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PARTE I. A CIVILIZAÇÃO CÉLTICA NA GÁLIA NOS SÉCULOS II E I A.C

2. A FORMAÇÃO DE ESTADOS CELTAS NA GÁLIA – A CIVILIZAÇÃO DOS OPPIDA

2.4. O papel dos oppida na formação dos Estados celtas

2.4.1. Centralização, estratificação de poder e territórios definidos

Os oppida isoladamente não formaram um Estado, mas constituíram o centro nervoso de um complexo que, entre alguns povos do centro-leste da Gália, pode ser chamado de Estado. Esta região era justamente aquela que estava aberta à maior influência de Roma, tanto pela contigüidade com a Província Narbonense como pelos contatos com o comércio romano. No centro-leste da Gália encontramos entre alguns oppida os que claramente possuíam a condição central de um território. Enquanto no período de La Tène média,419 a paisagem no

centro-leste da Gália se caracterizava por aldeias nas terras baixas, no período seguinte, La Tène final, surgem aglomerações em locais elevados, os oppida. Estes ocupam um lugar central no território da tribo. A partir de La Tène final, esses sítios fortificados são preparados para receber uma população bem maior que as “aldeias” do período anterior. Para Buschsenschutz, tratava-se de um ato de fundação de uma nova cidade. O autor destaca quatro atributos que caracterizam os oppida como centros:

418 CUNLIFFE, Barry. The Impact of Romeo on Barbarian Society, 140 BC-AD 300. In: ____. The Oxford

Illustrated History of Prehistoric Europe. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 421.

419 Ver COLLIS, John. States without centers? The middle La Tène period in temperate Europe. Op. cit. p. 75.

1) Fortificações contínuas com a presença de portões monumentais. Dessa forma, ocorre uma separação bem definida entre a aglomeração e a paisagem circundante. Além disso, a população que vivia no interior do oppidum era regulada por leis. 2) Área habitada muito maior do que nos períodos anteriores, com o objetivo de abrigar um número muito maior de habitantes fixos. 3) Muitos oppida foram construídos em locais elevados, fora dos eixos de circulação, como grandes rios. Em La Tène média, as aldeias ficavam em locais mais estratégicos. Tais práticas devem estar relacionadas com concepções religiosas que legitimavam a localizações e funções desses novos sítios. 4) As diversas atividades concentradas nos oppida, manufatura de armas, cerâmica, etc., o plano dos santuários, o traçado de ruas, demonstrados pelas escavações arqueológicas, corrobora a função de local central.420

Collis421 também confirma a idéia dos oppida serem mais aptos a abrigar uma população maior do que em La Téne média. Quanto à construção em locais elevados, pode-se ver nisso uma volta a antigas tradições422 da construção de fortalezas em elevações423 oriundas talvez da Idade do Bronze.

Vale ressaltar que cada povo podia possuir vários oppida. De acordo com César,424 os helvécios, por ocasião da sua migração, teriam incendiado doze oppida; Vercingetorix incendiou mais de vinte oppida dos bituriges. Contudo, um deles detinha uma função central.425 No oppidum central se concentrava a classe dirigente.426 Uma das razões do sucesso de César deve-se ao fato dos oppida serem um ponto de referência para a ação das legiões. Ao contrário da situação dos germanos à época em que não construíam oppida, os povos celtas mais fortes da Gália centralizaram o seu poder. A guerra das Gálias demonstra que conquistando o oppidum central como Avaricum, a “capital”, todo o território do povo sucumbia.

O surgimento dos oppida acompanhou uma maior estratificação da sociedade céltica na Gália. A partir do século II a.C., os objetos encontrados nas sepulturas em torno dos oppida indicam uma desigual distribuição de riquezas. Para Patrice Brun, “A evidente hierarquia dos sítios fortificados também expressa marcada estratificação social”.427 Para ele, as evidências arqueológicas não contradizem as fontes clássicas que dividem a sociedade céltica em três categorias sociais: druidas, aristocracia guerreira e o resto da sociedade. As

420 BUSCHSENSCHUTZ, Olivier. The significance of major settlements in European Iron Age society. In:

Celtic chiefdom, Celtic state. Op. cit. p. 61.

421 COLLIS, John. The First Towns. In: Celtic World. Op. cit. p. 164.

422 Os celtas consideravam os morros sagrados, por serem a morada dos deuses e por abrigarem as fontes dos

rios. Essas fontes eram um meio de acesso ao Outro Mundo.

423 BUCHSENSCHUTZ. The Celts in France. The Celtic World. Op. cit. p. 577. 424 CÉSAR. Op. cit. I, 5; VII, 15.

425 COLLIS, John. The First Towns. Op. cit. p. 167.

426 ESTRABÃO. Op. cit. IV, 4, 1. Afirma que os mais nobres entre os alóbroges viviam no oppidum de Viena

(Vienne), que era a capital desse povo.

427 BRUN, Patrice. From chiefdom to state organization in Celtic Europe. In: Celtic chiefdom, Celtic state. Op.

fontes também fornecem dados de que, pelo menos entre as classes altas, a filiação era patrilinear e a residência patrilocal.428 Os casamentos arranjados por Dumnorix atestam esses indícios.429 A existência de escravos mantidos pelos celtas430 pode ter sido em grande parte fruto da demanda de mão-de-obra por parte do Mundo Mediterrâneo, era indício disso a descoberta de grilhões no Kent, sudeste da Britânia.431

Para Brun, a estratificação social não seria apenas vertical, mas horizontal.

A diferenciação social não era somente vertical. A especialização da economia tornou-se fortemente acentuada, particularmente nas cidades (oppida). Muito mais indivíduos passaram a praticar o artesanato e o comércio em tempo integral. Mas, é claro, a grande maioria permaneceu como camponeses que produziam os excedentes necessários para abastecer os moradores das cidades.432

O aparecimento de artesãos em tempo integral fornece uma nova visão da sociedade céltica dos séculos II e I a.C. A descoberta de oficinas nos principais oppida corrobora a idéia de uma sociedade mais organizada.

O comércio com Roma, intensificado no período dos oppida, originaria uma classe de comerciantes. César diz que o principal deus dos celtas protegeria quem se entregasse ao comércio, porém não dá qualquer informação sobre esse grupo, coloca-os no terceiro gênero de classe, destituídos de influência, são a plebe. No entanto, algumas pistas são fornecidas. Dumnorix, por exemplo, detinha um grande controle sobre os tributos e alfândega dos éduos. Jean-Louis Brunaux433 classifica-o de “comerciante indígena” e afirma que o surgimento da classe comerciante teria criado novas formas de poder concorrentes com os valores guerreiros. Para esse autor,434 a classe comerciante, que teria em Dumnorix um notável representante, escaparia ao modelo do guerreiro celta destemido, cunhado pelos autores clássicos. De fato, Dumnorix detinha um grande poder entre os celtas e particularmente no seio do seu povo, os éduos. Seu controle do comércio permitiu manter, provavelmente a seu próprio soldo, uma espécie de guarda pessoal.435

Tal colocação parece ser extremada. O relato de César deixa claro um Dumnorix bastante destemido, a ponto de o cônsul ter que mandar matá-lo,436 por conta de sua ousadia

428 A esposa teria que morar com o marido.

429 CÉSAR. Op. cit. I, 18. O nobre éduo Dumnorix casou-se com a filha de um nobre helvécio, sua mãe com um

nobre dos bituriges e sua irmã materna e outros parentes com nobres de outros povos da Gália.

430 Ibidem. VI, 13; DIODORO. Op. cit. V, 26.

431 ALLEN, Stefhan. The Celtic Warrior. Op. cit. p. 63. 432 BRUN. Patrice. Op. cit. p. 19.

433 BRUNAUX. Jean-Louis. Guerre et religion en Gaule. Op. cit. p. 154. 434 Ibidem. p. 157.

435 CÉSAR. Op. cit. I, 18. 436 Ibidem. I, 18; V, 7.

contra os romanos. O poder sobre o comércio com Roma de alguns aristocratas celtas corroborou para a ênfase de suas virtudes guerreiras à moda céltica. Dumnorix buscou realçar essas qualidades pela cunhagem de moedas com sua imagem e “contratando” um corpo de cavalaria para si. Contudo, é possível a ambição deste e de outros chefes em controlar o fluxo de mercadorias ter acirrado os conflitos internos da sociedade céltica. Em todo caso, atribuições de âmbito comercial não são incompatíveis com virtudes de caráter guerreiro. Além disso, o vinho era canalizado para fins ritualísticos que realçavam o prestígio dos grandes chefes.

A classe dirigente fixada nos oppida, em particular nos “oppida-capitais”, detinha o controle sobre um território bem definido. Os relatos de César atestam esse fato, pois durante o cerco de Gergóvia, o procônsul precisou se reunir com Convictolitavi, vergobreto dos éduos. Este, porém, não podia deixar o território dos éduos, caso contrário, perderia o seu direito ao cargo. Por isso, César437 teve que encontrá-lo no oppidum de Decetia (Decize, Nièvre) situado na margem direita do Loire, na fronteira entre os éduos e os bituriges. Esse fato revela o território dos éduos bem definido e o interdito do vergobreto ultrapassar as fronteiras define um caráter religioso a este mesmo território. Os reis da Irlanda pré-cristã também estavam submetidos a esse mesmo tabu.438