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2.4 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO CRITÉRIO PERMISSIVO PARA A INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA: A DOUTRINA DO PARENS PATRIAE

2.4.1 O Menorismo no Brasil

O Brasil, ainda que com uma tradição político e institucional bem distinta da dos Estados Unidos – cujas diferenças remontam desde os tempos coloniais, no qual os dois países viveram modelos distintos de colonização (do tipo exploratório, no primeiro; de povoamento, no segundo) –, presenciou na sua história para com a criança e o adolescente a aparição de um movimento, denominado Menorismo, com fortes semelhanças ao que viveram os Estados Unidos do início do século XX.

46 Tradução livre. No original: “American family law was not easily reducible to a set of clear and certain

propositions. It was an amalgam of complex, often contradictory policies devised amid shifting concerns to govern every aspect of family life from courtship to probate”. GROSSBERG, op. cit., p. 287;288.

47 Nesse sentido, cf. a página da Universidade de Oregon sobre a história da adoção nos Estados Unidos.

Disponível em: <http://pages.uoregon.edu/adoption/timeline.html>. Acesso em: 26 mar. 2016.

48 Noblet e Reardon informam que, a partir dos anos 1960 – quando os estados americanos começaram a admitir

os divórcios sem culpa (no-fault divorce) –, verificou-se um elevado incremento nas taxas de divórcio na família americana. A intervenção do Estado no lar então atingiu seu grau máximo. Não mais, porém, por conta da pobreza ou da hipossuficiência de uma das partes, mas sim porque os agentes públicos eram chamados a decidir os rumos familiares. Segundo os autores, uma criança nascida em 1990, nos EUA, teria aproximadamente 50% de chance de terminar em numa corte de justiça para que se decidisse onde e com quem ela viveria dali pra frente. REARDON; NOBLET, op. cit., p. 100.

As proximidades entre os modelos brasileiro e norte-americano davam-se notadamente no que se refere à forma de controle judicial das famílias carentes e dos jovens marginalizados. Mesmo não sendo o escopo deste trabalho estudar as origens e as influências ainda hoje exercidas entre nós pelo Menorismo,49 é interessante, inda que brevemente, cotejá- lo com o direito estadunidense e verificar o papel que o princípio do melhor interesse desempenhou entre nós para a elaboração de uma teoria da decisão judicial no direito da criança e do adolescente.

O Menorismo ganhou expressão jurídica no Brasil com o Código Mello Mattos, de 1927,50 e posteriormente com o Código de Menores, de 1979.51 Tratava-se de uma corrente do

direito desenvolvida sob o aporte teórico da Doutrina da Situação Irregular, por meio da qual a marginalização social gestada ainda nos tempos escravagistas institucionalizou-se no ordenamento jurídico pátrio. Viviam os infantes brasileiros debaixo de um fosso legislativo que separava as crianças de classes abastadas das oriundas de famílias carentes: para as do primeiro grupo, o Código Civil; para as do segundo, o Código de Menores.52 Nos arquétipos sociais, consolidou-se a figura do menor, ser em desenvolvimento e à margem da sociedade, passível de vigilância e correção.53

Apesar de o Código de Menores prever em seu artigo primeiro “medidas preventivas” para “todo menor de dezoito anos, independente de sua situação”, ao se analisar acuradamente essa lei, percebe-se que ali não se positivava nenhuma medida com tal característica, mas tão somente paliativos. Sobretudo, não havia nesse diploma o que seria o instituto de prevenção por excelência em uma democracia: um rol de direitos consagrados no

49 Para o aprofundamento do estudo sobre o Menorismo, sua relação com o movimento Save The Children, suas

raízes e influências no Brasil, cf. RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011.

50 BRASIL. Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção a

menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d17943a.htm>. Acesso em: 27 jun. 2016.

51 BRASIL. Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979...

52 Já em seu art. 1º, I, o Código de Menores destacava seu público alvo: “Art. 1º Este Código dispõe sobre

assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular”.

53 Sobre a construção social e jurídica em torno do conceito de menor, assim ministra Ângela Pinheiro: “Até o

início do século XX, o termo ‘menor’ utilizado, no Brasil, no plano jurídico, para fazer referência a quem não havia atingido a maioridade. É com a formulação de uma legislação específica para os menores de idade, o Código de Menores de 1927, que a nominação ‘menor’ é institucionalizada, consagrando-se como uma classificação com forte teor discriminatório. Refere-se basicamente à infância e à adolescência pobres, enquadrando os seus integrantes em uma das seguintes subcategorias: carente, abandonado ou infrator. ‘Menor’ é, portanto, um conceito institucionalizado a partir de uma lei, o Código de Menores, e que institui exclusões e práticas jurídicas, por meio da criação de instituições e da formulação de políticas públicas”. PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: por que o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Editora da UFC, 2006. p. 70.

ordenamento jurídico. Dessarte, diferentemente do que faz atualmente o ECA – que nos seus arts. 7º ao 69 trata de concretizar o catálogo de direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição Federal –, o Código de Menores não trazia um elenco de direitos voltados ao público infantojuvenil em sua especificidade. Como agravante, na Lei 6.697/79 não havia diferença ontológica entre as medidas de proteção e as sanções de natureza penal ali previstas: as duas categorias recebiam a mesma natureza, de suposta “assistência e proteção”.54

Pela sistemática menorista, medidas tão drásticas como o afastamento de uma criança do lar ou a prisão de um adolescente poderiam ser vistas menos como uma intervenção estatal na liberdade do infante, a ser devidamente justificada, do que como um favor do Estado em prol de uma juventude desvalida. As garantias processuais e o contraditório minguavam sob a lógica da benemerência num processo de suposta jurisdição voluntária, por meio do qual muitas crianças eram afastadas arbitrariamente de seu meio.55

Na sistemática menorista, a ferramenta metodológica de que se valia o juiz para elaborar suas decisões era o melhor interesse da criança. Dessarte, assim prescrevia o art. 5º da Lei 6.679/79: “Na aplicação desta Lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado”.

Como se vê, o interesse não necessariamente equivaleria a bens juridicamente tutelados, o que terminava por privilegiar juízos de equidade em detrimento de uma sistemática de direitos da criança ou da família. O juiz de menores tinha então ampla margem de discrição para decidir, amparado tão somente em suas próprias convicções quanto ao que fosse o melhor para os que se encontravam sob o pálio de sua jurisdição.

Esse tipo de jurisprudência fez com que surgisse no mundo um movimento propugnando uma abordagem do interesse da criança pautada numa lógica de direitos. Os interesses dos pequenos não mais poderiam depender da voluntariedade de um terceiro, quer seu pai, sua mãe ou um agente estatal.

54 Nesse sentido, o art. 14 da Lei 6.697/79 que previa, indistintamente, como medidas aplicáveis ao menor em

situação irregular, providências com finalidades tão díspares como a colocação em família substituta e sanções privativas de liberdade.

55 A propósito, Emílio García Méndez, discorrendo sobre o menorismo na América Latina, informa sobre a

prática vigente na Inglaterra do final do século XIX, pela qual o governo local, calcado na Doutrina do Parens Patriae, retirava os meninos vindos de famílias inadequadas, a fim de emigrá-los em massa para o Canadá. Tal prática, segundo o autor, era denominada sequestro filantrópico. MÉNDEZ, Emilio García. Infancia, ley y democracia: una cuestión de justicia. Justicia y derechos del nino, n. 1. Santiago de Chile: Unicef, 1999, p. 30 e 31.

2.5 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO PROTETIVO DO

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