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PARTE I. A CIVILIZAÇÃO CÉLTICA NA GÁLIA NOS SÉCULOS II E I A.C

2. A FORMAÇÃO DE ESTADOS CELTAS NA GÁLIA – A CIVILIZAÇÃO DOS OPPIDA

2.5. Um estudo de caso – a formação do Estado éduo

2.5.2. Os éduos: da chefatura ao Estado

Os éduos satisfizeram os requisitos básicos para que se reconhecesse neles um Estado como colocado por Mann.485

A centralidade está bem representada no papel do oppidum de Bibracte.

A estratificação, nos relatos de César, está bem clara e baseada sobremaneira em seus contatos com os éduos. É muito possível que a divisão entre druidas, equites e plebe tenha sido retirada da observação do Estado éduo, de outros estados e, talvez, generalizada para a toda a Gália.

480 GRUEL et VITALI. Op. cit. p. 48. 481 Ibidem. p. 4.

482 Ver AUDOUZE, Patrice e BUCHSENSCHUTZ, Olivier. Villes, villages et campagnes em Europe celtique.

Op. cit. 303-307. Nesses “bairros” as casas que funcionariam como ateliês teriam entre 5 e 10 ha.

483 GRUEL e VITALI. Op. cit. p. 26. 484 Ibidem. p. 26-27.

O território éduo estava bem demarcado, inclusive, como já dito, com caráter religioso no impedimento do vergobreto Convictolitavis de deixar o território dos éduos. Este território tinha no rio Saône o limite Leste, e no rio Loire o limite Oeste.486

O monopólio legislativo também está bem representado nos relatos de César, mediante os quais temos acesso ao funcionamento do vergobreto como substituto do rei e de sua eleição por obra dos druidas.

Não apenas os éduos, mas outros povos do centro e leste da Gália já haviam constituído um Estado. Os arvernos, sequanos, bituriges e helvécios já haviam saído da condição de tribo e mesmo de chefatura. Não é à-toa que esses povos tinham os seus territórios situados “na borda” da Província Narbonense, e, para alguns autores, o centro-leste da Gália já estaria parcialmente integrado ao mundo romano.487 A grande quantidade de ânforas488 é estimada em mais de um milhão de exemplares somente em Bibracte. As ânforas são encontradas também nos outros oppida éduos como Cabillonum e Matisco, como vemos em textos clássicos. Os éduos mantinham um intenso comércio com Roma e estavam se integrando à demanda romana de escravos e novos mercados de matérias-primas, como metais.489 O oppidum éduo de Cavillonum havia se tornado um ponto de referência para os mercadores romanos, como posto de troca. A demanda de escravos por Roma é assim delineada por Cunliffe.

A economia romana baseada em escravos requeria um confiável e constante fluxo de escravos (...). Nesse contexto, a importação de escravos, adquiridos como mercadoria pelo comércio através da fronteira, tomou particular importância. A fronteira romana com o mundo bárbaro era grande, e as comunidades bárbaras externas estavam dispostas a reajustar seus sistemas sociais para prover a quantidade de cativos quando requeridos.490

Dessa maneira, o gosto pela guerra que os autores clássicos apontam como uma característica dos celtas, “loucos pela guerra”,491 como refere Estrabão, serviria bem aos interesses romanos, na medida em que essas guerras intermináveis alimentavam as necessidades romanas de mão-de-obra. A importância dos éduos para o Estado romano pode

486 Ver BARRAL, Philippe et al. Les territoires de la fin de l´âge du Fer enre Loire e Saône: les éduens et leurs

voisins. Problématique et éléments de réponse. In: Territoires celtiques. Op. cit. p. 275-279. LACROIX, Jacques.

Les noms d´origine gauloise. La Gaule des combats. Paris: Errance, p. 45-54. Toponímios derivados do

vocábulo gaulês icoranda podem designar as fronteiras das antigas civitates célticas.

487 BUSCHSENCHUTZ. The Celts in France. Op. cit. p. 571.

488 Ver OLMER, Fabienne. Les aristócrates éduens et le commerce. In: GUICHARD, Vincent et PERRIN,

Franck (org.). Op. cit. p. 290-291. A autora identifica a proveniência das ânforas encontradas em Bibracte principalmente dos ateliês do Lácio, da Campanhia e de Albínia (Etrúria), Fenígllia e Cosa (Ager Cosanus).

489 CUNLIFFE. The ancient Celts. Op. cit. p. 216.

490 CUNLIFFE. Greeks, Romans & Barbarians. Sfpheres of Interaction. Op. cit. p. 77-78. 491 ESTRABÃO. Op. cit. IV, 4, 2.

ser compreendida por Roma ter dado àqueles o título de irmãos e consangüíneos492 (fratres consanguineosque). A posição estratégica do território éduo, dominando ao leste a bacia do Saône e ao oeste a bacia do Sena, fazia dos éduos um Estado cuja posição geográfica dentro da Gália era vital no controle de alguns dos principais eixos fluviais da região. Como exemplo, temos o cobre e o estanho, provenientes da Britânia. Caso fosse utilizado o Sena como via de transporte, obrigatoriamente precisariam passar por território éduo ou atravessar o Maciço Central. Esta questão do comércio entre Roma e os éduos não pode ser negligenciada. Assim, pode-se evocar a teoria de Fried,493 ele postula que uma chefatura, ao manter contato com um Estado bastante estruturado, pode perfeitamente evoluir para um Estado.

Quanto à questão da estratificação, vimos que Kristiansen494 destaca esse elemento como uma característica básica na evolução das chefaturas rumo a uma formação de Estado. Para o caso dos éduos, a estratificação estaria bem estabelecida, pois este povo há muito, havia abandonado o tradicional esquema tribal (parentesco, sexo e idade). Na definição de Krader,495 o abandono do esquema tradicional tribal pode indicar o surgimento das associações que se caracterizam pelo rompimento com os laços tribais. Os éduos teriam formado uma forte associação, talvez a mais forte da Gália, e assim, entrado numa estrutura Estatal.

Um fato narrado por César deve ser evocado, pois, após a derrota deste frente a Vercingetorix, em Gergóvia, o cônsul precisou intervir em assuntos internos dos éduos

(...) “A situação era das mais graves; enquanto, de acordo com o antigo costume, somente poderia ser um nomeado um magistrado supremo (vergobreto), que exerceria o poder real por um ano, no entanto dois homens estavam exercendo esse cargo, e cada um declarando-se eleito de forma legal. Um era Convictolitavi, jovem rico e de nascimento ilustre; o outro era Coto, originário de uma antiga família, igualmente poderoso pela sua grande influência e pelo grande número de alianças; seu irmão, Valetíaco havia exercido o mesmo cargo no ano precedente. Dessa forma, todo o estado estava em armas.

(...) Ele (César) soube que o irmão (Coto) havia proclamado a eleição, quando as leis proibiam não apenas de ascender à magistratura, mais ainda ser admitido no senado dois membros da mesma família, quando ambos já tivessem exercido o cargo e ambos estivessem vivos. Ele (César) obriga Coto a abrir mão do poder e convida Convictolitavi, que havia sido eleito pelos sacerdotes, de acordo com a tradição, a assumir a vacância da magistratura e suas prerrogativas496

492 CÉSAR. Op. cit. I, 33. 493 CRONE. Op. cit. p. 92-93. 494 KRISTIANSEN. Op. cit. p.18. 495 KRADER. Op. cit. p. 56-57. 496 CÉSAR. Op. cit. VII, 32-33.

Ora, esse evento deixa claro que os éduos haviam fortalecido suas leis com o evidente intuito de evitar uma mesma linhagem sucessória no cargo que substituía o rei. Cunliffe497 depreende deste episódio uma forma de evitar dinastias. No entanto, pode-se ir mais longe e ver no interdito do vergobreto – o cargo não poder ser ocupado por dois parentes próximos enquanto o antigo ocupante estivesse ainda vivo – uma forma de evitar que um determinado clã se perpetuasse no poder, com a intenção de controlar, entre outras coisas, o próspero comércio de vinho. Esse interdito teria como efeito imediato um rodízio de poder entre as famílias aristocráticas célticas, sob a supervisão dos druidas.

Isso reforça a tese de Krader, a estratificação de um Estado se daria pelos critérios de riqueza, prestígio e poder. Foram justamente conflitos envolvendo esses elementos que “forçaram” os éduos a caminhar em direção ao Estado. As evidências arqueológicas atestam a estratificação, revelando uma divisão de classes em Bibracte. Os indícios da existência de “bairros” de aristocratas e “bairros” de artesãos revelam uma repartição hierarquizada do espaço interior. Tal divisão corrobora um dos atributos citados por Krader como unânimes entre os especialistas, a formação de classes. Dessa forma, podemos dizer com segurança que um fenômeno externo, o comércio com Roma, contribuiu para um fenômeno interno, a estratificação cada vez mais forte do povo éduo. A forte estratificação e a existência de um oppidum com um forte prestígio e centralidade bem estabelecida, caso de Bibracte, endossaram mais ainda o caráter de Estado desse povo. Entretanto, a centralização torna-se uma “armadilha”, pois, como afirma Richard Brandley,498 sociedades mais centralizadas foram mais rapidamente anexadas por Roma. Certamente, esse fato vale para os éduos e para a maioria dos povos celtas da Gália.

Autores como Collis499 reconhecem, em relação à Gália, que estaríamos lidando com o surgimento de Estados tribais em um grande território. Essa afirmação é apropriada para o éduos e para todo o centro-leste da Gália, contudo, é difícil dizer se poderia ser aplicada a todos os povos gauleses. Brun reflete sobre as proposições de Carneiro.

(...) A emergência do Estado representa apenas mudança quantitativa, ou uma real mutação, uma mudança qualitativa tendo lugar durante a formação da chefatura, como proposto por Carneiro [1970]? Nosso caso de estudo (a Gália) sugere que, no mínimo, no mundo celta, a

497 CUNLIFFE, Barry. Greeks, Romans & Barbarians: Spheres of Interaction. Op. cit. p. 94.

498 BRADLEY, Richard. The pattern of change in British prehistory. In: EARLE, Timothy (org.) Chiefdoms:

Power, Economy and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 61.

formação do Estado representou uma mudança qualitativa em comparação com o nível da chefatura que o precedeu.500

Esta conclusão também é coerente com o processo ocorrido entre os éduos, pois a instituição do vergobreto, como foi visto, pôde reforçar a estratificação de poder, além de os vários clãs, possivelmente, revezarem-se no poder. Tratou-se, dessa forma, de uma legítima mudança qualitativa. Na situação anterior, um rei detinha o poder por toda a vida, ainda acontecia em alguns povos na Gália e, ao que parece, no sudeste da Britânia. A princípio, esse processo provavelmente tentou evitar os conflitos entre os diversos grupos pelo controle do comércio com Roma. Contudo, se acreditarmos em César,501 as disputas internas eram constantes e a Gália estaria dividida por essas contendas.

Brun502 também destaca, não apenas a centralização, mas o aparecimento de um aparelho governamental especializado com poderes judiciários, militares e religiosos e em paralelo com uma economia monetária, como mostram as escavações dos oppida, contribuiram para a formação de Estados na Gália. A autora não se refere aos druidas diretamente, mas tudo indica sua contribuição para o fortalecimento da estrutura estatal. O exemplo da eleição do vergobreto atesta essa influência.

Assim, pode-se afirmar que os Estados celtas representaram os primeiros estados na Europa temperada. Dentre esses, o Estado éduo, inegavelmente, o mais bem sucedido. Durante a fase estatal dos éduos, há uma notável perenidade dos habitats no território.503

A romanização só é iniciada efetivamente a partir do período de Augusto. Contudo, isso não descarta a influência dos contatos com Roma, antes da conquista, como um poderoso fator que levou os éduos a se tornarem um Estado. A seguir, a evolução das importações mediterrâneas em Bibracte, segundo Gruel e Vitali.504 (Ver anexos, figura 5, p. 296: Representação do oppidum de Bibracte)

500 BRUN, Patrice. Op. cit. p. 19-20. 501 CÉSAR. Op. cit. VI, 11-12. 502 BRUN, Patrice. Op. cit. p. 20.

503 BARRAL, Philippe et GUILLAUMET, Jean-Paul. Le processus d´urbanisation en pays éduen: un état de la

question. In: Les processus d´urbanisation à la âge du Fer. Op. cit. p. 70

Elemento importado Até 50 a.C. De 50 a 20a.C. Período de Augusto

Urbanismo (vias públicas

romanizadas) Ausente Ausente

Construção de uma ampla via cortando o oppidum. Técnicas de construção

mediterrâneas Insipiente

Primeiros empréstimos reconhecidos

Casas romanizadas nos “bairros” nobres.

Cultivo da vinha

(vitis vinifera sp.) Ausente Presente Presente Cultivo da oliva

(olea europaea) Ausente Ausente Presente

Tipos de ânforas Dressel Dressel IA

Dressel IB Dressel IB Dressel IB Grafite grego (cerâmica) Presente Presente Presente Grafite latino (cerâmica) Ausente Ausente Presente