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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

4. O PAPEL DOS DRUIDAS NOS LUGARES DE CULTO

4.2. Os santuários celtas na Gália

4.2.5. A ingerência dos druidas no consumo do vinho

Pelo apresentado em relação ao santuário do oppidum de Corent e pelas pesquisas em outros sítios da Gália do período dos oppida, o vinho importado da Itália era utilizado em grande parte para libações em poços rituais e consumo em festins comunitários. Mas, quem controlava a utilização do vinho na Gália pré-romana? Esta pergunta normalmente tem como resposta a aristocracia guerreira. Por outro lado, alguns autores postulam existência de uma espécie de classe comerciante784 gaulesa.

A idéia de perceber os druidas como uma classe ou grupo religioso afastado das atividades da sociedade céltica da Gália, constitui uma leitura frágil a uma análise mais

782 BRUNAUX, Jean-Louis. Guerre et religion en Gaule. Op. cit. p. 152-153.

783 Ver GREEN, Miranda. Dying for the Gods. Op. cit. p.139-140. A autora sugere o sacrifício das ânforas pode

ter substituído os sacrifícios humanos. Green baseia-se na cor e na forma das ânforas Dressel 1, que sugerem a silhueta humana.

rigorosa. Várias fontes clássicas, César785 em particular, já apontavam o papel político e jurídico dos druidas antes da conquista romana. Como foi relatado, é um equívoco ver a importação de vinho italiano, dois séculos antes da nossa era, meramente para consumo cotidiano. Não se tratava, pelo menos como regra, de um consumo reservado a momentos desprovidos de valor simbólico ou religioso. O fato das ânforas encontradas nos poços rituais ou fossos terem sido quebradas, muitas vezes de forma intencional e a golpe de espada, é extremamente relevante para o nosso estudo. A quebra das ânforas está inserida em uma finalidade de consagração. Este procedimento era possivelmente realizado pelo grupo que administrava o santuário.

O interesse dos druidas pelas questões relativas ao comércio do vinho com Roma pode ser percebido em alguns momentos. Em torno de 69 a.C., a Gália Narbonense, já sob a esfera romana, encontra-se em uma crise provocada pela administração do governador romano Marco Fonteio.786 Este havia instalado colônias de veteranos romanos à revelia dos gauleses e estava cobrando taxas extras para a passagem do vinho em território inimigo, a portoria (portorium uini institueret).787 De acordo com os relatos de Cícero, em Defesa de M. Fonteio,788 os celtas liderados pelos alóbroges estavam prestes a começar uma nova rebelião quando um tribunal foi instalado por solicitação e devido às queixas dos nobres celtas. Estes eram representados por um nobre alóbroge chamado Indutiomaro, que Cícero qualifica como o homem mais respeitado da Gália Narbonense (amplissimus Galliae comparandus est).789 Cícero fez a defesa de seu amigo Fonteio e desqualificou as reclamações dos celtas. Estes voltaram a se rebelar contra o domínio romano. Indutiomaro certamente era um druida,790 como se infere de suas funções de embaixador e porta-voz dos celtas, funções poucos anos depois assumidas pelo druida Diviciaco frente a César.

Os relatos de César acerca de suas campanhas na Gália fornecem informações valiosas sobre a importância do vinho. O nobre éduo Dumnorix mantinha o controle de parte do comércio do vinho proveniente da Itália. Segundo os relatos de Lisco,791 vergobreto em gestão em 58 a.C., Dumnorix estava controlando o vinho em circulação no território dos éduos e possivelmente em relação a outros povos, como os helvécios, sobre os quais tinha

785 CÉSAR. Op. cit. VI, 13.

786 Ver FERDIÈRE, Alain. Les Gaules. Op. cit. p. 64-66. CUNLIFFE, Barry. Greek, Romans & Barbarians. Op.

cit. p. 80-83. Os autores debatem sobre as taxas abusivas atribuídas a Marco Fonteio e que teria levado os

gauleses a uma nova rebelião, posteriormente reprimida.

787 CÍCERO. Defesa de M. Fonteio. IX, 19. 788 Ibidem. XII, 26.

789 Ibidem. XII, 27.

790 GREEN, Miranda. Dying for the Gods. Op. cit. p. 189. Para a autora Indutiomaro era um druida. 791 CÉSAR. Op. cit. I, 16-18.

forte influência, e os bituriges. Lisco também insinuou que Dumnorix estava boicotando o fornecimento do trigo éduo para as legiões romanas e mantinha uma cavalaria às suas expensas. Assim, temos informações de que Dumnorix controlava, pelo menos em parte, o acesso ao vinho, trigo e homens. Miranda Green792 levanta a hipótese de que Dumnorix fosse um druida. Não trabalharemos com essa possibilidade por falta de dados, mas levaremos em conta os interesses dos druidas no controle do vinho.

Vimos a importância do vinho na dinâmica religiosa celta na Gália às vésperas da intervenção de César nos assuntos gauleses. É um equívoco entender a demanda de vinho por parte dos celtas da maneira como as fontes deixam transparecer, ou seja, meramente como um consumo profano, resultando em bebedeiras de bárbaros. Na verdade, para que Dumnorix tivesse o controle do vinho era necessário um grupo interessado no uso dessa bebida sustentar politicamente o chefe éduo. Esse grupo era composto pelos druidas.

O druida Diviciaco, irmão de Dumnorix, poderia ter interesses no comércio. Alguns anos antes da intervenção de César, o druida havia pedido ajuda aos romanos contra o avanço dos germanos liderados por Ariovisto. Segundo os relatos de César,793 os suevos já haviam se apossado de um terço do território dos sequanos. A fronteira éduos-sequanos era delimitada pelo rio Saône, em suas margens os éduos mantinham dois oppida utilizados como portos794 para as importações da Itália. O avanço dos germanos sobre esta via fluvial colocaria em risco os interesses dos éduos, não somente quanto a fronteiras, mas poderia por em colapso o seu comércio e ameaçar a “federação monetária” firmada pelos éduos com os sequanos e lingones, a zona do denário gaulês.

A utilização do vinho nos recintos sagrados como o santuário de Corent mostra bem que um grupo estaria por trás da gestão das ânforas. Estas tinham dois destinos, como vimos: parte era oferendada nos poços rituais, através da sua destruição ritual ainda com o vinho no seu interior; e parte era sorvida nos festins realizados no santuário. Cabia aos druidas a destruição das ânforas por meio de um golpe de espada. Possivelmente, esse momento devia ser um dos pontos altos do festim. Enquanto um grupo golpeava as ânforas para que o vinho fluísse para o interior do poço, outro grupo deveria realizar cânticos e preces visando à divindade agraciada. Postulamos que o consumo do vinho no festim possivelmente era controlado pelo grupo que administrava o santuário. É possível, no entanto, uma parte dos

792 GREEN, Miranda. Exploring the World of the Druids. Op. cit. p. 44.

793 CÉSAR. Op. cit. I, 31-32. Segundo César, Ariovisto haviam assentado a tribo germana dos harudes em

território sequano.

convivas ficarem nas imediações do santuário, enquanto os druidas ficavam no interior com os convivas mais eminentes, devido às limitações das dimensões do recinto sagrado.

O festim guardava uma função de coesão e afirmação da aristocracia guerreira entre si e para com os ambactos. Dessa forma, a distribuição do vinho a título de recompensa para os clientes mais destacados na hierarquia era fiscalizada pelos druidas, para legitimar simbolicamente a proeminência dos nobres sobre os seus seguidores. Nestes momentos é que deviam surgir as disputas orais citadas por Diodoro Sículo.795 Este também era o momento de se fazer os juramentos narrados por Ateneu,796 nos quais os participantes do festim se comprometiam a dar algo em troca das ânforas de vinho recebidas. Muitos juravam com suas próprias vidas, como relata Ateneu. Estes juramentos deviam ser de prestação de serviços ao nobre mais destacado. Tais juramentos tinham caráter sagrado mediante a sua legitimação pelos druidas. Dentre os juramentos prestados nestes momentos estava, certamente, a fidelidade a seu patrono, até mesmo em circunstâncias extremas, como relata César.797. A valorização dos talentos dos grandes chefes ficava a cargo dos bardos, que os exaltavam com cânticos para assim atrair os clientes,798 tal como é relatado por Ateneu acerca do bardo que acompanhava o carro de combate do rei arverno Louérnio. O caráter grandioso da celebração também podia se refletir nos utensílios encontrados em túmulos e poços rituais celtas, datados do final de La Tène.799 Para Hilda Davidson,800 tais objetos localizados nas sepulturas indica a crença na realização de festins num outro mundo celta.

As disputas internas pelo poder passavam pelo controle do vinho e, conseqüentemente, pelo festim. A substituição do rei vitalício pelo vergobreto, seu equivalente eleito anualmente, visava primordialmente frear as disputas internas dos vários clãs pelo controle sobre o comércio do vinho, a princípio sob a égide dos druidas do clã do rei. Ao “democratizar” o cargo real através de um “rodízio de famílias”, os druidas buscavam evitar desgastar a sociedade numa disputa entre os clãs pela posse do comércio do vinho.

As informações trazidas pelos sítios arqueológicos dão conta de que o papel religioso e político do consumo do vinho nos sacrifícios e festins haviam se tornado, nos séculos II e I a.C., cruciais na dinâmica social celta, em particular na Gália Céltica. Os autores clássicos como Posidônio não conseguiram compreender o caráter sagrado do uso do vinho no festim

795 DIODORO SÍCULO. Op. cit. V, 28. 796 ATENEU. Op. cit. VI, 154, d-e. 797 CÉSAR. Op. cit. VII, 40.

798 CUNLIFFE, Barry. The Ancient Celts. Op. cit. p. 105.

799 Ver SOTO, Jose Gómez de. Les Celtes dans le Sud-Ouest de la Gaule. In: DOUSTE-BLAZY, Philippe (org.).

L´or de Tolosa. Op. cit. p. 25-27.

800 DAVIDSON, Hilda E. Myths and Symbols in Pagan Europe Early Scandinavian and Celtic Religion.

celta. Além disso, concentraram sua atenção no papel dos druidas em relação aos sacrifícios, mas sem vincular essas práticas à dinâmica religiosa e política do festim. Outra distorção que os copistas de Posidônio reproduziram foi, como comentado, o consumo do vinho desqualificado do seu caráter simbólico, relacionado às bebedeiras antecedentes de disputas violentas. Apesar de reconhecer que a circulação da bebida e da comida no sentido da esquerda para a direita tinha um caráter religioso, pois era o mesmo sentido de adoração dos deuses,801 Posidônio não articulava tal informação com o papel religioso do festim. Na verdade, Posidônio “helenizou” o gosto dos celtas pelo vinho. Em seus relatos, o filósofo dá grande relevância, por parte dos participantes do festim, de utensílios semelhantes àqueles no festim grego, como as oenochoés. Greg Woolf assinala a diferença do contexto do uso do vinho por celtas e mediterrâneos: “Embora o vinho fosse usado nessas sociedades, ele não pode ter sido consumido totalmente nos mesmos contextos sociais em que o era no sul”.802

A embriaguez ritual parece ter sido largamente utilizada pelos druidas e seguramente o vinho desempenhava nela um relevante papel, como afirma Jean-Louis Brunaux:

(...) De fato, a intoxicação, seja ela devida às virtudes alucinógenas de espécies vegetais ou ao consumo de bebidas alcoólicas, é um costume indo-europeu de razões religiosas e divinatórias. Na perda de controle do seu corpo e de sua razão, o indivíduo pode acreditar que sua alma deixa o seu invólucro psíquico, que ela pode a partir de então se comunicar com o mundo divino ou com os mortos. Os gauleses buscavam assim os sinais, visando conselhos. Parece que os druidas não se dispensavam, de forma alguma, de utilizar tais procedimentos.803

A embriaguez ritual não é explicitada formalmente na mitologia irlandesa, porém a importância ritual do consumo devia estar presente.804 A crença em bebidas alcoolizantes em quantidades inesgotáveis presentes em festins no Outro mundo estava presente. Num conto irlandês, o herói Cuchulainn está presente e há o relato sobre um caldeirão com conteúdo inesgotável. Trata-se do conto A doença de Cuchulainn e a única inveja de Emer.

Um caldeirão de hidromel intoxicante estava sendo distribuído para a família

O caldeirão com a bebida estava lá, ainda, no mesmo estado Sempre cheio.805

801 ATENEU. Op. cit. IV,152 d. 802 WOOLF, Greg. Op. cit. p. 179.

803 BRUNAUX, Jean-Louis. Les gaulois. Op. cit. p. 248.

804 Ver RANKIN, David. Op. cit. p. 29-30; 61-62. O autor discute o uso ritual da bebida alcoólica entre os celtas

e faz analogias com a mitologia irlandesa.

805 GANTZ, Jeffrey (org.). The Wasting Sickness of Cú Chulaind & The Only Jealousy of Emer. In: Early Irish

Myths and Sagas. Op. cit. p. 168. O conto trata de um adultério praticado entre o herói irlandês Cuchulainn e

Talvez os druidas quisessem manter a crença em uma bebida inesgotável. O vinho, importado em grandes quantidades, era servido fartamente nos festins. A oferenda nos poços rituais completava uma ideologia ligada à fartura proveniente das benesses das divindades do Outro mundo. Não descartamos os druidas também consumirem o vinho nos rituais dos santuários, uma vez manifestados os efeitos da bebida, deviam realizar adivinhações e sacrifícios em transe sagrado.806 A capitalização do vinho italiano para a esfera religiosa celta acompanhou o surgimento e expansão do fenômeno dos oppida celtas na Gália. Com a estatização de povos do centro-leste gaulês, como os arvernos e éduos, entre outros, a hierarquia celta se fortaleceu graças à legitimação dos druidas. O fortalecimento e a influência da oligarquia guerreira gaulesa no período dos oppida só podem ser considerados mediante o suporte de um grupo religioso.

O consumo do vinho tornou-se, então, regra de fundo religioso, uma verdadeira liturgia, com implicações sociais fortemente desejadas pela aristocracia guerreira. Em outras palavras, os nobres estavam dependentes da liturgia ligada ao consumo do vinho nos festins para terem o seu status legitimado. Além disso, o festim como instituição ditava regras de conduta para os nobres desejosos de ampliar o seu prestígio junto aos ambactos. Isso resultou no fortalecimento da classe druídica, a real promotora de tais regras de conduta entre nobres e cliente. Os achados arqueológicos do santuário de Corent, bem como em outros da Gália do mesmo período, atestam que uma liturgia estandardizada estava presente no uso dos elementos do festim, como o vinho. A disposição das ânforas vinárias em coroa em torno da entrada dos poços rituais indica um ritual bem preciso, de regras bem estabelecidas. As ânforas eram dispostas perpendicularmente ao contorno dos poços em suas vertentes norte e leste. O golpe com a lâmina de uma espada atingia a parte mais grossa da ânfora no sentido do comprimento.807 Assim, regras estabelecidas regiam o uso sagrado do vinho importado. Tal instituição e a execução dessas regras estavam a cargo dos druidas; eles dominavam o santuário e detinham grande influência sobre os valores da sociedade vigentes nos festins.