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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

1. Legitimidade da intervenção estadual

1.1. Na perspetiva do interesse do menor

Sendo objeto de tratamento idêntico do ponto de vista jurídico-legal e, nesse sentido, confundindo-se sistematicamente as crianças em perigo, com as crianças agentes de factos qualificados na lei penal como crime, é pacificamente aceite que a análise do problema inerente à legitimidade da intervenção do Estado junto dos menores “não pode subtrair-se ao exame dos

pressupostos de que depende a sua legitimação constitucional”92.

Perante esta constatação e em virtude da especial relevância que o problema da legitimidade da intervenção do Estado reveste na análise das intervenções tutelar educativa e de proteção, é doutrinalmente aceite que esta intervenção procura fundar a sua legitimidade na

prossecução do interesse do menor93.

Todavia, é necessário encarar com alguma cautela este tipo de afirmação. Na esteira de Anabela Miranda Rodrigues, “é perigoso dizer, sem mais, que a prossecução do interesse da criança legitima a intervenção estadual junto de crianças ditas ‘em perigo’ ou de crianças agentes da prática

92cf. RODRIGUES, Anabela Miranda–“Repensar o Direito de Menores em…” ob. cit. p.358.

93 Em sentido análogo, com desenvolvimentos e atualizações da doutrina e da jurisprudência, veja-se RUI JORGE GUEDES FARIA AMORIM, "O interesse do

menor: um conceito transversal à jurisdição de família e crianças". In Revista do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa. ISSN 1645-829X. nº 12 (2009). pp. 90-98; GUERRA, Paulo – Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada. Coimbra: Almedina, 2016. pp. 13-14 e “A Lei Tutelar Educativa:

para onde…” ob. cit. p. 100 e, também, DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal: Parte Geral – Questões… ob. cit. p. 596. Reforçando este

entendimento, veja-se o Acórdão do TC nº 556/95, de 17/10/1995, disponível em: https://goo.gl/BtMqtZ, afirmando que o processo tutelar é “norteado pela regulação de um interesse primordial, que é o do interesse do menor” – por referência a HENRIQUES, Manuel de Oliveira Leal – Organização Tutelar de Menores Anotada. Porto: Porto Editora, 1979. p. 22. Concretamente sobre a densificação deste conceito, veja-se RODRIGUES, Almiro Simões – “Interesse do menor (contributo para uma definição)”. In Infância e Juventude – Revista do Instituto de Reinserção Social. Lisboa. ISSN 0870-6565. nº 1 (1985). p. 107. Refletindo sobre o papel que a jurisprudência desempenhou na definição deste conceito, veja-se o Acórdão do TRC, de 03/05/2006, proc. nº 681/06, disponível em: https://goo.gl/GDXNDE, embora no contexto da intervenção sobre crianças em perigo, no sentido em que: “O «interesse superior da criança», enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral – artigo 69º, nº1 da CRP –, reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência externa”. Com muito interesse, veja-se o Acórdão do TRL, de 25/01/1996, proc. nº 0006632, disponível em: https://goo.gl/UNwtXH, ao sustentar que: “O interesse do menor assume-se, pois, como o valor fulcral ou fundamental do processo: é esse interesse que deve presidir a qualquer decisão (…)”. Assim, como observam RUI M.L.EPIFÂNIO e ANTÓNIO H.L.FARINHA, Organização Tutelar de Menores: contributo para uma visão interdisciplinar… ob. cit. p. 326, “trata-se afinal de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar material e moral”. No mesmo sentido, veja-se também o Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 8/91, de 16 de janeiro de 1992, no sentido em que: “hoje reconhece-se o interesse do menor como a força motriz que há-de impulsionar toda a problemática dos seus direitos. Tal princípio radica na própria especificidade da sua situação perante os adultos, no reconhecimento de que o menor é um ser humano em formação, que importa orientar e preparar para a vida, mediante um processo harmonioso de desenvolvimento, nos planos físico, intelectual, moral e social. O conceito de interesse do menor tem de ser entendido em termos suficientemente amplos, de modo a abranger tudo o que envolva os seus legítimos anseios, realizações e necessidades nos mais variados aspectos”.

de factos qualificados pela lei penal como crime”94. Alerta, assim, para a necessidade de ter em atenção que “o conceito de «interesse do menor», à luz do modelo de intervenção consagrado na LTE, deixou de ser um conceito vago e impreciso, como era o caso quando era utilizado em nome

de um modelo inspirado na filosofia de proteção”95, onde “a criança e o jovem eram vistos como

destinatários da benigna intervenção estadual, cuja bondade das soluções era inquestionável”96, na

qual “o Estado numa manifestação última de defesa do interesse da criança, considerava seu dever intervir sempre que esta, na ‘situação’, perturbava o ‘equilíbrio’ e a ‘paz” comunitários –

considerando, afinal, ‘todas as crianças perigosas para uma certa ordem social’97.

Por esse motivo é que, como certeiramente observa Rui Assis, “O Estado dogmatiza o conceito do «interesse do menor», que ele próprio define sem limites, sendo patente que a intervenção estadual levada a cabo em nome da protecção de tal interesse arrasta consigo o perigo

de deixar o menor e os seus progenitores desprogetidos face a essa mesma intervenção”98.

Entende-se, pois, que: “O «interesse do menor» não pode hoje conceber-se como categoria cuja densificação pertence por inteiro à discricionariedade do Estado. A visão paternalista do Estado, como entidade esclarecida que tudo pode impor em nome do verdadeiro bem dos cidadãos sucumbiu irremediavelmente perante a instauração do Estado de direito material e a organização constitucional da democracia participativa, com os inerentes direitos e garantias, não podendo subsistir pelo simples facto de a concreta actividade estadual se dirigir a cidadãos menores”.

94 Cf. RODRIGUES, Anabela Miranda– “O Superior Interesse da Criança”. In LEANDRO, Armando [et. al.] [coord.] – Estudos em Homenagem a Rui Epifânio.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 35.

95 cf., por todos, RODRIGUES, Anabela Miranda; FONSECA, António Carlos Duarte – Comentário da Lei Tutelar… ob. cit. pp. 70-71. No mesmo sentido,

veja-se JOSÉ SEQUEIRA PARENTE, “A medida tutelar de acompanhamento…” ob. cit. pp. 86-87, vem sustentar que: “o conceito de «interesse do menor», tal como entendido pelo “modelo de protecção”, conduziu a uma excessiva discricionariedade na intervenção do Estado junto dos menores e das suas famílias, sendo tomadas decisões sem os ouvir, sendo os jovens vistos como incapazes de pensar, decidir e querer, tratados como meros sujeitos passivos das decisões que lhes dizem respeito”.

96 Como fizemos já referência, cf. as considerações que a este aspeto teceu ALFAIATE, Ana Rita–O Problema da Responsabilidade… ob. cit. p. 115, e

que detalhámos no capítulo I desta dissertação. Cf. supra pp. 33 e ss.

97 Por esse motivo é que MANUEL GONÇALVES, “Os modelos de intervenção institucional e não institucional no âmbito dos menores e jovens adultos.

Breve enquadramento jurídico internacional”. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Lisboa. ISSN 0871-8563. Ano 7, Fasc. 4 (1997). p. 622, refere que “todo o «menor-problema» (numa situação desviante em relação aos padrões de normalidade da vida e desenvolvimento no tecido social) é uma pessoa carecida de protecção e assistência”, sendo por isso olhado pelo Estado “na perspectiva da compaixão, paternalista e protecionista, considerando-se, sem mais e apenas por isso, legitimado para intervir” – cf. ASSIS, Rui – “A Reforma do Direito dos Menores…” ob. cit. p. 139.