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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

2. Âmbito de aplicação

Em Portugal, há a considerar até aos dezoito anos, e em função do escalão etário, a intervenção dos mecanismos de controlo social formal faz-se ao abrigo de diferentes diplomas”. Contudo, ainda antes de nos determos sobre o quadro normativo português em matéria de delinquência juvenil, impõe-se-nos tecer breves considerações quanto ao sentido da política criminal face a este fenómeno, começando por constatar que não existe um consenso generalizado ao nível internacional relativamente à fixação de um critério que estabeleça uma idade mínima para

responsabilizar107 a criança pela prática de um facto que seja qualificado como crime semelhante

para todos os países108.

Apesar da Convenção dos Direitos da Criança definir, no seu artigo 1º, o conceito de criança

tendo por base a sua idade109, tal opção assume-se como condição fundamental para aferir a

responsabilidade criminal. Como reconhece Boaventura Sousa Santos, “Apesar da Convenção não se referir explicitamente à questão da imputabilidade penal, impõe aos Estados signatários a obrigação de promover o estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que a

criança não tem capacidade para infringir a lei penal (artigo 40º, nº3, alínea b))”110. No entanto,

parece resultar da conjugação entre as Regras Mínimas das Nações Unidas relativas à Administração da Justiça de Menores – “Regras de Pequim” –, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1985, através da Resolução nº 40/33 e a própria Convenção que a fixação de um limite etário mínimo não deverá ocorrer numa idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias que acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual”, fazendo-se denotar uma ligação

107 Sobre esta ideia de responsabilidade das crianças, urge convocar as considerações expendidas por ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Repensar o Direito

de Menores em Portugal…” ob. cit. pp. 374-375, ao acentuar o facto da “inimputabilidade não significar, de modo algum, irresponsabilidade, considerando decisivo, não tanto o momento em que se fixa a idade da imputabilidade, mas as medidas que se vão adoptar e o tratamento que se vai dispensar aos menores inimputáveis infractores”.

108 Desenvolvendo esta ideia, veja-se ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Direito das crianças e dos jovens…” ob. cit. p. 4 e ISABEL LUÍS DO COUTO, O Problema

da Idade da Imputabilidade Penal. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2012. Dissertação de Mestrado, pp. 42 e ss. Por outro lado, atente-se, neste particular, naquilo que já atrás dissemos a propósito do modelo de intervenção junto de menores infratores no âmbito do «direito penal de menores», que implica a idade da «responsabilidade», que analisámos em detalhe no capítulo I desta dissertação – cfr. pp. 36 e ss.

109 O artigo 1º ocupa-se da definição do conceito de criança, ao estabelecer que: “Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano

menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Esta Convenção, pela especial relevância que assume no direito internacional de crianças, configura um dos mais importantes documentos internacionais em matéria de Justiça Juvenil, tendo sido adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de novembro de 1989, tendo sido posteriormente ratificada por Portugal em 12 de setembro de 1990, através do Decreto do Presidente da República nº 49/90, publicado em DR, 1ª Série, nº 211, de 12 de setembro de 1990.

com o estádio de desenvolvimento e de maturidade da criança111 – solução que se encontra igualmente vertida na Recomendação R(87)20 do Comité dos Ministros, de 17 de setembro de 1987, sobre as “Reacções Sociais à Delinquência Juvenil”, a qual desempenha um importante papel na tentativa de impulsionar ações de prevenção da delinquência juvenil, afirmando que a culpa deveria estar relacionada não só com a idade, mas também com a maturidade do jovem. Desta forma, a aplicação da medida estaria relacionada, sempre, com o grau de desenvolvimento e maturidade do menor.

Posto isto, e centrando-nos no ordenamento jurídico português, sabendo que a

imputabilidade jurídico-penal112 se traduz na capacidade do sujeito de avaliar a ilicitude da sua

conduta e de se poder determinar de acordo com ela, certo é que o legislador perfilhou no artigo 19º do CP a idade de imputabilidade criminal nos 16 anos, assacando, deste modo, responsabilidade penal às pessoas que, no momento da prática do facto, tenham já perfeito os 16 anos. Assim sendo, partindo do princípio de que a partir dos 16 anos o jovem já pratica factos ilícitos-típicos que cabem dentro da alçada do CP – e que representam verdadeiros atentados aos valores fundamentais da vida em comunidade, sendo por isso que o legislador os elevou à tutela última do nosso ordenamento jurídico, prevendo a possibilidade de, por força deles, as pessoas serem sujeitas a aplicação de penas ou medidas de segurança – coloca-se a questão de saber porque terá o legislador optado por esta solução entre os 12 e os 16 anos, na LTE ao abrigo do seu artigo 1º, descortinando as razões em que repousa a eleição dos 16 anos como a idade de início da imputabilidade jurídico-penal.

Como referimos, o artigo 19º do CP fala-nos em inimputabilidade em razão da idade. Constitui entendimento pacífico na doutrina que, “Antes de alcançada a maturidade biológica reflectida na idade não pode formular-se um juízo de culpa, como acontece com os menores de 16 anos (…) tendo sido adotado um critério biológico, com uma presunção absoluta de inimputabilidade, não sendo preciso que, em decorrência da menoridade, o menor seja incapaz de entender o carácter

111 De tal forma que, a própria Convenção vem sugerir a criação de sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos que

pratiquem crimes, que estejam em conformidade, quer com a proteção dos direitos humanos, quer com a proteção das garantias processuais da criança, mas que sejam distintos dos sistemas penais aplicáveis aos adultos – temática sobre a qual nos deteremos adiante, dedicando especial atenção neste II Capítulo, a propósito da análise do modelo de intervenção vertido na LTE. cfr. infra pp. 62 e ss.

112 Numa nota puramente conceptual, imputar deriva do latim imputare, que significa “atribuir a alguém a responsabilidade de [algo]”. No plano jurídico,

a imputabilidade surge como um pressuposto ou conditio sine qua non da formulação de um juízo de culpa – cfr. CARVALHO, Américo Taipa de – Direito

Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. Teoria Geral do Crime. 3ª Ed. Porto: Universidade Católica Editora, 2016. p. 471 (sublinhado do Autor). Ademais, conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica: “A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa. Só quem tem determinada idade e não sofre de graves perturbações psíquicas possuí aquele mínimo de capacidade de autodeterminação que o ordenamento jurídico requer para a responsabilidade jurídico penal.

ilícito do facto ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”113. No entanto, pese embora “a capacidade de avaliação da ilicitude e de autodeterminação de acordo com essa avaliação pressupor um desenvolvimento psicológico, mental e sociocultural, que só a partir de certa idade se

atinge, há muitos adolescentes que com menos de 16 anos que têm perfeita compreensão da ilicitude dos atos que praticam e que, portanto, são verdadeiramente imputáveis jurídico-

penalmente”114. Com efeito, “Se é verdade que a idade inferior a 16 anos não retira necessariamente

ao menor a capacidade para “avaliar a ilicitude da sua conduta” ou “para se determinar de acordo com essa avaliação” nem por isso a posse desta capacidade faz supor juridicamente a capacidade de culpa. A culpa jurídico-penal consiste num juízo de censura ético-social à personalidade do agente. Mas é legítimo e plausível considerar que a personalidade do indivíduo, em sentido jurídico-penal,

não esteja formada antes dos 16 anos”115.

Com efeito, entende-se que a opção político-criminal do legislador decorre da presunção legal, sem admissão de prova em contrário, de que o menor de 16 anos não possui desenvolvimento

113 cfr. SANTOS, Manuel Simas; HENRIQUES, Manuel Leal – Código Penal Anotado (Artigo 1º ao 69º). Vol. I. 4ª Ed. Lisboa: Rei dos Livros, 2014. Coimbra

Editora, 2007. p. 277.

114 Por isso é que AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais… ob. cit. pp. 474-475, defende que a inimputabilidade

consagrada naquele preceito legal, por ser aplicada em muitos casos de adolescentes com menos de 16 anos, configura “uma pura ficção legal” (sublinhado do Autor). Nesse sentido, propõe uma nova formulação legal para a norma em apreço, no sentido “são considerados como inimputáveis” e não “são inimputáveis”, pugnando pelo início da imputabilidade criminal nos 14 anos – circunstância que, aliás, vingou na vigência da versão do CP português de 1852 – artigo 23º, nº 3 – e, posteriormente, de 1886 – artigo 43º, nº1 –, pugnando, em consequência, pelo estabelecimento de um regime especial quanto à pena concreta e quanto ao local e modo de a cumprir em modo semelhante ao que já é aplicável aos chamados «jovens adultos», sendo que, quanto às condições em que os adolescentes cumpririam a respetiva condenação, estas deveriam aproximar-se das que já estão previstas para os infractores com menos de 16 anos. Um tal entendimento não deixa, porém, de suscitar algumas dúvidas, na medida em que apela à criação de um regime, se quisermos, intermédio, entre aquele que vigora na intervenção tutelar educativa e, ao mesmo tempo, ao regime aplicável aos jovens delinquentes. Em sentido oposto, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Repensar o Direito de Menores em Portugal…” ob. cit. pp. 374-375, entende

que “o processo de maturação do menor, a sua personalidade em formação, aconselham a fazer a fazer coincidir a idade da imputabilidade com a da maioridade civil, idade em que se reconhece a plena integração político-social da pessoa”. É sabido que, no ordenamento jurídico português, não existe uma coincidência entre a maioridade civil e a maioridade penal. Sem, todavia, pretender um tratamento exaustivo destas matérias, procurar-se- á oferecer alguns elementos de interesse que auxiliam na compreensão desta temática. Ainda assim, para um estudo autónomo da menoridade civil, tenha-se presente, a título de exemplo, PINTO, Carlos Alberto da Mota – Teoria Geral do Direito Civil. 4ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. pp. 98 e

ss. e 201 e ss. e CORDEIRO, António Menezes – Tratado de Direito Civil. Vol. IV. Parte Geral, Pessoas. 3ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. pp. 459

e ss, passim. Sendo, porém, certo que o conceito de menor, em razão da idade, continua “a ter na lei portuguesa contornos movediços que não são de saudar” – FONSECA, António Carlos Duarte – “Menores, mas imputáveis: que protecção?” In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] – Volume Comemorativo

dos 10 anos do curso de pós-graduação "Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 391. Como é evidente, tal opção não deixa de ser passível de críticas, denunciando-se uma “incongruência do próprio sistema” – cfr. MARIA LUÍSA RIBAS PINHEIRO

TORRES, Da articulação das medidas de promoção e protecção de crianças... ob. cit. pp. 40-41 e, ainda, CERICATTO, Elinir Lúcia – A Imputabilidade do

Adolescente no Direito Penal. Braga: Universidade do Minho, 2015. Dissertação de Mestrado. pp. 57 e ss. Conferindo particular destaque sobre as diferentes idades de responsabilidade criminal, fazendo uma leitura integrada das recomendações internacionais, veja-se MELNIC, Violeta – “La

Résponsabilité Pénale des Mineurs dans le Droit Européen”. In Studii Juridice Universitare. nº 3-4, 2010. p. 111.

biopsicológico, social e estrutural para entender os seus comportamentos e ações e/ou para orientar as suas atitudes de acordo com essa compreensão, não atingindo ainda o grau suficiente de

entendimento e autonomia da vontade para serem responsabilizados criminalmente116.

Por este motivo é que “Os ilícitos-típicos cometidos por menores não deixam, porém, de ser objecto de tutela estadual, uma vez que também em relação a esses factos deve o Estado cumprir o dever de protecção de bens jurídicos a que está adstrito (…) não podendo o Estado demitir-se do seu papel de garante de defesa da sociedade apenas pela circunstância de o agente ser um

menor”117. Todavia, “deve evitar-se a todo o custo a submissão de uma criança ou adolescente às

sanções mais graves previstas no ordenamento jurídico e ao rito do processo penal, pela estigmatização que sempre acompanha a passagem pelo corredor da justiça penal e pelos efeitos extremamente gravosos que a aplicação de uma pena necessariamente produz ao nível dos direitos

de personalidade do menor, marcando inevitavelmente o seu crescimento e toda a sua vida futura”118.

116 Neste sentido, como sustenta JOSÉ ADRIANO SOUTO DE MOURA, “A tutela educativa: factores de legitimação e objectivos”. In Revista do Ministério

Público. ISSN 0870-6107. Ano 21, nº 83 (2000). p. 101, “entende-se que abaixo daquela idade o menor tem uma experiência de vida de tal modo curta que não mede o verdadeiro alcance dos seus actos”.

117 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal: Parte Geral – Questões fundamentais – A Doutrina Geral do Crime. Tomo I. 2ª Ed. Coimbra: Coimbra

Editora, 2007. p. 596.