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A ineficácia do modelo de proteção e principais críticas

CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

3. A Organização Tutelar de Menores: A “mistificação” legal de um sistema de proteção de

3.4. A ineficácia do modelo de proteção e principais críticas

Foi face a esta realidade, sobretudo decorrente da unificação dos sistemas de proteção e

educativo54, que se começou a constatar, com arrimo no pensamento teórico de vários autores, a

evidente ineficácia de um sistema que não era capaz de distinguir situações que eram necessariamente diferentes e que, por isso, deveriam sustentar intervenções distintas sobre as crianças55.

menores vítimas (maus tratos, abuso de autoridade, abandono ou desamparo), 24,9%; situações de pré-delinquência (inadaptação à disciplina da família, do trabalho, da escola ou da instituição onde se encontram) e de para-delinquência (vadiagem, mendicidade, prostituição, libertinagem ou consumo excessivo de álcool), 35,6% e situações de prática de factos qualificados pela lei penal como crime ou contravenção, 37,8%” (sublinhado da Autora).

53 Chamando a atenção para o mesmo problema, veja-se ELIANA GERSÃO,“As novas leis de protecção de crianças e jovens em perigo e de tutela

educativa…” ob. cit. p. 14.

54 Ver, a propósito desta imagem de unificação da intervenção do Estado, a reflexão de PEDROSO, João – “A Reforma do “Direito de Menores”: A

Construção de um “Direito Social”? (A intervenção do Estado e da Comunidade na Promoção dos Direitos das Crianças)”. In Oficina do CES. Coimbra. nº 121 (1998). p. 9.

55 De acordo com LEONOR SARMENTO DE SOUSA MACHADO FONTES, Medidas Tutelares Educativas: uma intervenção penal encoberta? Lisboa: Universidade

Católica Portuguesa, 2014. Dissertação de Mestrado. pp. 19-20, firmou-se o entendimento de que “um modelo protecionista guiado pela ideia de que é possível responder do mesmo modo a problemas tão diversos como o do abandono do menor ou o da prática, por este, de condutas anti-sociais ligadas ao mundo do crime organizado, condenava-se a si próprio. Deste modo, tornava-se absolutamente premente a distinção entre finalidades da intervenção tutelar de proteção e as finalidades da intervenção tutelar educativa”, sem, no entanto, cair na tentação de criar compartimentos estanques, um de natureza exclusivamente civil e outro de natureza penal – preocupação que ficou firmada nos pontos 3 e 4 da Exposição de Motivos da PropLTE. Porém, num tom profundamente crítico, segundo RICARDO SÁ FERNANDES, “Sobre o projecto de reforma da jurisdição de menores”. In VIDAL, Joana Marques [coord.] – O Direito de Menores: Reforma ou Revolução? Cadernos da Revista do Ministério Público. Lisboa. ISSN 0870-6107. Edições Cosmos, 1998. pp. 192-193, vem defender que “a separação de águas entre os jovens delinquentes, de um lado, e jovens pré-delinquentes e jovens para- delinquentes, de outro, é de um artificialismo enorme e quase evidente”. Com efeito, “Separar os menores que, por puro acaso, foram «apanhados» a praticar uma infração penal daqueles outros que, vivendo em contextos em que diariamente se praticam ilícitos iguais, com a sua participação, cumplicidade ou encobrimento, é separar dois mundos que não vivem divididos”. Posição semelhante é igualmente perfilhada por PAULO GUERRA e LEONOR FURTADO, O Novo Direito das Crianças… ob. cit. p. 46, que manifestam um profundo cepticismo relativamente à eficácia da LTE, por considerarem que não há razões metodológicas para separar a intervenção relativa a menores delinquentes da intervenção relativa aos menores em geral que se encontrem em perigo. Reforçando este entendimento, HELENA BOLIEIRO, “Perigo e Delinquência: intervenção precoce e articulação entre sistemas”. In Ousar Integrar. Revista de Reinserção Social e Prova. Lisboa. ISSN 1647-0109. nº 7 (2010). p. 79, vem sustentar que: “Esta separação de intervenções constituía uma mera cisão artificial da lei se não se tomasse em devida consideração que estamos perante realidades que muitas vezes se entrecruzam e confluem numa única história de vida – a da criança ou do jovem – em relação à qual o sistema deve apresentar respostas orientada por uma lógica de articulação e harmonização”. De igual modo, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Direito das crianças e dos jovens delinquentes”.

In Conferência Internacional sobre as Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global (Comunicação apresentada a 16 de dezembro de 2008). Macau: Faculdade de Direito de Macau no 20º aniversário da Faculdade de Direito. Disponível na internet: http://zip.net/bntMF8. p. 4, ao afirmar

Referimo-nos, com mais exatidão, ao facto das medidas de afastamento das crianças do seu seio familiar serem aplicadas nos mesmos locais, fazendo com que as crianças que necessitassem de proteção, que se encontrassem particularmente frágeis e vulneráveis, expostas por força da sua circunstância sócio-familiar ou até situações de risco estivessem, no mesmo local, com crianças que tinham cometido factos típicos.

Apesar de profundamente criticável56, firmou-se o entendimento de que o

tratamento paralelo destas questões não estava tanto relacionado com a forma como a lei estabelecia as situações, mas antes com a realidade prática, técnica, logística e humana, isto é, com a inexistência de um aparelho específico que permitisse tratar de forma distinta as diferentes situações57.

Com efeito, firmou-se o entendimento de que de pouco ou nada adiantava tratar situações como distintas se, na prática, não existia um aparelho que permitia colocar as crianças que estão

em perigo num local e com um específico tratamento e colocar as crianças que praticaram factos

típicos noutro, com outra possibilidade de atuação58.

que: “Uma correcta política de intervenção estadual junto de crianças («política de menoridade») tem uma natureza necessariamente incindível. Não pode criar divisões artificiais – de protecção e assistencial, por um lado e educativa, por outro –, exigindo que se estabeleçam «pontes de passagem»”. Da mesma Autora veja-se ainda “Repensar o Direito de Menores em Portugal…” ob. cit. p. 386, obliterando a “orientações de actuação fechadas uma à outra”. Iremos ver, no II Capítulo da dissertação, que a Comissão constituída por força do Despacho do Ministro da Justiça nº 20/MJ/96, de 30 de janeiro de 1996, que “a ineficácia da intervenção estadual junto de menores [era] conatural à indistinção dos fenómenos sociais a que se dirige, tornou-se claro que a intervenção relativa aos menores infractores não pode ser idêntica à que se adequa às situações de menores em risco”.

56 Ver, a este propósito, o que nos diz JORGE OLIVEIRA, “Medidas Tutelares Educativas – uma visão institucional”. In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] –

Volume Comemorativo dos 10 anos do curso de pós-graduação "Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho”. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 366, alertando para o problema da “convivência forçada no meio institucional entre agressores e agredidos, entre menores que, não obstante partilhassem uma história de vida de carência, negligência e às vezes abuso, tinham, no entanto, registos diametralmente opostos no tocante à comissão de actos que a lei qualifica como crime. No mesmo sentido, JOSÉ ADRIANO SOUTO DE MOURA, “A tutela educativa: factores de legitimação…”

ob. cit. p. 97, que apelida de “aberrante a conveniência entre uns e outros nos mesmos estabelecimentos de internamento”.

57 Precisamente neste sentido, PAULO GUERRA e LEONOR FURTADO, O Novo Direito das Crianças… ob. cit. p. 43, considerando carecerem de “fundamento

sério” as críticas dirigidas aos tribunais por “promoverem a colocação de crianças vítimas de maus tratos, abandono ou negligência nos mesmos estabelecimentos em que se encontravam crianças agentes de infracções”, justificam esta situação real devido à inexistência de estabelecimentos de acolhimento públicos e de qualidade, bem como de uma rede de acolhimento familiar, para menores naquelas situações”, circunstâncias que, aliás, não deixou de ser assinalada no Relatório Anual da PGDL que, procurando refletir especificamente sobre esta situação, afirmando-se, inclusivamente, tal circunstancialismo afeta a intervenção do MP, que se via confrontado, por diversas vezes, com dificuldades de acolhimento de crianças e jovens em instituições no quadro da promoção e proteção, por escassez de equipamentos. veja-se o enquanto documento que procurou denunciar os potenciais riscos para uma plena e efetiva atuação judiciária nestes casos, mas também

58 Enunciando os aspetos positivos deste sistema, entre nós destacados por MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA,“Respostas à delinquência juvenil…”

ob. cit. p.441 e por ELIANA GERSÃO, “Menores agentes de infracções – Interrogações acerca de velhas e novas respostas”. In Revista Portuguesa de

Ciência Criminal. Ano 4. Fasc. 2 (1994). pp. 245-246, no sentido em que: “o tratamento dos menores «delinquentes» nos mesmos quadros jurídicos e nas mesmas instituições que os menores com outras dificuldades de comportamento ou simplesmente «em risco» contribuiu, por um lado, para a sua menor estigmatização pela opinião pública e, por outro, para uma melhoria das condições de funcionamento dos estabelecimentos tutelares, nomeadamente para a sua maior abertura ao exterior”. Todavia, de acordo com a mesma autora “Estas conquistas tiveram um preço muito”, no

No entanto, não nos parece ser completamente descabida a razão de ser de tratar umas e outras crianças de forma conjunta, simultânea ou aproximada, pois não é pelo facto da criança ter

cometido um facto típico que deixa de estar em perigo59. Na verdade, não estará em maior perigo a

sentido em que “a menor estigmatização dos menores «delinquentes» foi obtida a custo da maior estigmatização das crianças ditas «inadaptadas» ou simplesmente «em risco». Estas, pelo facto de serem tratadas, tal como as agentes de infraçcões, nos quadros de um sistema que se pode considerar «para-penal» (…) são vistas por vários sectores da opinião pública como sendo elas também «marginais» ou mesmo «delinquentes». Com o pretexto de se «salvarem» os menores delinquentes, «sacrificarem-se» os menores em risco.

59 Exemplificativa e paradigmática a este respeito é a situação relatada por HELENA BOLIEIRO ePAULO GUERRA, A Criança e a Família. Uma Questão de

Direito(s): Visão Prática dos Principais Institutos do Direito da Família e das Crianças e Jovens. 2ª Ed. Lisboa: Coimbra Editora, 2014. pp. 153-171, Cf., igualmente, do mesmo Autor, “A Lei Tutelar Educativa: para onde vais?”. In Julgar. Lisboa. ISSN 1646-6853. nº 11 (2010). p. 106, que sublinha que “Uma criança que prevarica é também uma criança em risco, eventualmente em perigo (assente que a noção de risco é bastante mais ampla do que a de perigo) para os termos do artigo 3º, nº2 da Lei de Proteção. E um menor em perigo também pode praticar factos qualificados na lei como crime, passando a correr também a seu favor (pois ambos os processos correm a seu favor) um processo tutelar educativo” e, no mesmo sentido,

JOAQUIM MANUEL DA SILVA, “A imputação de tipos de culpa aos jovens entre os 12 e os 16 anos nos…” ob. cit. p. 57, ao afirmar que: “um jovem

delinquente é também um jovem em perigo, e muitas vezes exige a intervenção simultânea ou sucessiva de ambas”. De igual modo,JOÃO PEDROSO,

“O Ministério Público e o apoio técnico aos tribunais: dois factores de crise ou de sucesso da nova Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”.

In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] – Direito Tutelar de Menores – o sistema em mudança. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 86, ao sustentar que:

“Como é do conhecimento geral e resulta dos estudos sociológicos é frequente que a criança ou jovem que pratica um crime também pode estar numa situação de perigo (negligência parental, abandono escolar, violência doméstica, etc.).” e MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA,“Respostas à delinquência juvenil…” ob. cit. p.441, ao referir que: “É um dado reconhecido que muitos jovens que cometem crimes foram ou são maltratados ou negligenciados”. Assim, também, ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, Internamento de menores delinquentes: A lei portuguesa… ob. cit. p. 372, ao

sublinhar que: “os menores delinquentes podem ser menores em perigo” (sublinhado do Autor); ANABELA RAIMUNDO FIALHO eBELMIRA RAPOSO FELGUEIRAS,

“A intervenção protetiva e a intervenção tutelar educativa – Caminhos que se cruzam”. In Julgar. Lisboa. ISSN 1646-6853. nº 24 (2014). p. 96, no sentido em que: “uma criança quenprevarica, praticando factos qualificados pela lei como crime, é também, necessariamente, uma criança em perigo podendo, por isso, ser instaurados a seu favor, concomitantemente, processo de promoção e proteção e processo(s) tutelar(es) educativo(s).”; RAQUEL

ENCARNAÇÃO,“Medidas tutelares educativas: Uma resposta necessária”. In FONSECA, António Carlos Duarte [et. al.] [coord.] – Direito das Crianças e

Jovens. Actas do Colóquio. Lisboa: Instituto Superior de Psicologia Aplicada, 2008. p. 448, ao sustentar que “não devemos esquecer que um menor em risco pode ser, simultaneamente, um delinquente e vice-versa”. Reforçando este entendimento, veja-se JOANA MARQUES VIDAL, “Processos tutelares: que articulação?”. In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] – Direito Tutelar de Menores – o sistema em mudança. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 160,

ao referir que: “Sendo frequente um menor delinquente ser simultaneamente um menor a carecer de proteção (…)”. Também JOSÉ CARLOS DIAS

CORDEIRO, Psiquiatria Forense. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. pp. 28-38, considera que as crianças em perigo são potenciais

adolescentes em risco de delinquência. Afirma, para tanto, que violência e delinquência são irmãs gémeas da pobreza, do desmembramento familiar, do baixo nível de educação e insucesso escolar, da instabilidade familiar, laboral e residencial. Todavia, afirma que entre a privação económica e a privação afetiva das famílias, é a falta de afeto que representa maior risco para a delinquência. Em sentido análogo, veja-se o entendimento pugnado por RUI M.L.EPIFÂNIO e ANTÓNIO H.L.FARINHA, Organização Tutelar de Menores: contributo para uma visão interdisciplinar do Direito de Menores e de

Família. 2ª Ed. Coimbra: Almedina, 1997. pp. 14-17, ao sustentarem que: “o menor a quem falta uma família estruturante vê avolumados os perigos de se marginalizar irremediavelmente”, acrescentando que “(…) é hoje seguro afirmar-se que a ausência da família ou a pertença a uma família desequilibrada são factores de alto risco para o desenvolvimento do menor e que potenciam o aparecimento de condutas desviantes”. Note-se, aliás, que o reconhecimento desta realidade ficou vertido nos resultados dos estudos realizados pelo Observatório Permanente de Justiça – cf. BOAVENTURA

DE SOUSA SANTOS, Os Caminhos Difíceis da “Nova”… ob. cit. pp. 285, 399 e 592-593 –, bem como as conclusões do relatório de 2012 da CAFCE,

indicam que grande parte dos jovens internados em centros educativos foram sujeitos a situações de perigo e provêm, maioritariamente, de meios socioeconómicos vulneráveis com problemas de pobreza e exclusão social. No entanto, como observa SUDAN DIMITRI,“Da criança culpada ao sujeito de direitos…” ob. cit. p. 95, não basta separar os menores vítimas de crimes dos menores agentes de infracção, para superar o duplo constrangimento com que se defronta a justiça de menores, intimada a ser garante da sua protecção e instrumento da sua responsabilização”. Um exemplo particularmente expressivo de que menores que praticam factos qualificados como cime podem ser menores vítimas de maus tratos ressalta do auto-

criança que é, ela própria, agente de factos criminalmente relevantes, colocando-se no desrespeito pela ordem jurídica estabelecida?

Com efeito, sublinharam alguns autores que a ideia imprimida pelo modelo sustado na OTM

não era necessariamente uma desvantagem do modelo anterior, mas, porventura, uma vantagem compreensiva de que tratávamos a criança que pratica um facto típico como um pré-criminoso e,

nesse sentido, como um estado antecedente da possibilidade de aplicação do Direito Penal.

relato de um menor internado num estabelecimento tutelar, integralmente reproduzido por FONSECA, António Carlos-Duarte – “O Ensino Básico no

Estabelecimento de Reeducação – A escola primária do Instituto Padre António de Oliveira”. In Infância e Juventude – Revista do Instituto de Reinserção Social. Lisboa. ISSN 0870-6565. nº 4 (1987). pp. 56 e ss.

4. A emergência da Lei Tutelar Educativa e a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em