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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

1. Legitimidade da intervenção estadual

1.2. O fundamento constitucional de proteção da criança

Importa, agora, debruçarmo-nos sobre os preceitos constitucionais contidos nos artigos 69º e 70º da CRP.

Na verdade, poder-se-á constatar que neste normativos não se vislumbra qualquer

referência explícita ao dever de educação99. Bem pelo contrário, fazem uma clara alusão ao

desenvolvimento integral da criança, ao nível físico, psíquico e emocional e à efetivação dos seus

direitos económicos, sociais e culturais100. Reforçando esta ideia, a Exposição de Motivos da

PropLPCJP refere que a intervenção de proteção se funda “no artigo 69º da Constituição, que confere à sociedade e ao Estado o dever de os proteger contra todas as formas de abandono, de discriminação e opressão e contra o exercício abusivo da autoridade, com vista ao seu desenvolvimento integral”. No mesmo sentido, também a PropLTE se pronunciou no sentido em que: “a proteção dos menores hoc sensu, alicerçada no artigo 69º da Constituição, justifica-se quando o gozo ou o exercício de direitos cívicos, sociais, económicos ou culturais do menor são ameaçados

por factores que lhe são exteriores (incúria, exclusão social, abandono ou maus tratos)”101.

No entanto, como certeiramente observam Jorge Miranda e Rui Medeiros, o reconhecimento da especial necessidade de proteção da criança, subjacente à regulamentação do artigo 69º, justifica “um efeito expansivo, de forma a assegurar que as medidas de reação aos casos de delinquência infantil [ou juvenil] não percam de vista o objetivo do desenvolvimento integral criança”, acrescentando, ainda, que “a própria justiça de menores não pode, por isso, obliterar que a delinquência juvenil é praticada por seres em formação. Concretamente, os instrumentos de reação se, por um lado não podem ignorar que as crianças e os jovens reclamam e efetivamente obtém um

99 Por isso concorda-se com LEONOR SARMENTO DE SOUSA MACHADO FONTES,Medidas Tutelares Educativas… ob. cit. pp. 42-43, quando afirma que: “se

dos preceitos constitucionais constantes nos artigos 69º e 70º da CRP resultasse qualquer dever de educação, o Estado estaria em incumprimento, na medida em que deixou de efectivar esse direito/dever relativamente aos menores com idades compreendidas entre os 16 e os 18 anos – para todos os efeitos, até aos 18 anos ainda se é menor, nos termos do direito civil, da Convenção dos Direitos da Criança e até do direito penal”.

100 Neste sentido, veja-se o Acórdão do TRL, de 25/01/1996, proc. nº 0006632, disponível em: https://goo.gl/UNwtXH, ao referir que: “A criança deve

beneficiar de uma protecção especial e ver-se rodeada de possibilidades concedidas pela Lei e por outros meios, a fim de se poder desenvolver de uma maneira sã e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”, em estrita conformidade com o disposto na Declaração dos Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1959 pela Assembleia das Nações Unidas.

101 De igual modo, veja-se ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Repensar o Direito de Menores em Portugal…” ob. cit. p. 368, ao referir que: “A intervenção

do Estado justifica-se e exige-se quando o exercício e o desenvolvimento do poder de autodeterminação do menor são ameaçados por factores que lhe são exteriores (desprotecção, abandono, maus tratos, etc.)”, pelo que esta “particular fragilidade dos menores em face das adversidades do mundo externo levou a CRP a cometer à sociedade e ao Estado um dever de protecção das crianças, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente no que diz respeito aos órfãos e abandonados (artigo 69º da CRP)”.

grau crescente de autonomia e liberdade, e por isso devem ser responsabilizantes daqueles que adotam comportamentos que violam os valores básicos de ordenação da vida em sociedade, devem,

por outro, atender à situação específica em que se encontram os menores”102.

Porém, não tenhamos ilusões. Uma tal conceção parte do pressuposto de que qualquer intervenção estatal não pode nunca comprometer os direitos à liberdade e à autodeterminação pessoal do menor. O mesmo é dizer que tal intervenção não pode comprometer a compreensão de que são um ser humano e que, como tal, estão na posse dos seus direitos como qualquer outra pessoa. Certo é, porém, que esta linha pode tornar-se muito ténue quando nos referimos a crianças que, por uma qualquer razão, se encontram numa situação de perigo e que, nesse sentido, se encontram carecidas de proteção. Quanto a estas, parece-nos óbvio que o Estado não pode demitir- se de intervir, nem pode demitir-se de sobre ela exercer um qualquer tipo de tutela – tendo esta de ser verdadeiramente cuidadosa e pensada em termos de finalidade. À luz da CRP, isso significa que temos uma vinculação constitucional muito forte quanto à limitação dos direitos, liberdades e garantias por força do seu artigo 18º, que nos permite limitar direitos, liberdades e garantias daquela criança, na medida em que isso seja necessário para a tutela de outros direitos, liberdades e garantias.

Por outro lado, existe uma ponderação quanto aos direitos fundamentais, nascidos da própria dignidade da pessoa humana que não pode ser negada apenas pela circunstância de estarmos a referir a uma criança, de um ser que ainda está em desenvolvimento, que está em crescimento, bem pelo contrário. Entendemos, portanto, que esta especial fragilidade e vulnerabilidade pode impor ao Estado um específico dever de atuação, não podendo nunca permitir lhe pensar ou agir como se tivesse substituído esses direitos imanentes à criança.

Esta intervenção acarreta fortes limitações aos direitos da criança, tais como o direito à liberdade individual e autodeterminação pessoal, e ainda dos seus progenitores, como o direito à educação e à manutenção dos filhos, que encontram generosa consagração no texto constitucional.

Deste modo, sendo certo que a tarefa educativa deverá concentrar-se nos pais, a quem compete103 –

102 MIRANDA,Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 1382.

103 Neste sentido, também o Acórdão do STJ, de 02/03/2011, proc. nº 25/11.0YFLSB.S1, disponível em: https://goo.gl/RrgtsZ, vem sustentar que:

“A liberdade individual e a autodeterminação pessoal do jovem (…) e o direito dos seus progenitores à sua educação e manutenção, mostra-se assim, fortemente limitada, alvo de forte constrição, restrições essas orientadas, não com um propósito de punição, mas de o conformar ao interesse público de respeito por regras básicas e inabdicáveis de convivência comunitária em harmonia e segurança, sempre que deu mostras de delas se desviar”. Em termos constitucionais, o artigo 36º, nº5 da CRP que consagra, segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa...

ob. cit. p. 565, um verdadeiro direito-dever subjetivo, acrescentando ainda que este “além de um dever ético-social, é um dever jurídico, nos termos estabelecidos na lei civil (artigos 1877º e seguintes) e em convenções internacionais (Protocolo nº 7 à CEDH, artigo 5º).

por excelência – o exercício das responsabilidades parentais104, deve equacionar-se a colaboração do Estado com a família nas suas tarefas sociais e, principalmente, na educação dos filhos e que, em princípio, só deve invadir o «santuário familiar» em casos extremos e sempre na defesa de valores fundamentais que estejam a ser postergados, reservando-se, por norma, aos tribunais – por serem

os órgãos comunitários que mais garantias dão – essa tarefa de protecção do menor na família”105.

Por este motivo é que a intervenção tutelar educativa deve ser excepcional e obedecer aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

Neste sentido, Souto de Moura vem afirmar que “o propósito tutelar educativo consubstanciado na Lei nº 166/99, de 14/09 – Lei Tutelar Educativa –, cobra legitimação por parte do Estado mesmo contra a vontade de quem está investido no poder paternal (…) quando se tenha manifestado uma situação desviante que torne clara a ruptura com elementos nucleares da ordem jurídica. E o núcleo de valores cujo desrespeito legitima a intervenção do Estado é representado pelas normais criminais. Ou seja, se em rigor o menor não comete crimes, a tutela educativa deverá fazer- se sentir sempre que o menor adopte um comportamento descrito na lei penal como crime, portanto, penalmente ilícito”106.

104 A este respeito, veja-se a fundamentação do Acórdão do TRP, de 22/05/2013, proc. nº 2289/12.3TAVNG.P1, disponível em: https://goo.gl/xV7AFV,

nos termos da qual: “a intervenção tutelar educativa do Estado relativamente aos jovens justifica-se quando se tenha manifestado uma situação desviante que tome clara a ruptura com elementos nucleares da ordem jurídica, legitimando-se o Estado para educar o jovem para o direito, mesmo contra a vontade de quem está investido das responsabilidades parentais”.

105 De acordo com ELIANA GERSÃO, “Um século de Justiça de Menores em Portugal (no centenário da…” ob. cit. p. 1365. Nas palavras da Autora, “A

pretensão educativa da nova lei pouco tem a ver com os desígnios educativos que também o modelo de proteção da OTM incluía no seu ideário. Antes de mais, porque a finalidade educativa só pode ser prosseguida com respeito por garantias processuais análogas às consagradas no processo penal e dentro dos limites impostos pelos direitos constitucionais e civis dos pais e dos próprios menores; depois, porque o conceito de educação é entendido de acordo com os conhecimentos e as exigências do nosso tempo, nele se incluindo o desenvolvimento do sentido de responsabilidade pelos comportamentos pessoais e a interiorização da necessidade de respeito pelos outros e pelas exigências da vida em sociedade”.

Cf. RUI M.L.EPIFÂNIO e ANTÓNIO H.L.FARINHA, Organização Tutelar de Menores: contributo para uma visão interdisciplinar do Direito de Menores e de

Família. Coimbra: Almedina, 1997. pp. 14-17

106 Cf. MOURA, José Adriano Souto de – “A tutela educativa: factores de legitimação e objectivos”. In Revista do Ministério Público. Ano 21, nº 83. Lisboa