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O tratamento unitário dos menores "em risco" e dos menores "delinquentes" : o recurso

CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

3. A Organização Tutelar de Menores: A “mistificação” legal de um sistema de proteção de

3.3. O tratamento unitário dos menores "em risco" e dos menores "delinquentes" : o recurso

recurso excessivo à medida de internamento

Não tendo este modelo ficado isento de críticas, certo é que se tratou de um regime aplicável, em pé de igualdade, aos menores que se encontrassem numa situação de irregularidade social – que não constituíam crime –, tal como a mendicidade, vadiagem e libertinagem, mas também aos considerados “inadaptados” ou em risco, o que teve como consequência “[a] maior

estigmatização das crianças ditas «inadaptadas» ou simplesmente «em risco»48, no sentido em que

‘encaminhou para a “justiça’ (ou seja, para um Tribunal e para um processo judicial) menores que não deviam ter qualquer contacto com essa mesma ‘justiça’, quais sejam justamente os menores em situação de risco, com a grave particularidade de tal intervenção ser fortemente selectiva quanto aos menores que considera carecidos de intervenção protectiva, que são normalmente os marginais, os menores necessitados de apoio familiar, os mais desfavorecidos do ponto de vista sócio-

económico, numa autêntica “criminalização da miséria”49. Fala-se, a este respeito, de uma

“intervenção marcadamente selectiva”50, o que significa que, “Na prática, só às crianças e aos

6565. nº 00.2 (2000). pp. 10-11 e, da mesma Autora, ““Ainda a Revisão da Organização Tutelar de Menores. Memória…” ob. cit. p. 449, “Menores agentes de infracções – Interrogações…” ob. cit. p. 246. Também CARVALHO,Maria João Leote de– Entre as malhas do desvio… ob. cit. p. 73.

45 Cf. PARENTE, José Sequeira – “A medida tutelar de acompanhamento educativo”. In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] – Trabalhos do

Curso de Pós-Graduação “Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho”. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 86.

46 Cf. GERSÃO, Eliana – “Um século de Justiça de Menores em Portugal…” ob. cit. p. 1371.

47 Cf.GERSÃO, Eliana – “Ainda a Revisão da Organização Tutelar de Menores…” ob. cit. p. 449.

48 Cf.GERSÃO, Eliana – “Menores agentes de infracções – Interrogações…” ob. cit. p. 246.

49 Cf. ASSIS, Rui – “A Reforma do Direito dos Menores…” ob. cit. p. 140. No mesmo sentido, veja-se também MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA,

“Respostas à delinquência juvenil…” ob. cit. p.441, ao colocar em evidência “uma certa compreensão do fenómeno da delinquência juvenil como reação (ou expressão) de carências afetivas/educativas/sociais (…)”.

50 Cf. por todos,ELIANA GERSÃO, “Ainda a Revisão da Organização Tutelar…” ob. cit. p. 449 e RODRIGUES, Anabela Miranda – “Repensar o Direito de

adolescentes das famílias mais pobres e desorganizadas são aplicadas medidas, nomeadamente de internamento – ou até só essas situações são encaminhadas para o tribunal, dado que a selectividade afecta também a denúncia da infracção pelos ofendidos ou a participação dos factos ao tribunal pela polícia; as crianças das classes mais favorecidas estão praticamente imunes a uma intervenção

judiciária sensível, mesmo que cometam infraçcões graves”51.

Da congregação destes factores, resultante da indiferenciação de resposta por parte do modelo então vigente, emerge a aplicação excessiva da medida de internamento em estabelecimento tutelar, constatando-se ter sido esta “muito mais frequentemente aplicada nos processos referentes a situações não criminais do que criminais e mesmo que é ordenada de modo crescente em relação

a crianças que são meras vítimas de maus tratos ou se encontram em risco”52. Foram vários os

e delinquência juvenil…” ob. cit. p. 41, “Menores agentes de infracções – Interrogações…” ob. cit. pp. 246-247, ASSIS, Rui – “A Reforma do Direito dos Menores…” ob. cit. p. 140,

51 Cf. por todos,ELIANA GERSÃO, “Ainda a Revisão da Organização Tutelar…” ob. cit. p. 449.

52 Para um cabal esclarecimento dos factores que ditaram a exposiçãoda referida prática, cumpre referir que esta circunstância foi motivada pelo facto

destas crianças serem tratadas, do ponto de vista jurídico-legal, nos mesmos moldes que os menores agentes de infrações, “sendo vistas por vastos sectores da opinião pública como sendo elas também «marginais» ou mesmo «delinquentes»” – como fizemos já referência, cf. as considerações que a este propósito tecemos no que toca à versão originária da OTM, constante do DL n.º 44 288, de 20 de abril de 1962, supra, pp. 36 e ss. Cf., a este propósito, o balanço estatístico particularmente elucidativo feito por ELIANA GERSÃO,“Portugal entre as armadilhas…” ob. cit. pp. 93-94, sobre os motivos que determinaram, nos anos de 1975 a 1988, a «selecção» dos menores internados nos «estabelecimentos de reeducação», circunscrevendo-se às crianças das famílias mais pobres e desorganizadas, independentemente do comportamento criminal que revelem, verificando-se um aumento, embora não significativo, do número de menores aos quais foram aplicadas medidas, sobretudo motivadas por situações não criminais – invocando-se a «vadiagem», «indisciplina» e a «inadaptação» –, tendo-se mantido o número de medidas impostas na sequência da prática de crimes – cf., em sentido semelhante, ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, Internamento de menores delinquentes: A lei portuguesa… ob. cit. p. 334, para quem “as medidas

tutelares de internamento acabaram por ser muito mais determinadas em função das necessidades puramente assistenciais do que em função da conduta delinquente ou mesmo da situação de paradelinquência dos menores a quem eram aplicadas” e tambémELIANA GERSÃO,“Menores agentes de infracções – Interrogações…” ob. cit. p. 246; “Menores agentes de infracções criminais – que intervenção…” ob. cit. pp. 33-35, onde se dá conta da elevada percentagem de decisões motivadas por factores de natureza não criminal na generalidade das decisões de internamento. Nas palavras da própria Autora, “entre todos os motivos apresentados pelos tribunais ou pelas comissões em justificação das mesmas [das decisões de internamento], cerca de 70% consistem em dificuldades dos menores de vária ordem, que pouco ou nada têm a ver com a prática de crimes”, reafirmando-o ainda em “As novas leis de protecção de crianças e jovens em perigo e de tutela educativa…” ob. cit. p. 14, ao evidenciar que: “No caso concreto português, uma parte muito significativa das crianças internadas nas instituições de reeducação do Ministério da Justiça nada tem a ver com problemas de delinquência ou mesmo de marginalidade – trata-se simplesmente de ‘casos sociais’, de crianças que não encontram na família condições sócio- educativas ou económicas”. Acresce, ainda que, as principais dificuldades de execução que as medidas de internamento conheceram, nomeadamente por falta de vaga nos estabelecimentos, esclarece que, “a dificuldade de obter vaga não derivava tanto do facto de a capacidade das instituições ser excessivamente reduzida (…) mas sim da circunstância de os CAEF albergarem uma percentagem muito elevada de crianças maltratadas, em risco ou com problemas de comportamento que não constituem crime, para as quais os serviços não judiciários não encontravam resposta”, referindo-se, por esse motivo, às instituições tutelares como “um repositório dos problemas sociais” – Cf. GERSÃO, Eliana –“Ainda a Revisão da Organização

Tutelar…” ob. cit. p. 451. Assinalando esta tendência, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Repensar o Direito de Menores em…” ob. cit. pp. 362-364, estabelecendo um confronto com dados disponibilizados pelo Instituto de Reinserção Social – reportando-se ao ano de 1996 –, que lhe permitiu

modestamente concluir que: “o número de menores internados excede em medida apreciável a lotação dos CAEF’s (…) não se pode escamotear o facto de uma percentagem significativa dos menores internados em CAEF’s serem menores em «risco», para os quais o internamento nestas unidades é de legitimidade duvidosa”. Estatisticamente, “as situações que determinaram a decisão judicial de internamento no sistema de justiça são de:

Autores que se insurgiram contra esta prática, censurando o facto de se aplicar medidas de internamento em estabelecimentos de reeducação a jovens cujo problema não era a sua

inadequação, mas sim a incapacidade da família para cuidar deles53.