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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

4. A emergência da Lei Tutelar Educativa e a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo

4.4. As iniciativas legislativas

Feito, assim, o balanço deste processo de reforma do Direito Tutelar de Menores, urge considerar a introdução, no ordenamento jurídico português, da primeira alteração à LTE. Em vista de tal desiderato, afigura-se-nos importante fazer uma breve resenha sobre as iniciativas legislativas dos partidos com assento parlamentar na Assembleia da República.

Para tanto, incidindo, em primeiro lugar, sobre o PS, no seu Projeto de Lei nº 520/XII/3ª, as alterações propostas respeitavam à adoção do instituto do cúmulo jurídico das medidas de

internamento87, através da importação do instituto penal do cúmulo jurídico, previsto no artigo 77º

87 Por se tratar de uma matéria que obteve acolhimento na reforma introduzida na LTE, cumpre-nos expender algumas considerações a propósito deste

instituto jurídico. Na sua versão originária, a aplicação de várias medidas tutelares de internamento ao mesmo menor determinava o seu cumprimento sucessivo, ao abrigo do disposto nos artigos 8º, nos 2, 3 e 5 e 133º, por, na perspetiva do Julgador, se considerarem medidas concretamente

incompatíveis, não sendo exequível o seu cumprimento simultâneo, nos termos do artigo 8º, nº1. Encontrando-se o anterior regime legal assim concebido, permitia-se que um menor que tivesse praticado vários factos qualificados como crime pudesse ficar – em limite ad absurdum – internado dos 16 aos 21 anos de idade, circunstância que foi veemente assinalada no Relatório da CAFCE, ao considerar que o cumprimento sucessivo de medidas de internamento poderia induzir ou potenciar na praxis judiciária uma certa “lógica carcerária, incompatível com o tempo da adolescência e transformações conexas”, disruptiva dos propósitos de socialização primária que edificam o sistema tutelar educativo – cf., por todos, Relatório da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização de Centros Educativos, 2012. Disponível em: https://goo.gl/SwXUUN, p. 7; SAN-BENTO, Marta –“A Lei

Tutelar Educativa…”, ob. cit. p. 669; MAIO, Henrique Guerra; SANTOS, Rui Paulo – "Do cúmulo jurídico de medidas tutelares educativas. Breve crítica- reflexiva ao artigo 8.º da Lei Tutelar Educativa, decorrente da Lei n.º 4/2015, de 15/01, alvo da rectificação n.º 9/2015, de 03/03". In Revista do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa. ISSN 1645-829X. nº 1 (2016). p. 178 eFONSECA, António Carlos-Duarte – “Privação de liberdade na Justiça Juvenil: Contornos de problemas entre meios e fins”. In Julgar. Lisboa. ISSN 1646-6853. nº 22 (2014). pp. 75-95. Paradigmático a este respeito é o Acórdão do TRL, de 22/03/2007, proc. nº 1063/07-9, disponível em: https://goo.gl/LpcVvA, onde o MP perfilava o entendimento de que era compatível o cumprimento simultâneo de duas medidas de internamento, aplicadas ao mesmo menor, embora em processos distintos. No entanto, sustentando uma posição diferente, entendeu o Tribunal que “embora a natureza da medida seja a mesma, entende-se não existir compatibilidade no seu cumprimento simultâneo já que se tratam de duas medidas concretamente distintas, fundadas em factos diversos e com objectivos também diferentes”, acrescentando que “o menor já iniciou o cumprimento de uma das medidas – submetida a um projecto pessoal educativo, concreto, devidamente homologado –, enquanto que a outra ainda não se iniciou”, pelo que determinou o seu cumprimento sucessivo, ao abrigo dos citados artigos 8º, nos 2,

3 e 5. Porém, inconformado com o decidido, o MP interpôs recurso, concluindo, sumariamente, que o conceito de medidas tutelares educativas concretamente compatíveis engloba “as que tenham a mesma natureza, que sejam do mesmo tipo ou modalidade e que lhes seja aplicado o mesmo regime legal”, devendo ser aplicadas “de acordo com o princípio da intervenção mínima requerida pelo caso, evitando o desnecessário arrastamento no tempo do cumprimento das medidas aplicadas” – cf., por todos, RODRIGUES, Anabela Miranda; FONSECA, António Carlos Duarte – Comentário da Lei

Tutelar… ob. cit. p. 74 e FONSECA, António Carlos-Duarte – Internamento de menores delinquentes… ob. cit. p. 411. Não obstante, atendendo à

fundamentação da decisão judicial, o MP entende que, apesar da aplicação das duas medidas de internamento, naquele caso concreto, encontrar a sua génese em factos ilícitos diferentes, tal circunstância não obsta ao cumprimento simultâneo das medidas. Na verdade, entendia o MP que, face à letra deste normativo legal, não é exigível que os factos ilícitos que deram origem à aplicação das medidas sejam os mesmos. Assim, vem concluir que “dificilmente as medidas tutelares aplicadas em processos diferentes têm origem na prática dos mesmos factos ilícitos. Logo, esta exigência teria como consequência a impossibilidade de cumprimento simultâneo de medidas aplicadas ao mesmo menor em diferentes processos”. Por outro lado, o argumento segundo o qual não é concebível o cumprimento simultâneo das duas medidas, porquanto uma delas já se encontrar em execução também não procede, segundo o MP, na medida em que, “ao se defender um tal entendimento, o cumprimento simultâneo só ser viável em relação a medidas que ainda não se encontrem em execução, deixando, por isso, margem para “uma interpretação restritiva da norma no sentido menos favorável ao menor infractor”. Hoje, porém, à luz da nova redação do artigo 8º, nº4, veio permitir-se o cúmulo jurídico de medidas de internamento quando seja aplicada mais do que uma dessas medidas e não se mostre integralmente cumprida uma delas. Pese embora a maior parte da doutrina considere que

do CP, para o sistema tutelar educativo – embora numa asserção mais ampla da que está

configurada no CP relativamente aos imputáveis88 –, impondo em tais casos a aplicação oficiosa de

uma única medida tutelar de internamento e ao período de supervisão intensiva89 – opções que foram

acolhidas na reforma entretanto operada, ao abrigo das disposições legais dos artigos 8º, nº4 e 158º- A – e o consequente alargamento da participação dos pais – ou de outras figuras que se pudessem constituir como ponto de referência para o menor – em todas as medidas tutelares educativas. De igual modo, sublinhou o problema da reincidência dos jovens na prática de factos subsumíveis na categoria de crimes, salientando o facto de ser manifestamente difícil saber qual o grau de eficácia dos projetos educativos pessoais. Não deixaram, porém, de acentuar a natureza urgente do processo em caso de recurso, propondo o aumento do prazo para recorrer da decisão que aplique medida tutelar, de 15 para 60 dias, salientando ainda que o período que medeia entre a interposição do recurso e a decisão seria, posteriormente, descontado no tempo de cumprimento da medida tutelar aplicada.

Remetendo-nos, agora, para o Projeto de Lei elaborado pelo PCP, nos termos do seu Projeto de Lei nº 535/XII-3ª, este entendia que o regime então vigente configurava uma mera adaptação aos menores do modelo penal e processual penal dos adultos, transformando-se o papel do MP de curador em acusador. Como tal, afirmavam que este regime se sustentou numa conceção profundamente autoritária e securitária, defendendo, por isso, que a abordagem relativamente aos fenómenos de violência e de criminalidade juvenil deveriam obedecer a três dimensões: a prevenção, a intervenção e o acompanhamento. Da sua leitura e análise à LTE, resultou que os principais problemas se prendiam com a inexistência de meios humanos em número suficiente que garantissem o acompanhamento efetivo de cada jovem, bem como da sua família e a inexistência ou dificuldades de acompanhamento regular do jovem após o cumprimento do programa anteriormente delineado, propondo a criação de equipas multidisciplinares, designadamente, por

esta solução normativa configura uma novidade concretizada pela reforma, segundo ANTÓNIO JOSÉ FIALHO, “A Primeira Revisão da Lei Tutelar Educativa”.

In GUERRA, Paulo [coord.] – I Congresso de Direito da Família e das Crianças: A Criança e a Família no colo da lei – As causas não se medem aos

palmos. Coimbra: Almedina, 2016. p. 239: “uma interpretação hábil das normas anteriores da Lei Tutelar Educativa já permitia uma solução semelhante que acautelasse o processo educativo do jovem”.

88 Em sentido diverso era a proposta do PSD, corporizado no Projeto de Lei nº 534/XII, que propugnava o recurso ao mecanismo de revisão das medidas

já previsto na lei, permitindo-se não só fazer cessar a medida de internamento mais cedo, como também suspendê-la na sua execução ou, inclusivemente, determinar a sua cessação.

89 A proposta de criação de um período de supervisão intensiva resultou do facto de não existir um período probatório, de interface entre o internamento

e a saída do centro educativo. Neste sentido, era necessário haver um período de adaptação à vida social, acompanhado e visionado, cujo principal objetivo é aferir o nível de competências de natureza integradora adquiridas no meio institucional, bem como o comportamento social e pessoal, com referência ao facto praticado, sendo revogado se houver grave ou reiterada violação das obrigações impostas.

médico, psicólogo, assistente social e autoridade policial, precisamente tendo em vista a verificação da eficácia e do resultado da execução da medida, concluindo que a medida tutelar aplicada produziu ou não os seus resultados e se o comportamento do jovem se pode ajustar à sua inserção social90.

Por sua vez, no Projeto de Lei do PSD – corporizado no Projeto de Lei nº 534/XII – veio repescar-se o debate relativamente a aspetos de índole processual. Desde logo, começam por salientar a desnecessidade de apresentação de queixa por parte do ofendido quando estivéssemos perante ilícitos-criminais de natureza semipública ou particular. Entendiam, por ora, que este tipo de intervenção não devia estar dependente de queixa do ofendido, conquanto a falta de queixa não significava que não existisse necessidade de educação do menor para o direito, conforme o artigo 2º, nº1.

Por seu turno, no que tocante a uma das formas de encerramento do inquérito – a suspensão do processo –, entendiam que se devia prescindir da obrigatoriedade de ser o próprio menor a apresentar um plano de conduta, contrariamente ao que vinha plasmado na versão originária da lei. Uma outra matéria que, no entender dos deputados, carecia de intervenção legislativa, respeitava à manutenção da detenção do menor em flagrante delito. Reclamavam uma flexibilização do regime vertido na parte final do artigo 52º, nº2, na medida em que só era possível a detenção em flagrante delito nos casos em que “o menor tenha praticado facto qualificado como crime contra as pessoas a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a 3 anos ou tiver cometido dois ou mais factos qualificados como crimes a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, superior a 3 anos”, por crimes cujo procedimento fosse de natureza pública. Com efeito, propunham a alteração deste regime, alargando a pena de prisão, abstratamente aplicável, dos crimes contra as pessoas, igual ou superior a 3 anos, ou se tiver cometido facto qualificado como crime a que corresponda pena de prisão igual ou superior a 5 anos.

Neste projeto, ficou também patente a proposta de criação de uma unidade residencial referenciada, com objetivos de intervenção psicoterapêuticos. Note-se que, se tem vindo a promover um modelo mais ressocializador, interventivo e terapêutico, nos casos em que haja determinadas carências. Por último, reclamava ainda a existência de uma intervenção complementar continuada entre a LTE e a LPCJP, que se reflete, quer no jovem, como também na família. Neste projeto ficou

90 A proposta de alteração à Lei nº 166/99, de 14/09 densificada no Projeto de Lei nº 535/XII-3ª, visava assegurar uma dimensão mais inclusiva do

acompanhamento dos jovens delinquentes e pugnava por uma humanização do regime, propondo a criação, junto dos tribunais, de equipas multidisciplinares. Sobre este aspeto, o PCP apresentou um projeto de resolução, ao qual foi atribuído o número 989/XII-3ª, onde recomenda a monitorização da aplicação da LTE.

também patente a proposta de criação do Plano Nacional de Reabilitação e Reinserção, aprovado pelo XIX Governo Constitucional através da Resolução do Conselho de Ministros nº 46/2013, de 23 de Julho, que constitui um instrumento de planeamento estratégico propondo uma intervenção diferenciada aos jovens delinquentes, por exemplo, o modo de internamento, o estabelecimento de programas para agressores sexuais, um programa diferenciado para a violência sobre os pais, defendendo que estes deveriam sofrer uma intervenção específica.

Nem sempre podemos construir o futuro para a nossa juventude, mas podemos construir a nossa juventude para o futuro”

CAPÍTULO II - NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO TUTELAR EDUCATIVO: OBJETO, FINALIDADE E SEUS PRESSUPOSTOS