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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA JUSTIÇA JUVENIL EM PORTUGAL:

4. A emergência da Lei Tutelar Educativa e a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo

4.2. Pontes de articulação

Passada em revista a progressiva transição do modelo de proteção para o modelo tributário

de uma concepção mitigada, enveredando por uma “terceira via”77 e, compreendendo como ambos

se foram entrelaçando ao longo da história, reconheceu-se a necessidade de dar uma maior importância às questões relacionadas com a proteção de crianças e de as tratar como verdadeiras questões de direito, e não meramente assistencialistas, tendo-se suscitado a questão dos perigos de uma eventual separação entre os factos qualificados pela lei como crimes perpetrados pelos jovens e as situações de proteção.

77 A reclamação de uma solução deste tipo já havia sido feita por diversos Autores, entre os quais se destacam ELIANA GERSÃO, “A reforma da Organização

Tutelar de Menores e a Convenção sobre os Direitos da Criança”. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra. ISSN 0871-8563. nº7 (1997). pp. 580 e ss., enquanto modelo de intervenção “que impeça os abusos dos sistemas de «protecção», nomeadamente reconhecendo aos menores as garantias concedidas aos adultos pelo direito constitucional, pelo direito processual penal e pelo próprio direito penal (…) mas que simultaneamente salvaguarde a herança positiva do modelo de «protecção», em especial a natureza educativa das medidas aplicáveis e a profunda consideração dos «interesses da criança» ao longo de todo o processo de aplicação e execução de medidas”. Revisitando, uma vez mais, outras obras da Autora, veja- se “Menores agentes de infracções criminais…” ob. cit. p. 254, enquanto sistema que “se aproxime do direito e do processo penal no que diz respeito aos direitos e garantias que estes reconhecem, mas que deles se afaste no que diz respeito ao conteúdo e mesmo à «filosofia de base» das intervenções; "Portugal entre as armadilhas da…” ob. cit. pp. 98-99; “Ainda a Revisão da Organização Tutelar...” ob. cit. p. 465; “Problèmes actuels de la protection de la jeunesse”. In Révue Internationale de Criminologie et de Police Téchnique. nº 1 (1996). p. 75; “Droits de l’enfant et responsabilité pénale dans le nouveau droit portugais des mineurs”. In Protection de l’enfance et diversités européennes. Actes du coloque de DERPAD. Petite Capitale Éditions, 2003. p. 91. Parece caminhar neste sentido, ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, Internamento de menores delinquentes: A lei portuguesa… ob. cit. p.

371, ao referir-se à procura de uma “solução de equilíbrio” entre as soluções oferecidas pelos modelos de proteção e de justiça, “também designado por modelo dos «três dês» despenalização/desjudicialização, desinstitucionalização, direito a um processo justo (due process) (sublinhado do Autor) – cf., igualmente, CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da–“Respostas à delinquência juvenil…” ob. cit. p.448. Também, com muito interesse, cf.

ALFAIATE, Ana Rita da Silva Samelo–O Problema da Responsabilidade Penal… ob. cit. p. 179; PEDROSO, João –“O Ministério Público e o apoio técnico…”

ob. cit. p. 86; NEVES, Tiago – “Educação para o direito e mediação de conflitos”. In Educação, Sociedade e Culturas – Jovens, percursos e transições

em instituições e comunidades educativas. Porto. ISSN 0872-7643. nº 27 (2008). p. 31 e, do mesmo Autor, “A defesa institucional numa instituição total: o caso de um centro de internamento de menores delinquentes”. In Análise Social. Lisboa. ISSN 2182-2999. Vol. XLII (4º, nº 185), 2007. p. 1024; MOURA, José Adriano Souto de–“A tutela educativa: factores…” ob. cit. p. 101, ao afirmar que este sistema “tenta conciliar um princípio incontornável de subtracção do menor ao sistema penal – e por aí se aproxima do sistema de protecção –, com uma disciplina mais garantística do ponto de vista processual e uma estratégia responsabilizante, com o que cobra alguma similitude com o modelo de justiça penal”; CARVALHO, Maria João Leote de – “A Medida de Internamento da Lei Tutelar Educativa: Sentido e Potencialidades”. In GUERRA, Paulo [coord.] – I Congresso de Direito da Família e das

Crianças: A Criança e a Família no colo da lei – As causas não se medem aos palmos. Coimbra: Almedina, 2016. p. 260. Neste sentido, HELENA

SUSANO, “A dinâmica do processo na Lei Tutelar Educativa – Contributo para a resolução de questões jurisprudenciais suscitadas na sua aplicação”.

In Julgar. Lisboa. ISSN 1646-6853. nº 11 (2010). p. 111, ao sustentar que: “O modelo em vigor constitui, assim, uma solução de comprometimento ecléctico entre os dois modelos [de proteção e de justiça], arredando-se a vertente mais extrema de cada um deles”. Refletindo sobre ambos os modelos,ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Repensar o Direito de Menores em Portugal…” ob. cit. pp. 370-373, considera que: “Não se pretende consagrar um sistema extremo «bifurcado puro» de justiça. Pretende-se sim tentar encontrar uma «terceira via» que harmonize em si a salvaguarda dos direitos do menor – o que conferirá legitimidade à intervenção – e a satisfação das expectativas comunitárias em relação aos menores infractores – o que conferirá eficácia à intervenção”.

Na verdade, conceber uma total separação entre a intervenção judiciária nas situações de perigo e de delinquência em que os menores se encontrem, poderia conduzir a soluções diametralmente distintas quando estivéssemos perante a mesma criança que necessite simultaneamente de medidas de cariz protetor e de medidas tutelares educativas – havendo lugar a

uma concomitância física entre o processo tutelar educativo e o processo de promoção e proteção78.

Com efeito, se existe quem repudie de forma veemente a separação da intervenção do

Estado em termos protetivos e educativos – apresentando-as como realidades indissociáveis79 –, certo

é que a generalidade dos operadores judiciários acolheu, de forma muito positiva, esta diferenciação de tratamento da nova legislação, considerando que era necessário por fim à indiferenciação de

processos e, consequentemente, de intervenções judiciais80.

78 Alertando para o perigo de se estar a criar sistemas legislativos estanques, sem qualquer comunicação entre si, veja-se JOANA MARQUES VIDAL,

“Processos tutelares: que articulação?”. In OLIVEIRA, Guilherme de [coord.] – Direito Tutelar de Menores – o sistema em mudança. Coimbra: Coimbra

Editora, 2002. pp. 160-161, ao considerar que a realidade a que ambos os diplomas se dirigem poder ser, muitas vezes, complexa e plurifacetada, conjugando os pressupostos de aplicação de ambos os diplomas. De tal foma que, “O sistema de justiça das crianças não se esgota na acção do tribunal, resultando, antes de uma multiplicidade de intervenções de instituições diferenciadas, públicas ou privadas, não lhe sendo indiferente, até, a dinâmica comunitária face às questões das suas crianças” – cf. VIDAL, Joana Marques – “Crianças, Jovens…” ob. cit. p. 126. No mesmo sentido,

HELENA BOLIEIRO, “Perigo e Delinquência: intervenção precoce e articulação entre sistemas”. In Ousar Integrar. Revista de Reinserção Social e Prova.

Lisboa. ISSN 1647-0109. nº 7 (2010). p. 79, que se refere à “intercorrência entre exigências educativas e necessidades de protecção”, o que leva “a que se estimule uma comunicabilidade permanente entre o sistema de justiça e as instâncias de protecção, não existindo, de resto, qualquer antinomia entre estas e aquele” – em consonância com o ponto 13 da Exposição de Motivos da PropLTE. No mesmo sentido, tambémCUNHA, Maria da Conceição Ferreira da –“Respostas à delinquência juvenil…” ob. cit. p.452.

79 Atente-se, neste particular, naquilo que já atrás dissemos a respeito das principais críticas apontadas ao regime vertido na OTM, que analisámos em

detalhe no capítulo I desta dissertação – cf. pp. 45 e ss.

80 Disso mesmo nos dá conta BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Os Caminhos Difíceis da “Nova”… ob. cit. p. 282-285, que colhendo diversas opiniões de

operadores judiciários – entre Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Advogados, Técnicos da Direção-Geral de Reinserção Social e da Segurança Social –, assinalam o passo fundamental que foi dado ao distinguir entre a situação da criança que é vítima da que é delinquente, evidenciando, ainda, que a LTE tornou os jovens em sujeitos processuais. Afirma-se, para tanto, que: “Quem trabalhou com jovens antes da LTE e quem trabalha depois da LTE, e que os ouvia antes e que os ouve depois, percebe que o ganho foi estrondoso do ponto de vista de os tornar sujeitos processuais (…), de lhes reconhecer direitos como cidadão e como pessoa e de os fazer perceber o drama em que eles estão envolvidos”, falando-se, inclusivamente, numa “conquista irrecusável” do sistema. No entanto, apesar de se reconhecerem vantagens na nova legislação, há quem entenda que a OTM, permitia, já, uma separação entre jovens víimas e os que praticavam crimes. Com efeito, “Apesar de entender que a OTM não obrigava à não separação”, certo é que, “(…) a um miúdo vítima de maus tratos era aplicável o artigo 19º que era uma medida parecida com a inibição do poder paternal. Era uma medida que visava afastar aquela criança do meio familiar que lhe era hostil (…) ao passo que, se o miúdo andasse com um comportamento delinquente poder-se-ia aplicar desde a admoestação, passando pelo acompanhamento educativo, até ao internamento em estabelecimento do IRS, decisão esta precedida de uma audiência com juízes sociais, o que não sucedia no primeiro caso. Portanto, na OTM, o que havia era uma forma de processo que se iniciava de forma igual, mas acabava de forma diferente. Agora, é a própria Lei que nos empurra para uma situação em que podem estar miúdos com problemáticas diferentes e que reclamariam tratamentos diferentes dentro da mesma estrutura”.