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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

4. O PAPEL DOS DRUIDAS NOS LUGARES DE CULTO

4.2. Os santuários celtas na Gália

4.2.7. A representação da aristocracia celta nas moedas

A idéia de representar personagens reais da vida pública em moedas importadas, juntamente com a própria idéia de cunhar moedas, não foi original aos celtas. Os gregos e romanos já a praticavam. A moeda não representava somente um meio de transação, mas possuía poder simbólico, como afirmam Barry Buzan e Richard Little: “(...) As moedas não operam somente em formas muito convenientes de transação; elas têm importantes funções simbólicas, ao expressar o poder de impérios e reis (cujas faces geralmente aparecem nelas)”.818 Os celtas aproveitaram esta idéia na confecção de suas moedas, mas representaram os seus chefes mediante códigos próprios. Alguns exemplos são relevantes e emblemáticos. Analisaremos uma dessas moedas.

Trata-se de uma moeda de prata encontrada em Bibracte, principal oppidum dos éduos. Este objeto data do período da guerra das Gálias, ou é imediatamente posterior. Esta datação pode ser atribuída com certeza devido ao nome escrito em caracteres latinos Dubnoreix, que representa um personagem real amplamente citado por César e irmão do druida Diviciaco819 Dumnorix ou Dubnorix era um nobre éduo, vergobreto no ano 61 ou 60 a.C.

A moeda apresenta as imagens: (Ver anexos, figura 8, p. 299: Moedas dos éduos de meados do século I a.C.)

Anverso. A efígie de um personagem masculino. Em frente a seu rosto está escrito em

caracteres latinos o nome de Dumnocovero ou Dubnocovero (fiel ao mundo inferior) grafado

816 Ver MAIER, Bernhard, Dictionary of Celtic Religion and Culture. Woodbridge: The Boydell Press, 2000, p.

76; GREEN, Miranda. Dictionary of Celtic Myth and Legend. London: Thames & Hudson, 1997, p. 63; ROSS, Anne. Pagan Celtic Britain. Op. cit. p. 55-56. O caráter simbólico-religioso dos temas iconográficos das moedas celtas é reconhecido por todos os autores.

817 BRADLEY, Richard. The Passage of Arms. Op. cit. p. 170-173.

818 BUZAN, Barry and LITTLE, Richard. International systems in World History. Remaking the study of

international relations. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 211.

como Dubnocov.820 Atrás da efígie acha-se uma triscele821 estilizada. Da mesma forma, uma

triscele pode ser reconhecida no arranjo do seu cabelo acima da orelha. O tratamento dos cabelos segue a estilização adotada pelos celtas em relação às moedas gregas ou romanas (neste caso, o denário de prata romano), ou seja, tornam-nos revoltos em curvas ou espirais.

A triscele é um símbolo com conotação eminentemente religiosa. Dessa forma, é possível a efígie retratar um personagem com alguma função religiosa, um druida? Não há provas que nos permitam afirmar com convicção; contudo, o nome do personagem, “fiel ao mundo inferior”, bem poderia ser um epíteto e sua conotação parece ser de cunho religioso.

Reverso. No verso da moeda temos o nome de Dumnorix escrito como Dumnoreix. O nome

Dumnorix ou Dubnorix822 (rei do mundo inferior) pertence, sem dúvida, a um chefe celta, cujo papel foi relevante durante a guerra das Gálias. Este personagem é representado em pé, com capacete e usando uma cota de malhas.823 Veste, também, calças compridas, traje típico dos celtas na Antiguidade. Este traje é citado pelas fontes clássicas,824 e é representado freqüentemente na iconografia. Junto com o guerreiro, vários elementos típicos e emblemáticos dos guerreiros celtas, como são citados pelos autores clássicos, podem ser vistos, cota de malha, espada, cabeças decepadas,825 insígnia de guerra em forma de javali,826

trombeta de guerra (carnix) etc.

820 Segundo DELAMARRE, Xavier. Op. cit. p. 106; 220-221. Dumnocovero apresenta dois vocábulos: dumno

ou dubno “mundo inferior”, v. irlandês domun e couiros “leal, fiel”, galês cywir “correto, sincero”. Dessa forma, Dumnocovero seria “aquele que é leal ao mundo inferior”.

821 MARKALE, Jean. Noveau Dictionnaire de Mythologie Celtique. Op. cit. p. 224-225. Segundo o autor, a

triscele é um símbolo solar, mas sua característica ternária indica os três elementos fundamentais (ar, terra, água) ou os três compostos do ser (corpo, alma, espírito), as três dimensões (altura, largura, profundidade).

822 Segundo DELAMARRE, Xavier. Op. cit.p. 127; 220-221. Dumnorix apresenta dois vocábulos: Dumno ou

dubno “mundo inferior”, v. irlandês domun “mundo” ou domain “profundo” e rix “rei”. Dessa forma, Dumnorix

seria literalmente o “rei do mundo inferior”.

823 DIODORO SÍCULO. Op. cit. V, 30. O autor cita o uso de cota de malhas.

824 Idem. V, 30; ESTRABÃO. Op. cit. IV, 4; POLÍBIO. Op. cit. II, 28. CÍCERO. Defesa de M. Fonteio. Op. cit.

XV, 33. Cícero desqualifica os gauleses citando o uso das calças como um indício de barbarismo. Cícero diz: “Acreditam vocês que esses bárbaros (os gauleses) com suas capas e calças (bracatosque) teriam aqui uma atitude humilde e submissa (...)”.

825 DIODORO SÍCULO. Op. cit. V, 29 e XIV, 115; ESTRABÃO. Op. cit. IV, 4, entre outros. GREEN, Miranda.

Dictionary of Celtic Myth and Legend. Op. cit. p. 114. A autora ressalta que nas mitologias insulares as cabeças

dos heróis possuem poderes mágicos e propriedades de talismãs.

Moeda celta (quadro esquemático com os elementos da

moeda de prata dos éduos com a inscrição Dubnocov ou Dumoreix)

Povo Éduos (Borgonha, França)

Período meados séc. I a.C. Origem oppidum de Bibracte

Material prata

Modelo denários romanos do Vale do Ródano Temática anverso efígie e triscele

Incrição anverso Dubnocouiro (Dubnovov)

Significado Dubno ou dumno “mundo de baixo”;

couiro “fiel, leal”

Tradução possível “fiel ao mundo de baixo”

Temática reverso guerreiro celta armado. Carnix, torque, insígnia javali, espada, cabeça decepada

Inscrição reverso Dubnorix (Dumnoreix)

Significado Dubno ou dumno "mundo de baixo"; rix "rei"

Tradução possível "rei do mundo de baixo"

O chefe arverno Vercingetorix também tem sua efígie em algumas moedas. No anverso vemos sua efígie e o seu nome, Vercingetoreix. No verso há um cavalo rampante sobre uma ânfora. Acima do dorso do cavalo, uma espiral em “S”. O cavalo é um símbolo de poder ligado aos chefes. Nas moedas de Litavico, também citado por César,827 o nome aparece como Lita. Litavico é representado montado em um cavalo.

No santuário arverno de Corent várias moedas com imagens de reis ou chefes foram encontradas. Muitas dessas moedas foram cunhadas no próprio santuário. Uma notável descoberta é uma moeda que, no anverso, exibe a imagem de um mamífero carnívoro, uma raposa (canis vulpes) com a inscrição em caracteres latinos Louernios.828 Trata-se do rei arverno Loérnio, citado por Ateneu. O nome Loérnio significa “raposa” em gaulês,829 daí a representação do animal. No verso há uma roda de carro de combate, representando o carro do rei, citado no relato de Ateneu. Outros chefes arvernos são representados nas moedas de Corent, entre eles destacamos Epasnacto ou Epadnacto,830 citado nas moedas como Epad.

827 CÉSAR. Op. cit. VII, 37, 38, 40, 42, 54, 55.

828 POUX, Matthieu. L´atelier monetáire de Corent. In: L´Archeologue - Archéologie Nouvelle nº68, outubro-

novembro 2003, 49-50. Disponível em http://luern.free.fr/Coren_fr/Mont%E9taire.htm. Acessado em 2/5/2004.

829 DELAMARE, Xavier. Op. cit. p. 175-176. Em gaulês louernos “raposa”; ant. Irlandês nome de pessoa Loarn

“raposa”, ant. galês Louern.

830 CÉSAR. Op. cit. VIII, 44. Provavelmente trata-se do chefe arverno Epasnacto citado por César, que foi