qualidade de sujeito de direitos, com pretensões que vão para além dos clássicos e já reconhecidos direitos de proteção e provisão, mas agora engloba também os de natureza participativa. Isso implica uma nova postura ética para com a criança, que demanda dos adultos que se lhes considere a voz própria nos assuntos relacionados ao petiz342 – o que, portanto, pode levar a uma eventual e potencial distensão na relação paterno- filial.343

Este novo referencial para a infância – relativo a sujeitos de direitos – vai além do conceito civilista da simples titularidade jurídica, pois, enquanto essa segunda dimensão

337 BELLONI, Maria Luiza. O que é sociologia da infância. Campinas: Autores Associados, 2009, p. VII. 338 Nesse sentido, COHN, op. cit., p. 33 - 36.

339 Cf. MARQUES NETO, Cícero Ramalho. A ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001.

340 Sobre esse movimento de reformulação da legislação internacional para a infância, que culminou com a

proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, de 1989, vide itens 2.5 e 2.6 desta pesquisa.

341 Na CDC, o conceito de criança abrange o de adolescente. Nos termos do artigo 1 do tratado, “Para efeitos da

presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

342 Nesse sentido, por exemplo, os arts. 12, 13, 14 e 15 da CDC consagram ao petiz as liberdades de expressão,

de pensamento, de consciência, de crença e de associação.

343 Daí porque a associação norte-americana em defesa do ensino doméstico (Home School Legal Defense

Association) referiu-se à Convenção como “o mais perigoso ataque aos direitos dos pais na história dos Estados Unidos”. Cf. KLICKA, Christopher J.; ESTRADA, William A. The UN Convention on the Rights of the Child: the most dangerous attack on parental rights in the history of the United States. Disponível em: http://nche.hslda.org/cap/un_treaty_31607.pdf. Acesso em: 1º mar. 2016.

contenta-se com a expressão da voz dos incapazes pela de seus representantes legais – nos termos do art. 1.634, VII, do Código Civil –, na primeira, os que lidam com a criança – na Justiça ou fora dela – devem-se esforçar para desenvolver metodologias que busquem alcançar diretamente os anseios dos mais novos, tal qual estabelecem os princípios da “condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos” e da “oitiva obrigatória e participação”, positivados no ECA, art. 100, parágrafo único, respectivamente, I e XII.

Portanto, o atual marco legislativo global, além de levar a uma nova estrutura para o princípio do melhor interesse da criança – desatrelando-o do prisma subjetivo adultocêntrico344 –, também importou em uma nova epistemologia para a teoria dos direitos

da criança. Como visto no item 3.4, nos Estados Unidos dos séculos XIX e XX, a teoria constitucional dos direitos da criança veiculou para os mais novos a tese da impaired choice (escolha debilitada) – pela qual se negava a condição de agente ao petiz em virtude da sua vulnerabilidade para decidir autonomamente (as crianças tinham direitos na dependência). Por sua vez, no Brasil, tal qual ocorrera com relação aos direitos parentais, a problemática da titularidade de direitos da criança foi relegada historicamente à tradição civilista, na qual não se aprofundaram maiores reflexões em torno da liberdade e da autonomia dos mais novos, mas contentava-se a doutrina com a teoria das incapacidades e o suprimento da vontade débil do petiz pela racionalidade de seu representante legal.

Porém, a partir da década de 1990, com a vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança, um olhar europeizado345 estabeleceu um novo paradigma para os debates jurídicos em torno da criança e do adolescente entre nós. As políticas de proteção e promoção dos direitos dos petizes passaram então a se desenvolver sob um prisma binário: a tutela jurídica dos mais novos demanda tanto a atenção à sua atual condição de menoridade, como também à sua futura perspectiva de cidadãos autônomos.

Esse novo olhar para a infância importa na substituição da fundamentação teórica que conferia aos petizes um status menor na ordem constitucional, a partir do qual a leitura de seus direitos fundamentais desenvolvia-se com referência constante ao seu estado de

344 Cf. item 2.6.

345 Defendendo a influência do pensamento europeu para o movimento de internacionalização do direito da

criança, cf. GRAHN-FARLEY, Maria. Neutral law and eurocentric lawmaking: a postcolonial analysis of the U.N. Convention on the Rights of the Child. In: Brooklyn Journal of International Law. v. 34, n.1. Nova Iorque: Brooklyn Law School, 2008, e COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. p. 160.

vulnerabilidade e, portanto, sempre subjugados à liberdade de seus pais.346 A tutela da criança era defendida e promovida pelo viés dos adultos-postulantes sob o olhar do adulto-julgador.

Passa-se, então, a questionar a compatibilidade da teoria da escolha imperfeita (impaired choice theory) para uma leitura constitucional atualizada dos direitos da criança. Sob o viés da Doutrina da Proteção Integral e do seu corolário referente ao status de sujeito de direitos auferido pelos mais novos, propugna-se a superação do modelo anterior centrado na racionalidade.

Critica-se, em primeiro lugar, o fato de a tese da escolha débil fundamentar-se excessivamente sobre o ideal iluminista de centralidade da razão para, então, construir toda a sua teoria do direito, dando, porém, pouco espaço aos aspectos não-cognitivos que uma

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