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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

3. AS FUNÇÕES POLÍTICO-JUDICIÁRIAS DOS DRUIDAS

3.4. Os druidas como embaixadores e mediadores das guerras

3.4.4. Os druidas e a guerra nos relatos irlandeses

Na antiga Irlanda, a conduta dos druidas em relação à guerra não contradiz os relatos clássicos, ao contrário, os endossa. Vários são os momentos em que os druidas ou os bardos exercem o seu papel nos confrontos celtas. Um dos relatos evoca aquele de Apiano, onde os bardos exaltam o rei Bituitos e os druidas, referidos pelo escritor grego como embaixadores. O relato é chamado de O mal das crianças dos ulates, outro Ramscéla, relatos preliminares do Táin Bó Cúailnge (Sequestro das vacas de Cooley). A narrativa refere uma assembléia em

691 CUNLIFFE, Barry. The Ancient Celts. Op. cit. p. 102 692 LONIGAN, Paul. The Druids. Op. cit. p. 95-96.

Ulster, onde se vê descrita a suntuosidade da corte do rei do Ulster. Assim, Georges Dumézil narra a passagem:

(...) A assembléia foi brilhante, tanto pelos homens como pelos cavalos e vestimentas. Foi apresentado um espetáculo de corridas, combates, de competições de lançamento de velocidade, desfiles [?]. Na nona hora, o carro do rei foi conduzido sobre os lugares e os cavalos do rei obtiveram a vitória. Os cantores de louvores vieram agora celebrar o rei, a rainha, os poetas, os druidas, a casa do rei, sua tropa e toda a assembléia.694

Não se trata de uma batalha, mas competição. Contudo, possui um contexto de evocar uma situação guerreira. Os bardos, aqui retratados como cantores de louvores, exaltam o rei e os seus druidas. A semelhança com o relato de Apiano é premente. O rei Conchobar ou o rei Bituito estão inseridos em dois contextos bastante correlatos.

Os relatos mitológicos irlandeses podem fornecer importantes passagens sobre a atuação dos druidas no contexto guerreiro irlandês. O mais importante druida da Irlanda era Cathbad; tinha atribuições guerreiras a ponto de, segundo Christian Guyonvarc’h e Françoise Le Roux, “O druida não ser somente sacerdote. Ele é também guerreiro. A síntese parece um pouco estranha, mas ela possui uma fácil explicação. O protótipo do druida guerreiro é assim Cathbad, o primeiro dos druidas do Ulster”.695 Numa passagem, vemos Cathbad conduzindo homens a uma escaramuça. Esse relato evoca aquele acerca do ataque da cavalaria édua, liderada pelo druida Diviciaco contra os belovacos. Assim,

Naquele tempo vinha do sul um campeão chamado Cathbad. Ele era originário do Ulster, se bem que ele vivia no sul. Além disso, ele era guerreiro e campeão, era também um homem de grande sabedoria, um druida e um homem de grande saber. Havia vinte e sete homens em sua expedição. Em um deserto, ele encontra um outro campeão também com vinte e sete homens. Eles se engajam em combate; então fizeram a paz, uma vez que estavam em igual número. 696

Tendo em conta o relato, observamos o druida Cathbad numa atividade guerreira. Para Guyonvarc’h e Le Roux,697 Cathbad é druida ou guerreiro, varia segundo as circunstâncias. O poder guerreiro desse personagem está intimamente ligado a sua atividade sacerdotal. Cathbad é também grande vidente, de presságios importantes. Em outra passagem698 ele

profetiza um grande futuro para aquele que viria a se tornar o rei Conchobar, seu filho. Acerca disso, pode-se evocar a passagem, já citada, de Cícero, na qual descreve o druida Diviciaco, hábil na arte dos augúrios.

694 DUMÉZIL, Georges. Mythe et Épopée I. In: Mythe et Épopée I, II, III. Paris: Ed. Gallimard, 1995, p. 637. 695 GUYONVARC’H, Christian e LE ROUX, Françoise. Les Druides. Op. cit. p. 103.

696 DOTTIN, Geoges (trad.). L´Épopée irlandaise. Rennes: Terre de Brume, 2006, p. 72. 697 GUYONVARC’H, Christian e LE ROUX, Françoise. Les Druides. Op. cit. p. 104. 698 Ibidem. p.104.

Nessa questão da adivinhação, os druidas tinham um papel de suma relevância nas guerras. No Sequestro das vacas de Cooley, a rainha Medb, antes de se lançar contra o reino rival de Ulster, consulta o seu druida:

Quando Medb chega ao local onde se encontrava o druida, ela lhe demanda saber e previsão. “Muitas pessoas se separaram hoje de seus entes queridos e de seus amigos, disse Medb, (se separam) do seu país, do seu domínio, de seu pai, de sua mãe se eles não voltarem todos com boa saúde, será sobre mim que lançarão suas maldições. Entretanto, pessoas não partem ou não ficam em casa que não nos sejam mais caras que nós mesmos. E tu acha que voltaremos ou não voltaremos.” O druida disse: “Daqueles que não voltaram, tu voltará”.699

O relato é bastante explícito. Antes de iniciar sua expedição contra o reino de Ulster e o seu rei Conchobar, a rainha Medb solicita ao druida prever se ela voltará. O druida, de uma forma sucinta e bastante direta diz que sim. Os druidas são as figuras mais proeminentes nos dois relatos, possivelmente lideravam tais comitivas com caráter guerreiro. Esses homens deviam levar em torno de si um entourage de bardos e mesmo de guardas. Essa ritualização era crucial para a sociedade céltica, uma vez que dava lugar eminente e destacado para as figuras da comunidade, como os druidas, dando, assim, um caráter sagrado aos fatos ligados à guerra.

As ritualizações preliminares das batalhas atestam quanto a guerra tinha importância na vida das comunidades célticas, tanto nos relatos da Antiguidade como naqueles da mitologia céltica. Dessa forma, a observação desses dois relatos permite-nos concluir, tanto na Gália pré-romana como na Irlanda pré-cristã, toda uma série de procedimentos de cunho religioso era praticada antes das escaramuças. Os relatos selecionados revelam que mesmo na organização de comitivas antes das batalhas ou para negociação, um complexo esquema com características guerreiras, mas impregnadas de caráter religioso era praticado.