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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

4. O PAPEL DOS DRUIDAS NOS LUGARES DE CULTO

4.2. Os santuários celtas na Gália

4.2.9. O sacrifício de animais nos santuários

O tema do sacrifício de animais praticamente não é comentado nos textos clássicos. Os autores preferiram dar importância apenas aos sacrifícios humanos, talvez devido ao fato de o sacrifício animal dos gauleses não diferir, pelo menos quanto aos animais escolhidos, dos sacrifícios realizados na Grécia ou em Roma.

Os celtas sacrificavam aproximadamente os mesmos animais que os gregos e romanos. Tácito descreve os animais sacrificados em Roma por ocasião do incêndio de 66 d.C., no principado de Nero. O sacrifício aconteceu na reconstrução do Capitólio.

854 ANDRINGA, Willian Van. La religion em Gaule romaine Piété et politique (I-III siécle apr.J.-C.). Paris:

Errance, 2002, p. 120.

855 Ver GREEN, Miranda. The Gods of the Celts. Op. cit. p. 126-154. A autora faz uma explanação acerca dos

lugares de culto ligado à aos meios aquáticos nos territórios dos celtas.

856 GRUEL, Katherine. Les remparts de Bibracte. Op. cit. p. 171-206. A autora analisa as moedas encontradas no

(...) Agora o pretor Helvídio Prisco, após o pontífice Plautio Aeliano ter pronunciado a fórmula sacramental, ofereceu para purificar o lugar, o sacrifício de um porco, um carneiro e um touro, e as entranhas das vítimas foram expostas sobre um altar na relva, e ele suplica a Júpiter, Juno, Minerva e todos os deuses tutelares do Império de serem favoráveis (...).857

Esses mesmos animais eram sacrificados na Gália pelos celtas, contudo, entre os romanos não há a presença do cavalo e nem do cão,858 sacrificados e consumidos na Gália. A semelhança de culto deve-se, não a uma influência mediterrânea, mas, segundo Jean-Louis Brunaux,859 a uma mesma origem indo-européia. Tal opinião é compartilhada por Olivier Buchsenschutz: “(...) Se há uma evidente parentesco (dos cultos da Gália) com os cultos tradicionais da Grécia e da Itália, como assinala J.-L. Brunaux, não se trata de influência ou de imitação mas, ao contrário, da sobrevivência de uma origem comum”.860 Os costumes sacrificiais celtas na Gália demonstram certa originalidade, como a rejeição ao consumo de bois e cavalos sacrificados em muitas regiões da Gália.861

Algumas formas de morte demonstram paralelos com o sacrifício praticado entre os povos mediterrâneos. Um golpe de machado ou objeto perfurante no topo da cabeça, entre os cornos para os animais com chifres, era a forma tradicional de abate dos bovinos.862 Essa forma sacrificial não era a única, e certamente os animais poderiam ser degolados, abatidos com o corte das artérias do pescoço, entre outros. Outra particularidade encontrada em alguns santuários são os crânios dos animais imolados divididos ao meio no sentido longitudinal. Outro tipo de tratamento dispensado aos crânios é o seu aproveitamento como troféu. Nesses casos os crânios, particularmente de cavalos eram expostos por longos períodos. A análise dos crânios de cavalos descobertos no santuário de Gournay (Oise) revela que foram expostos no pórtico de entrada juntamente com crânios humanos e armas.

(...) Os crânios (de bois) recebiam um tratamento especial. É provável que eles fossem expostos com as armas os crânios humanos nos pórticos da entrada do santuário durante muitos anos. (...)

Os bois de Gournay, cujos crânios figuram nos pórticos da entrada entre as oferendas guerreiras, parecem vítimas sacrificiais ambíguas. Suas cabeças conservadas ao lado das cabeças dos seres humanos significam que quiseram conservá-las como lembrança e não somente como carne para consumo. Sua idade canônica, as marcas do trabalho que essas espécies têm dão um caráter ainda mais enigmático. Poderíamos nos perguntar se esses animais não teriam uma relação com a guerra, se não se tratava de butim tomado ao inimigo e, dessa

857 TÁCITO. Histórias. Op. cit. IV, 53.

858 MENIEL, Patrice. Les sacrifices d´animaux chez les Gaulois. Paris: Errance, 2001, p. 16. Após a conquista

romana, o costume de comer carne de cão e do cavalo começou a diminuir.

859 BRUNAUX, Jean-Louis. Les religions gauloises. Op. cit. p. 135.

860 BUCHSENSCHUTZ, Olivier. Les Celtes de l´âge du Fer dans la moitié nord de la France. Op. cit. p. 68. 861 MENIEL, Patrice. Les sacrifices d´animaux chez les Gaulois. Op. cit. p. 17.

forma, de gado tomado ao inimigo em posse, de pleno direito, à divindade guerreira a qual era oferecido o butim.863

Segundo Matthieu Poux, as escavações arqueológicas do santuário do oppidum de Corent revelaram que três quartos dos depósitos recolhidos dos fossos do recinto correspondiam a ossos de animais:

O seu estudo (dos restos animais) focalizou a determinação das espécies e o lugar que elas ocuparam desde a sua identificação em 1993, revelou um festim ritual: os traços de corte, a escolha das espécies e das partes, além da repartição nos fossos são indícios característicos de uma consumação de carne de caráter coletivo com características ritual.864

Os restos de ossos de animais indicam basicamente de animais domésticos de criações. Estes foram abatidos para fins de consumação. A estatística dos animais indica que a maior quantidade de animais representados era de ovinos ou caprinos.

Abaixo a estatística das espécies de animais sacrificados para o festim em Corent de acordo com os restos ósseos encontrados nos fossos.865 Em ordem de presença temos o carneiro, o porco, o boi, o cão e pássaros (basicamente aves de criação doméstica).866

Animais sacrificados % Carneiros e bodes 71% Porcos 23% Bois 4% Cães 1% Pássaros 1%

Dessa forma, os carneiros e bodes867 constituem a maioria dos animais sacrificados em Corent. Os animais abatidos eram majoritariamente adultos, entre dois a quatro anos. Esta faixa etária também é encontrada em carneiros abatidos em outros centros cultuais, como o santuário de Vertault (Cote-d´Or).868 O crânio dos ovinos constitui a maior parte dos achados

863 BRUNAUX, Jean-Louis. Les religions gauloises. Op. cit. p. 141. Ver MENIEL, Patrice. Les sacrifices

d´animaux chez les Gaulois. Op. cit. p. 59-60. O costume de colocar crânios nos pórticos de entrada dos

santuários parece ser típico dos celtas. Um dos exemplos mais conhecidos é o pórtico do santuário de Roquepertuse (Provença). Neste santuário foram encontrados crânios humanos encaixados em nichos no pórtico.

864 POUX, Matthieu. L´enclos cultuel de Corent. Op. cit. p. 79. 865 Ibidem. p. 80.

866 Ver MENIEL, Patrice. Les Gaulois et les Animaux. Elevage, repas et sacrifice. Paris: Errance, 2001, p. 17.

Após a conquista da Gália, a freqüência de restos de pássaros aumenta sensivelmente de acordo com as escavações no oppidum de Vesôntio (Besançon). O sacrifício de galináceos sofre um notável aumento durante a ocupação romana.

867 Ibidem. p. 80. A distinção entre os restos de carneiros e bodes é difícil de precisar, contudo, parece que há um

maior número de esqueletos de carneiros.

868 MENIEL, Patrice. Les sacrifices d´animaux chez les gaulois. Op. cit. p. 88-89. Nesse caso os carneiros não

ósseos, incomum para santuários deste tipo. A concentração de crânios de carneiros no fosso sul e nos arredores do bloco de basalto em frente à entrada do santuário sustenta a idéia de que estes crânios resultam de sacrifícios baseados em regras precisas.869 Um grande número de mandíbulas de carneiros ou bodes também está representado no fosso sul, mas, ausentes no poço à frente da entrada.

O porco870 é outro animal com presença relevante no santuário de Corent. Esta espécie é a única cuja cabeça é consumida.871 Os crânios de porcos encontrados em Corent não apresentavam sinais de golpe como no caso de outras espécies. Tal fato direciona à hipótese de um abate por sangria ou degola. A análise dos ossos dos suínos indica o uso de uma técnica de descarnar os ossos lombares das costas. Mais da metade dos ossos de porcos provém do fosso sul (53%), o resto vem do fosso leste (26%) e do fosso norte (21%).

Os santuários do período de La Tène final, séculos II e I a.C., apresentam uma série de constantes nas análises da presença dos ossos animais. Os restos de animais presentes nos sítios arqueológicos variam de acordo com a época. Contudo, observa-se que o carneiro e o porco mantém uma predominância de La Téne antiga até La Téne final. Coincidentemente, a predominância do carneiro e do porco é atestada no santuário de Corent. Contudo, para este santuário há um desvio para cima na proporção dos carneiros, bem maior do que dos porcos.

O quadro abaixa mostra a variação da percentagem de restos de animais domésticos nos mais variados sítios celtas na Gália (particularmente na metade norte) durante o período de La Tène (L T) de acordo com Olivier Buchsenschutz.872

Animal L T Antiga L T Média L T Final

Porco 35% 40% 37%

Carneiro 33% 21% 38%

Boi 27% 31% 14%

Cavalo 4% 2% 6%

Cão 3% 5% 4%

No caso dos sacrifícios de animais nos santuários, de um modo geral os animais preferidos são os carneiros e porcos. Contudo, existiam variações regionais nos santuários. Por exemplo, no santuário de Gournay (Oise) prevalecem os carneiros, em Bennecourt

869 POUX, Matthieu. L´enclos cultuel de Corent. Op. cit.Op. cit. p. 81.

870 Devemos ter em conta que a criação livre dos porcos não deveria diferenciar muito estes animais dos seus

ancestrais selvagens, os javalis (Sus Scrofa), devido aos intercruzamentos.

871 POUX, Matthieu. L´enclos cultuel de Corent. Op. cit. p. 82.

(Yvelines) é o porco que tem a maior presença.873 Já em Vertault (Côte d’Or), o cão ocupa o primeiro lugar na preferência do sacrifício do final de La Téne.874 De um modo geral, apesar das variações regionais, o porco e o carneiro têm a preferência nos santuários celtas do final de La Tène.

À semelhança do santuário de Corent, o santuário de Bennecourt (Yvelines) também apresenta uma predominância de ossos de carneiros e porcos (95%), sendo que um terço primeiro e dois terços do segundo.875 O critério de seleção dos porcos sacrificados também evoca o de Corent, ou seja, uma parte dos porcos tinha mais de dois anos. Também a cabeça dos dois animais é bem representada. No santuário de Bennecourt há a preferência pelos porcos machos em final de período de crescimento e as fêmeas após um longo período de longa reprodução. No caso dos carneiros sacrificados em Bennecourt, há a preferência pelos cordeiros. Sendo que a análise revela idades de seis meses, um ano e seis meses e dois anos e seis meses. Estes animais foram sacrificados no outono, uma vez que nascem na primavera.876 Em Bennecourt, os crânios dos porcos também têm traços de exposição às intempéries dos animais abatidos. Além disso, a forma sistemática de tratar o crânio do animal sacrificado se repete, assim, os crânios de animais suínos, de caprinos e de caninos estão fendidos em dois no sentido longitudinal. As vértebras apresentam traços específicos de retirada da carne.877

No período de La Téne final, as partes preferidas do porco estão bem assinaladas em alguns santuários. No caso do santuário de Benecourt, trata-se de 62 a 64% para a cabeça do porco, 20 a 36% para espátula e a coxa. Em Gournay, a preferência das partes do porco também segue a mesma rotina, recaindo sobre a cabeça, a coxa e a espátula.878

É rara a presença de animais domésticos, contrária a uma informação de Estrabão.879 Contudo, em alguns sítios, raros espécimes são encontrados como em Acy-Romance (Ardennes), da doninha (mustela nivalis) e do gato selvagem (felis silvestris).880 Em Corent há crânios e mandíbulas de sacrifícios de lobos (canis lupus) e raposa (vulpes vulpes) e gato

873 BRUNAUX, Jean-Louis. Les religions gauloises. Op. cit. p. 137.

874 MENIEL, Patrice. Les sacrifices des animaux chez les gaulois. Op. cit. p. 80-81. 875 Ibidem. p. 93.

876 Ibidem. p. 96. 877 Ibidem. p. 98-99. 878 Ibidem. p. 95, 104.

879 ESTRABÃO. Op. cit. IV, 5. O autor afirma que eram cremados animais selvagens dentro de imensos bonecos

de vime. Ver MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da Helenização.Op. cit. p. 54. O autor evoca um texto epigráfico erigido por mercenários gálatas a serviço no Egito, no qual relatam que teriam sacrificado uma raposa (Vulpes Vulpes). Momigliano, com propriedade, diz que se tratava de um chacal (Canis Áureos). Na verdade, são poucas as referências sobre sacrifícios de animais selvagens.

880 MENIEL, Patrice. Les Gaulois et les Animaux. Op. cit. p. 104-105. Ver BRUNAUX, Jean-Louis. Les

religions gauloises. Op. cit. p. 134-135. Para o autor, a caça, bem como os vegetais participavam diretamente do

mundo divino, por isso os celtas pouco sacrificavam animais selvagens. Esses animais só deveriam ser mortos em circunstâncias precisas.

selvagem.881 Sobre a caça, as informações que temos derivam de Arriano.882 Este autor relata que para cada animal abatido durante a caça, o caçador tem que fazer uma promessa de reposição à natureza.