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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

3. AS FUNÇÕES POLÍTICO-JUDICIÁRIAS DOS DRUIDAS

3.2. O druida Diviciaco e o relato de César

Como sabemos por Cícero, em Sobre a adivinhação, Diviciaco era um druida. Todavia, César não relata essa condição do nobre gaulês. Este, juntamente com outros nobres celtas, freqüentava os acampamentos legionários de César.544 A atuação desse personagem, na pena de César, é a de um porta-voz dos chefes celtas. Após a vitória das legiões sobre os helvécios, Diviciaco intervém a favor dos celtas, em particular dos sequanos, oprimidos pelos suevos de Ariovisto. Diviciaco demonstra ter talento para proferir discursos e certamente era tido em alta conta entre os demais nobres celtas. Nora Chadwick545 destaca as funções oratórias do druida Diviciaco. O próprio César confessa, Diviciaco era o único gaulês em que ele tinha absoluta confiança.546 Mais adiante em seus relatos, César manda Diviciaco, frente à cavalaria dos éduos, até as fronteiras dos belovacos para devastar suas plantações.547 Após esse episódio, Diviciaco intervém de novo, mas, a favor dos belovacos derrotados pelos romanos.548 Por fim, o druida pede a César paciência com seu irmão Dumnorix, uma vez que sua audácia contra os romanos era devida ao fato de ser jovem e impetuoso.549 Contudo, quando este se recusa a seguir as demais tropas célticas que combateriam junto das legiões na Britânia, César manda matar Dumnorix. A partir desse ponto, Diviciaco desaparece dos relatos de César, é citado somente para fazer referências a ações no passado.

Essa passagem é particularmente interessante, uma vez que César investe nela certo tom dramático. Diz que Diviciaco o abraça e, em lágrimas, pede clemência para com seu irmão Dumnorix. Ainda nessa passagem, César diz que Diviciaco afirma que tinha grande influência sobre os éduos e sobre toda a Gália.550 O druida também confessa que Dumnorix agia não apenas em benefício próprio como também para diminuir sua influência e, mesmo, destruí-lo. Diviciaco, então, relata os planos de Dumnorix e como este age sem sua aprovação. O início desta conversa não se dá sem que César nos forneça uma nova informação sobre Diviciaco; apesar de parecer um comentário menor, a novidade é ilustrativa. César relata, para interrogar Diviciaco, teve que mandar saírem os intérpretes de costume e solicitar que Caio Valério Procilo551 intermediasse a conversa. Significa que Diviciaco não

544 CÉSAR. Op. cit. I, 16.

545 CHADWICK, Nora. The Druids. Op. cit. p. 108. 546 CÉSAR. Op. cit. I, 41.

547 Ibidem. II, 5. 548 Ibidem. II, 14. 549 Ibidem. I, 19-20. 550 Ibidem. I, 20.

551Ibidem, I, 19. Segundo CÉSAR. Ibidem. I, 47, Caio Valério Caburo recebeu a cidadania romana através de

falava latim, pelo menos não fluentemente.552 Obviamente, também não falava grego, do contrário, César utilizaria esta língua para se comunicar. Tal fato pode indicar que Diviciaco não tinha contatos tão freqüentes com os romanos e mesmo com gregos, apesar de o seu povo manter contatos comerciais com Roma.553

Pode-se mesmo dizer que, sem Diviciaco, César poderia não ter sido tão bem sucedido em suas primeiras campanhas na Gália. A análise dos relatos das fontes que discorrem sobre Diviciaco permite compreender o papel dos druidas na Gália pré-romana. Todavia, algumas controvérsias sobre o papel desse personagem referem-se ao fato de César não o apresentar formalmente como um druida, apesar de citá-lo várias vezes e de dar-lhe um papel extremamente relevante nos primeiros anos da Guerra das Gálias.

César não apresenta Diviciaco como druida, como faria Cícero sete anos após o fim das campanhas do procônsul. César retrata Diviciaco com atribuições de embaixador e “guerreiro”, como quando comanda, com ordens de César, um corpo da cavalaria eduana contra os belovacos. Costuma-se, então, questionar a função deste personagem e mesmo a presença dos druidas no momento da guerra das Gálias.

Jean-Louis Brunaux, em análise do papel de Diviciaco, avalia que os druidas estariam em decadência no período de A guerra das Gálias, que Diviciaco seria um druida estranho. Para este autor, os druidas estariam ausentes da vida política gaulesa durante a guerra das Gálias, devido à ausência de citações formais a esses personagens e ao fato de César não citar o papel druida de Diviciaco.

(...) Então, está claro que a contradição que sentimos entre o importantíssimo lugar que ele (César) dá aos druidas, sob a inspiração de Posidônio, e a ausência absoluta dos druidas da cena política gaulesa entre 58 e 51 a.C. Isso também foi sentido por César. A segunda razão é que César ignorava que Diviciaco fosse druida, ou que tal qualidade lhe parecesse suficientemente secundária, uma vez que ele não a cita. Dito de outra forma, os druidas, que tinham ainda uma existência física, ou bem discreta, como prova o exemplo de Diviciaco, não tinham mais o papel político determinante entre os éduos. Devemos crer que foi com razão que César escolheu o termo sacerdotes (sacerdotes) para evocar aqueles que legitimavam a escolha do magistrado supremo.

Estes fatos sugerem que os druidas não ocupavam um lugar preponderante. Isso nos convida a interrogar com uma atenção particular o estranho caso de Diviciaco.554

Discordamos de tais afirmações e propomos uma leitura diferente dos textos.

e por sua vez para o neto Caio Valério Procilo que era um chefe gaulês dos hélvios, um povo celta da Narbonense.

552 Sobre essa questão ver CHADWICK, Nora. The Druids. Op. cit. p. 106. MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites

da helenização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 68.

553 Isso coloca em questão a afirmação de BRUNAUX, Jean-Louis. Les Druides. Op. cit. p. 305, que especula

que o druida teria se instalado em Roma por vários anos por conta da viagem relatada por Cícero.

A conduta de Diviciaco relatada nos Comentários de César não está em contradição com as funções atribuídas aos druidas. Vejamos, César relata que os druidas arbitram as questões públicas e privadas (controversiis publicis privatisque constituunt),555 mais adiante, o procônsul relata que eles punem particulares e os povos que se recusem a obedecer-lhes (privatus aut populus eorum decreto non stetit).556 Logo, os druidas tinham prerrogativas jurídicas e intervinham nas contendas entre povos. Diodoro Sículo557 afirma, em tempos de paz, bem como de guerra, os celtas seriam influenciados pelos bardos. Estrabão558 também relata as mesmas prerrogativas. Este autor, contudo, é mais explícito que César acerca do papel dos druidas nas guerras. Ele diz que os druidas arbitravam as guerras e chegavam a separar aqueles prestes a se enfrentar. Dessa forma, esses relatos estão de acordo com a conduta de Diviciaco559 no decorrer das conquistas de César. O druida Diviciaco exerce a função de mediador entre os romanos, os gauleses e entre os próprios gauleses. Não há nada de estranho com o papel exercido pelo druida éduo.

No episódio envolvendo os belovacos, os éduos contavam com grande prestígio em relação a esse povo. Diviciaco cumpre o papel outorgado por César, inclusive de devastar as plantações desse povo belga. Porém, Diviciaco, cumprindo o seu papel de druida, coloca-se como protetor dos belovacos e intercede por eles frente a César, dizendo que os belovacos eram aliados (in fide) e tinham a amizade (amicitia) dos éduos.560 Além disso, os éduos gozavam de grande prestígio entre todos os belgas e estes costumavam fornecer guerreiros para ajudá-los nas guerras, provavelmente mercenários.561 Diviciaco também era grande conhecedor das rotas da Gália, pelo menos da porção leste; orienta as legiões de César para além do território dos sequanos, visando enfrentar o exército de Ariovisto.562

Diviciaco exerce o papel de mediador nos conflitos, bem como, obviamente, se posicionasse em prol dos interesses do seu povo. A afirmação de Jean-Louis Brunaux de que Diviciaco seria um druida bem estranho563 não procede. Na verdade, não resiste a uma análise do relato cesariano e da conduta de Diviciaco.

A informação de César de que os druidas estavam isentos do serviço militar costuma dar margem a mal-entendidos. César não diz que eles estavam proibidos de lutar, mas que

555 CÉSAR. Op. cit. VI, 13. 556 Ibidem. VI, 13.

557 DIODORO SÍCULO. Op. cit. V, 31. 558 ESTRABÃO. Op. cit. IV, 4.

559 Poderíamos evocar, também, o papel dos druidas nos relatos mitológicos irlandeses. 560 CÉSAR. Op. cit. II, 14.

561 Moedas éduas. 562 CÉSAR. Op. cit. I, 41.

costumavam se manter afastados das guerras (Druides a bello abesse consuetunt).564 Pelo que revela Estrabão, os druidas estavam presentes, sim e arbitravam as guerras. Dessa forma, os druidas estavam isentos de se envolver nas escaramuças, ou seja, no combate de fato, no corpo a corpo.565 Mas, uma guerra não se faz somente com o confronto físico. Uma vez que a guerra entre os celtas era extremamente ritualizada, fazia-se necessária a presença dos administradores das coisas sagradas. Esta passagem, se tomada de forma radical, pode levar a vermos em Diviciaco um druida atípico. Além disso, um grupo importante como os druidas poderia ser aniquilado nas guerras, e César diz que esta função estava a cargo dos cavaleiros (bellum incidit).566

Nora Chadwick também percebe em Diviciaco um druida atípico.

(...) o seu caráter geral (dos discursos de Diviciaco), as ocasiões em que eles foram proferidos, e acima de tudo o seu insight político, e nem mesmo a veemência da retórica gaulesa aí disfarçada, nos desacredita em ver a impressão de César na importante função de Diviciaco na política galo-romana.

(...) De fato, devia haver outros druidas entre os chefes que César conheceu. Por outro lado, não devemos ver Diviciaco como um druida típico, mas talvez, como um produto da política de “romanização” da jovem nobreza gaulesa. Contudo, certamente, em vista ao relato de Cícero, ele poderia ser um druida típico entre os melhores e no apogeu (...).567

Discordamos de parte dessas afirmações. Como já ressaltamos, as atitudes de Diviciaco são pertinentes com os relatos clássicos acerca das atribuições druídicas. Além disso, quando os druidas tinham interesses filosóficos e “científicos”, como relata César e Cícero, seria bastante natural, como homens sábios no seio da sua cultura, eles se interessarem por outros povos, principalmente quando a tais interesses se juntavam conveniências políticas. Todavia, a afirmação de Nora Chadwick hesita em classificar Diviciaco em típico ou atípico. Acontece pelo fato de que alguns estudiosos vêem erroneamente contradição entre a apresentação que César faz do druida e aquela de Cícero.

O fato de César não apresentar Diviciaco como um druida, é uma questão talvez jamais resolvida. Podemos levantar duas hipóteses, não excludentes. César não entendeu bem a função dos druidas, apesar de ter feito uma longa digressão sobre eles, descrevendo o seu papel religioso e político-judiciário. Ou, então, o procônsul omitiu a informação deliberadamente. Decerto não aceitamos uma das hipóteses de Arnaldo Momigliano,568 que

564 CÉSAR. Op. cit. VI, 14.

565 Segundo GUYONVARC’H e LE ROUX, Françoise. A civilização celta. Op. cit. p. 63, 130, os druidas não

estavam impedidos de combater. Os autores citam o objeto de nossa análise, Diviciaco, bem como o druida mítico irlandês Cathbad, que nas narrativas irlandesas por vezes entrega-se ao combate.

566 CÉSAR. Op. cit. I, 15.

567 CHADWICK, Nora. The Druids. Op. cit. p. 108-109. 568 MOMIGLIANO. Op. cit. p. 68.

César não teria encontrado druidas em suas campanhas, mas somente em suas fontes literárias, como os relatos de Posidônio. Para homens como César talvez fosse estranho um grupo exercer funções políticas a partir de prerrogativas religiosas. No final da República dava-se o contrário, ou seja, a religião conformava-se aos interesses políticos. Todavia, o próprio César era pontifex maximus.

O poder político dos druidas vislumbrado na conduta de Diviciaco é reconhecido por Christian Goudineau.

(...) Que esses druidas puderam gozar de um papel político importante, Diviciaco era a ilustração, ele que foi negociar com o Senado de Roma. Cícero não pode interrogar sobre tal poder, graças a Posidônio, poder que podia julgar os litígios públicos e privados, de se interpor entre dois exércitos no momento de se enfrentarem?569

Christian Guyonvarc´h e Françoise Le Roux vêem uma recusa por parte de Roma em relação do poder político dos druidas.

É normal, inevitável mesmo, que o novo poder civil instalado na Gália pelas legiões romanas tenha recusado toda e qualquer subordinação do político ao religioso. Recordemos o esquema estrutural romano que, ao contrário do esquema céltico, assegura a primazia ”temporal” (o rex ou os colsuls) sobre o “espiritual” (os diversos flâmines, cuja influência política real é completamente nula). A longo prazo, isto coloca sob investigação a questão da influência romana na Gália nos três quartos de século que precederam a conquista com a eliminação progressiva da realeza tradicional, por um lado, e por outro, com a ascensão das oligarquias e das ambições nobiliárias.570

Dessa forma, o ascendente dos druidas sobre a política deve ter sido um fator de desagrado para os romanos. O desaparecimento dos reis na Gália pode ter sido por obra dos interesses comerciais dos druidas.571 A influência dos druidas sobre os reis é destacada por Dio Chrisóstomo,572 que afirma, os reis nada podiam sem os druidas.

No entanto, não nos parece que César desconhecesse a condição druida de Diviciaco. Obviamente o procônsul teria se informado sobre o lugar do homem que tanto o ajudou nos primeiros anos de suas campanhas, inclusive conduzindo suas legiões pela Gália. César também sabia que Diviciaco tinha se dirigido a Roma para pedir auxílio ao senado contra os germanos.573 Vale ressaltar, Quinto Túlio Cícero, o irmão mais novo de Cícero, anfitrião de Diviciaco em Roma, em 60 a.C., era um dos legados de César, e com toda a certeza deve ter fornecido a este último informações sobre o ilustre gaulês que o ajudou; talvez até os tenha

569 GOUDINEAU, Christian. César et la Gaule. Op. cit. p. 92.

570 GUYONVARC´H, Christian e LE ROUX, Françoise. A civilização celta. Op. cit. p. 148. 571 Já analisado em outro ponto deste trabalho.

572 DIÃO CHRISÓSTOMO. Discursos. 32, 49. 573 CÉSAR. Op. cit. VI, 12.

apresentado. Desta forma, postulamos, César sabia que Diviciaco era um druida; mas a pergunta persiste: por que não revelou esse fato abertamente?

A resposta talvez seja César já estar imbuído de “romanizar” o sistema político celta. Da mesma forma que omitiu os nomes celtas dos principais deuses do panteão gaulês, nomeando-os Mercúrio, Apolo, Marte etc., omitiu a verdadeira função de certos membros da aristocracia gaulesa, limitando-se a relatar-lhes os atos e geralmente omitindo o lugar preciso na sociedade. Afora designar alguns homens como reis ou como vergobreto de momentos passados ou contemporâneos,574 descreve a elite com atributos genéricos de cunho romano como summus magistratus, senatus, princeps…575 O senado, como já foi abordado, era na

verdade constituído pelos druidas. César devia ter percebido, não havia lugar para os druidas na Ordem romana e sua ingerência sobre as questões políticas seria um empecilho para os interesses romanos.

O vocábulo sacerdotes é utilizado para designar o grupo que elegia o vergobreto. O fato de utilizar o vocábulo sacerdotes (sacerdotes)576 ao invés de druidas pode bem explicar- se: o procônsul evitava usar o vocábulo gaulês e preferia usar o vocábulo latino, revelando o equivalente em termos romanos, tal como na descrição dos nomes dos deuses celtas. César usou sacerdotes por entender a eleição do vergobreto dos éduos acontecer mediante rituais e ter cunho eminentemente cerimonial. Em todo caso, o uso do vocábulo sacerdotes (sacerdotes) está perfeitamente adequado com as prerrogativas dos druidas, ocupados das coisas divinas (rebus divinis intersunt), presidem os sacrifícios públicos e privados (sacrificia publica ac privata procurant) e regulam as práticas religiosas (religionis interpretantur). A decisão pelo termo latino sacerdotes também seria uma redução de César ao equivalente romano. Dessa forma, de fácil entendimento para a sua audiência em Roma.

Contudo, o procônsul aproveitou o conhecimento e o prestígio desse grupo, além de saber usar as contendas dos gauleses em seu proveito. A situação que César encontra na Gália livre, em março de 58 a.C., os termos da “ameaça germânica”, os conflitos de interesses entre arvernos e éduos, foram de grande valia para os objetivos políticos do general. É muito provável a atitude de César de tentar manter as coisas no estado em que se encontravam antes da chegada de Ariovisto; inspirada nas demandas de Diviciaco. Como exemplo, temos a

574 Ibidem. I, 16. É o caso, entre outros do vergobreto do ano de 58 a.C., Lisco. 575 Ver FICHTL, Stephan. Les peuples gaulois. Op. cit. p. 115-116.

576 CÉSAR. Op. cit. VII, 33. PLÍNIO, O ANTIGO. História natural. XVI, 251, também utiliza o termo sacerdote

(sacerdos) para se referir aos druidas que colhiam o visco. ERNOUT & MEILLET. Dictionnaire Étymologique

de la Langue Latine. Paris: Livrairie C. Lincksieck, 1967, p. 584-586. Derivado de sacer, o sacerdos é aquele

responsável pelas cerimônias religiosas em geral. VARRÃO. La Langue Latine. Paris: Les Belles Lettres, Jean Colbert (trad.), 1954, p. 54-55. O autor afirma que sacerdos vem de sacra que significa cerimônia do culto. FARIA, Ernesto. Op. cit. p. 883, sacerdo, -otis: “O que realiza as cerimônias sagradas”.

iniciativa de César em restituir a clientela e, consequentemente, o prestígio aos povos prejudicados pela intervenção dos germanos.

(...) Com a chegadade César, o estado das coisas muda; os reféns foram devolvidos aos éduos, sua antiga clientela lhes foi restituída, pois conseguiram de César novos créditos (...). A situação neste momento era a seguinte: em primeiro lugar, de longe, estavam os éduos; em segundo , os remos577.

César, certamente, buscou privilegiar os éduos, contudo, o estado das coisas, o rearranjo do sistema de forças da Gália, deve ter sido obra da influência de Diviciaco.

A idéia de druidas sem prestígio não se sustenta, simplesmente pelo fato de um dos protagonistas nos relatos de César ser um druida. Devemos nos ater ao fato, não casual, de Diviciaco ser aceito por César como intermediário privilegiado, em lugar de destaque entre os éduos, seu povo, e entre os demais gauleses. Se os druidas estivessem sensivelmente desvalorizados, como quer Brunaux,578 ou se Diviciaco fosse um druida desprestigiado, ele

não teria o destaque que o procônsul lhe reservou. Contudo, não interessava a César dar relevância aos atributos religiosos de Diviciaco; seria muito estranho tais atribuições, tão realçadas por Cícero, como o domínio da arte divinatória, o conhecimento intelectual e “científico” fossem desconhecidos por César.

É um equívoco vermos nas atribuições “guerreiras” e políticas de Diviciaco algum tipo de “desvio de função” dos druidas, creditado à provável decadência desse grupo na primeira metade do século I a.C. Não há nenhuma contradição entre o “Diviciaco de Cícero”, portador de habilidades religiosas (adivinhação) e “científicas” (fisiologia), e o “Diviciaco de César”, portador de habilidades políticas e interlocutor dos celtas. Muito pelo contrário, as atribuições do druida, quando de sua viagem a Roma, continuam quando das campanhas cesarianas. Não devemos esquecer, o próprio César era pontifex maximus,579 fato geralmente não debatido, suas funções políticas e militares costumam ser bastante referidas pelos estudiosos. Contudo, na lógica romana do fim da República não há nada de estranho em o sumo pontífice de Roma liderar várias legiões ou ser membro do Senado.

O argumento da romanização antes da conquista como um fator de declínio dos druidas entre os éduos também não se sustenta.

577 CÉSAR. Op. cit. VI, 12.

578 BRUNAUX, Jean-Louis. Les Druides. Op. cit. p. 312.

579 Ver GARNSEY, Peter & SALLER, Richard. The Roman Empire. Economy, Society and Culture. Berkeley:

University of California Press, p. 163-164. O autor discute a ligação entre a religião e a estrutura política do Estado romano.

(...) Entre os éduos, cuja vida política é a mais bem conhecida, o declínio dos druidas é anterior ao fim do século II a.C. Essa queda se deu pelo menos na sua expressão social, no momento em que César penetrou na Gália. Entre os belgas, que César afirma não deixavam penetrar os comerciantes, pelo menos, durante os primeiros momentos da conquista.580

A idéia de o contato com Roma – o incremento dos negócios da importação do vinho, a cunhagem de moedas enfim, a presença de comerciantes romanos na Gália livre a partir do século II a.C. – ser um fator de romanização “antecipada” dos gauleses e o druidismo ter sido atingido em sua influência, deve ser revista. Tal concepção parte do princípio de incompatibilidade dos interesses comerciais com as preocupações “científico-filosóficas” dos