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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

4. O PAPEL DOS DRUIDAS NOS LUGARES DE CULTO

4.2. Os santuários celtas na Gália

4.2.4. O vinho: oferenda e consumo

Normalmente o comércio de vinho com o mundo romano768 nos séculos II e I a.C. costuma ser analisado sob o ponto de vista da quantidade e distribuição das ânforas importadas e da concentração desse material nos sítios. Contudo, só recentemente tem sido dada importância à forma de utilização do vinho pelos celtas na Gália, neste período assinalado por transformações.

Uma das campanhas de escavações efetuadas no santuário de Corent resultaram em 700 kg de cacos de ânforas. Contudo, esses valores podem ser bem maiores. Escavações mais recentes propõem pelo menos um milhão de ânforas para o oppidum éduo de Bibracte e 500 mil para o oppidum arverno, contemporâneo de Corent.769

Para Olivier Buchsenschutz a presença de ânforas nos sítios celtas não pode ser interpretada apenas do ponto de vista comercial.

Nos sítios muito ricos como o do monte Beuvray (Bibracte), nós podemos seguir hoje a proveniência e a evolução do gosto dos consumidores. A repartição das ânforas e sua quantidade muito irregular de um sítio para outro demonstra que o consumo do vinho estava

767 DIETLER, Michael. Débat de clôture de la table ronde. In: L´aristocratie celte à la fin de l´âge du Fer. Op.

cit. p. 324.

768 Ver NICOLET, Claude. Rendre à César. Économie et société dans la Rome antique. Paris: Ed. Gallimard,

1988, p. 61-63. O autor afirma que a cultura vinária, juntamente com a cultura da oliva, ocupa o segundo domínio produtivo de Roma nos séculos II e I a.C. O primeiro domínio era a produção de cereais e o terceiro a criação de rebanhos. O autor debate a enriquecimento das classes dirigentes romanas. Ao final do século I a.C., Roma consumia mais de um milhão de hectolitros de vinho, mais do que a Paris do século XVIII.

769 OLMER, Fabienne. Les aristócrates éduens et le commerce. In: L´aristocratie celte à la fin de l´âge du Fer.

ligado a acontecimentos excepcionais, festas ou banquetes. O seu depósito no solo não pode ser, portanto, interpretada diretamente em termos de penetração comercial.770

Até onde a pesquisa arqueológica pôde avançar, foi possível detectar a utilização das ânforas importadas em contextos com conotação política e religiosa.

No que tange ao estudo da utilização das ânforas no santuário de Corent (centro da Gália), o que chama nossa atenção é o fato de esses objetos importados da Itália771 estarem bem representados nesse santuário. Na verdade, o vinho é um elemento onipresente em santuários por toda a Gália desse período (exceção para parte da Gália Bélgica). Nos poços próximos à entrada do santuário, as ânforas estavam dispostas em forma de coroa ao redor da borda. Segundo a análise, as ânforas foram quebradas de forma intencional, conotando um ritual de libação,772 análogo às libações na Grécia e em Roma.

(...) Conhecemos exemplos similares na Grécia e em Roma. Entretanto, a função mais corrente desses fossos é receber libações de líquidos, de bebidas, mesmo de vegetais ou de produtos manufaturados que têm uma forma suficientemente fluida para serem vertidos a partir de um recipiente. Se esses diferentes materiais não deixam nenhum traço identificável no solo, o uso da libação entre os gauleses é atestado indiretamente pela descoberta de recipientes que parecem ter conhecido somente essa função.773

As ânforas de Corent foram ofertadas e o seu conteúdo, o vinho, vertido para o interior do poço ritual. Não apenas neste santuário, mas em várias regiões do território francês, foram encontradas ânforas deliberadamente partidas a golpes de lâmina, possivelmente de espada,774 demonstrando que esses objetos teriam sido dispostos ritualmente em recintos cultuais.775 Na Bélgica, na Armórica, no centro-leste da Gália, no sudeste e no sudoeste, a presença de ânforas em contextos de festins e com indícios de libações se faz notar nos santuários. Ainda que a oferenda de ânforas careça, em alguns casos, de estudos mais

770 BUCHSENSCHUTZ, Olivier. Les Celtes de l´âge du fer dans la moitié nord de la France. Op. cit. p. 47. 771 OLMER, Fabienne. Les aristócrates eduens et le commerce. Op. cit. p. 291. Pelas análises das marcas

identificatórias encontradas nas ânforas do oppidum de Bibracte é possível detectar sua procedência assinalada no sul da Etrúria (Ager cosanus), Lácio e Campânia. Todavia, as ânforas vinárias tardo-republicanas eram fabricadas em ateliês em toda a costa tirrênica italiana.

772 Ver SERGENT, Bernard. Les Indo-Européens. Histoire, langues, mythes. Op. cit. p. 367. O autor avalia a

importância do vocabulário ligado à libação entre os povos indo-europeus.

773 BRUNAUX, Jean-Louis. Les religions gauloises. Op. cit. p. 149-150.

774 POUX, Mattieu. Religion et société. Le sanctuaire arverne de Corent. In: Religion et société em Gaule. Op.

cit. p. 125. BRUNAUX, Jean-Louis e MALAGOLI, Claude. La France du Nord. In: Cultes et Sanctuaires in France á l´Age du Fer. Op. cit. p. 43. Também para o sítio de Balloy no norte da França, com ânforas

intencionalmente quebradas com golpes de lâmina.

775 Ver BRUNAUX, Jean-Louis e MALAGOLI, Claude. La France du Nord. In: ARCELIN, Patrice et

BRUNAUX, Jean-Louis (org.). Cultes et sanctuaires en France à l´âge du Fer. Op. cit. p. 43-44. BOUVET, Jean-Philippe et al. La France de l´Ouest. In: Ibidem. p. 87; SOTO, Jose Gomes de et al. La France du Centre aux Pyrénées. In: Ibidem. p. 119-121; BARRAL, Philippe. POUX, Matthieu et al. La France du Centre-Est. In:

aprofundados, o uso do vinho mediterrâneo em festins com caráter marcadamente religioso é bem perceptível. Mesmo que os santuários difiram devido à presença de outros tipos de práticas cultuais, o festim é onipresente.

Vale destacar que um dos temas mais recorrentes nos textos clássicos acerca dos celtas da Gália diz respeito ao gosto e mesmo à paixão pelo vinho, a ponto de trocar um escravo por uma ânfora, como afirma Diodoro Sículo, não sem espanto. Os relatos sobre a preferência dos celtas pelo vinho são sempre extremados, como vemos em Diodoro Sículo,776 em Biblioteca Histórica, “(…) Quando bêbados (os celtas) entram em estupor e loucura”; para Apiano,777 em Histórias, “(…) os gauleses são incontinentes (no tocante à bebida) por natureza”; Amiano Marcelino778, em História, diz “os celtas estão em embriaguez contínua”. César,779 em A guerra das Gálias, atribui a condição de suposta coragem superior dos belgas em relação aos outros celtas ao fato de não fazerem uso do vinho como os outros celtas “(...) porque os comerciantes vão muito raramente entre eles, os belgas não importam (o vinho), que costuma amolecer os corações (...).”

Obviamente, estamos diante de um clichê cunhado pelos autores clássicos, como outros associados aos celtas. Uma boa parte dos relatos acerca da obsessão dos celtas pelo vinho itálico deve ter se inspirado em Posidônio,780 que esteve no sul da Gália uns trinta e cinco anos antes do início das campanhas de César. Não sabemos se Posidônio presenciou os festins nos santuários e o uso do vinho para fins religiosos, contudo, é possível que os seus copistas, particularmente, Diodoro, Estrabão e Ateneu, tenham ficado impressionados com os relatos de disputas pela coxa de porco (porção do campeão). Não há nos relatos desses autores qualquer menção ao uso do vinho em contextos religiosos (contudo, Ateneu revela que o sentido de circulação do vinho entre os convivas era correlato ao sentido para adorar os deuses). Não devemos descartar, contudo, o sentido religioso destes festins e o uso sagrado do vinho781 desqualificados em prol de uma narrativa que visava apenas os aspectos mais “pitorescos” do dia-a-dia dos celtas.

776 DIODORO SÍCULO. Op. cit. V, 26. 777 APIANO. Histórias (Céltica). 7.

778 AMIANO MARCELINO. História. XV, 12. 779 CÉSAR. Op. cit. I, 1.

780 Ver CUNLIFFE, Barry. The Celts. A very short history. Op. cit. p. 13. Segundo o autor, Posidônio (135 – 50

a.C.) fez suas viagens pelo sul da Gália em torno de 90 a.C. Coube a ele dar uma descrição dos celtas como “nobres selvagens”, que costuma ser chamado de “primitivismo leve”. Para uma discussão sobre o comércio e os relatos de Posidônio, ver FREEMAN, Philip. The Philosopher and the Druids. A journey among the Ancient

Celts. Op. cit. p. 93-94.

781 Ver RANKIN, David. Celts and the Classical World. Op. cit. p. 121-123. O autor faz comentários sobre o

preconceito que envolve os relatos de Cícero e outros autores e os articula com o comércio entre romanos e celtas no final da República.

Para alguns autores, a troca de escravos por vinho se inscreveria numa lógica possivelmente comercial, ou mesmo “pré-comercial”.

(...) A descrição da importação do vinho quanto a ela resumir todo o comércio na Gália cabeluda, representa uma troca regular de produtos entre regiões relativamente distantes. Para os outros produtos, não é possível falar em comércio real. Nesse sentido, a Gália parece também estar numa natureza “pré-comercial”: as vias abertas, as redes de trocas já estavam instaladas, mas a circulação só concerne a alguns produtos.782

Um dos grandes problemas dos estudos sobre os celtas tem sua origem nos relatos antigos, uma vez que estes, em geral, desvinculam a religião e os druidas das atividades comerciais. O “pré-comércio” citado por Jean-Louis Brunaux deve ser visto como uma atividade inspirada por uma natureza político-religiosa. Não sabemos, por exemplo, qual impacto o comércio com Roma trouxe para o costume de capturar prisioneiros de guerra. Tudo leva a crer que os prisioneiros antes executados após o combate, ou sacrificados, eram reservados para a troca pelo vinho. Esse fato poderia influenciar a quantidade de pessoas sacrificadas. Contudo, isso não implica, em absoluto, que a prática dos sacrifícios humanos estivesse no fim.

A capitalização do vinho para fins sagrados, como demonstram os achados em muitos sítios arqueológicos, entre os quais o santuário de Corent, fez com que alguns autores vissem nesse fenômeno um paralelo com o sacrifício humano. Numa análise acerca das ânforas oferendadas em Corent, Miranda Green acredita em uma espécie de substituição aos sacrifícios humanos.783