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PARTE II. AS FUNÇÕES POLÍTICAS, JURÍDICAS E RELIGIOSAS DOS DRUIDAS

4. O PAPEL DOS DRUIDAS NOS LUGARES DE CULTO

4.2. Os santuários celtas na Gália

4.2.8. Os druidas e a emissão de moedas: oferenda e propaganda

No santuário de Corent, bem como em outros sítios da Gália, de vocação religiosa, certas moedas, como vimos, eram cunhadas no próprio espaço sagrado, sem constituir regra.831 Muitos destes objetos eram lançadas nos poços rituais juntamente com vinho mediterrâneo, animais abatidos e peças de cerâmica.

O costume céltico de depositar moedas em locais consagrados é largamente atestado pela arqueologia e estudado pelos especialistas.832 Esses locais geralmente eram meios aquáticos ligados ou não a santuários. O costume de atirar moedas em poços rituais possivelmente não difere quanto aos objetivos dos demais, contudo, sua associação com o vinho e com sacrifícios de animais confere uma originalidade às práticas religiosas dos celtas da Gália pré-romana.

Devemos ter em conta, ao ofertar a moeda – lançando-a em um fosso ritual ou curso d´água, - dá-se um valor simbólico da imagem nela representada aliado ao “destino” da moeda oferecida, o Outro mundo. O melhor exemplo é aquele descrito por Ateneu,833 o rei Loérnio corre em seu carro de combate pela campina, distribui moedas aos passantes e os convida para o seu festim. Em seguida, o rei recompensa um poeta – na verdade um bardo – por ter lamentado o seu atraso ao festim e por compor um belo poema exaltando o rei. Este então o presenteia com uma bolsa cheia de moedas. Essas moedas atiradas podem ter sido do tipo daquelas encontradas em Corent com o nome do rei como Louernos. A raposa e a roda estão associadas a Louérnio. A raposa834 evoca possivelmente o simbolismo do animal psicopompo (condutor de almas) para os celtas. Este animal substitui a imagem do próprio rei, presente, em alguns casos, no anverso da moeda. Quanto à roda, ela pode significar o carro solar e o movimento do sol associado ao deus Taranis.835 Sobre estas moedas de Loérnio, afirma Matthieu Poux,

831 Ver GRUEL, Katherine. L´oppidum, lieux de production et d´echanges: Les monnaies. In: L´oppidum de

Bibracte. Op. cit. p. 50-52. A maioria das moedas encontradas no oppidum provém de recintos com

características cultuais, particularmente meios aquáticos como fontes e reservatórios de água. Quanto aos locais de fabricação das moedas, ainda não há indícios de que tivessem vocação cultual.

832 Ver BRADLEY, Richard. The Passage of Arms. Op. cit. p. 155-190. O autor faz uma profunda análise dos

depósitos votivos em meios aquáticos.

833 ATENEU. Op. cit. IV, 152. Outros autores fazem referência ao rei Loérnio e sua opulência, com

ESTRABÃO, Op. cit. IV, 2, 3. TITO LÍVIO, Epitoma. 61, ORÓSIO. História. V, 14. Referências ao rei podem também ser vistas nas moedas comemorativas de Domítio Ahenobardo, acerca de sua vitória sobre os arvernos em 121 a.C.

834 THIBAUD, Robert-Jacques. La symbolique des Druides dans ses mythes et légendes. Paris: Ed. Dervy, 1996,

p. 144. Para o autor o simbolismo de psicopompo da raposa conservou-se no romance medieval “o romance da raposa”.

835 Ver DUVAL, Paul-Marie. Les dieux de la Gaule. Op. cit. p. 29. O autor interpreta a roda como um símbolo

(...) A alegoria do chefe arverno capaz de produzir moedas à vontade encontra, em Corent, sua tradução concreta na existência de uma oficina monetária que também forneceu partes de ornamentos de carro de ferro e bronze. A realidade encontra a história: aquela dos aristocratas gauleses reunidos em armas em um vasto recinto, para festejar e cunhar moedas com a sua imagem. Tal como as centenas de pequenos bronzes cunhados em Corent, com a imagem de uma raposa – louernos, em gaulês – erguida sobre uma roda.836

A prática de atirar moedas dentro dos poços rituais poderia ter o objetivo de associar a imagem do aristocrata com a prosperidade e o outro mundo. A presença das moedas no contexto sagrado serviria como um “veículo” de propaganda dos grandes chefes. É possível que quando um chefe atingisse a hegemonia no seio do seu povo ele imediatamente mandasse cunhar moedas com a sua imagem e símbolos compreensíveis para os celtas. Logo, estamos diante do que Matthieu Poux837 chama de “instrumentalização política do espaço consagrado”. Sobre Loérnio e a prática de utilizar moedas com imagem de aristocratas nos santuários, o autor afirma que com o rei Loérnio surge uma fase de uso de figuras contemporâneas. O autor evoca uma passagem de Floro,838 segundo a qual Vercingetorix, por ocasião da rebelião contra César em 53-52 a.C., reunia-se com os revoltosos em um local de assembléias juntamente com as massas nas florestas sagradas para realizar festins. Esses festins muito possivelmente eram realizados sob a orientação dos druidas. Podemos supor que a cunhagem de moedas com a efígie e o nome de Vercingetorix, sua circulação por ocasião dos festins, sua oferenda nos poços rituais, teriam criado toda a atmosfera propícia para a aceitação popular da liderança do chefe arverno. O espaço de reunião seria um santuário, os chefes se encontravam para debater os assuntos relevantes em relação aos seus interesses, enquanto as florestas sagradas seriam os locais de reunião com as massas, para comunicar as decisões da nobreza e recrutar apoio. Dessa forma, a instrumentalização política do espaço consagrado se dava, uma vez que a presença nos festins dos santuários era reservada aos membros da classe dirigente e seus seguidores mais eminentes.

Acreditamos que era necessário as imagens das moedas e o seu uso político legitimados por algum poder fiscalizador, não apenas como objeto de troca, mas símbolo. A “propaganda” promovida pelas moedas ajudava a própria legitimação de aristocratas como Vercingetorix. A escolha das imagens presentes nas moedas e a autenticação de seu valor simbólico, associado à imagem do personagem retratado, estava a cargo dos druidas. A partir símbolo da roda encontra-se desenhado em fichas atiradas em recintos votivos do sul da Gália. GREEN, Miranda. The gods of the Celts. Op. cit. p. 40-45.

836 POUX, Matthieu. L´atelier monétaire de Corent. In L´Archéologue – Archéologie Nouvelle nº 68, outubro –

novembro 2003, 49-50. Disponível em http://luern.free.fe/Corent_fr/Mon%E9taire.htm. Acessado em 2/5/2004.

837 POUX, Matthieu. Du Nord au Sud. Definion et function de l´espace consagré en Gaule indépendante. Op. cit.

p. 21.

do século II a.C., os grandes chefes faziam-se representar nas imagens monetárias como uma forma de conquistar o apóio da população. Este apoio não seria possível sem a aprovação do grupo presidente aos festins nos recintos sagrados.

Sobre a representação da imagem da cabeça humana nas moedas, Anne Ross declara, o caráter divino da cabeça também estaria presente nos retratos das moedas:

Os dados comprobatórios da numismática testificam a importância da cabeça humana na Britânia. Como na Gália, a imagem da cabeça comum nas moedas nativas, não uma cabeça como retrato derivado dos modelos gregos, mas as típicas cabeças divinas dos celtas. O real uso da cabeça como um motivo comum presumivelmente deve sua origem na influência do uso das cabeças clássicas, mas o seu desenvolvimento foi além da origem convencional e é tipicamente celta.839

Na verdade, algumas séries de moedas não traziam figuras divinas, mas régias.840 Contudo, o contexto divino da cabeça humana deve ser reconhecido. Ao copiar a idéia de representar a cabeça humana, a efígie, os celtas conceberam-na sagrada, ainda que representasse um personagem realmente existente.

Acreditamos que a oferenda das moedas nos poços contava com a presença dos druidas, certamente atirando as moedas com a efígie “sagrada” do aristocrata “emergente” juntamente com o vinho ofertado. Dessa maneia, vinho e moeda se juntavam na idéia de prosperidade. No relato de Ateneu sobre o rei Loérnio, este distribui moedas, oferece bebidas (vinho e cerveja gaulesa, a corma) e alimentos para a multidão. A associação entre os elementos do festim, como o vinho e os alimentos, com a moeda parece intrínseca. Em que pese uma possível “desmonetarização”841 das moedas emitidas nos santuários, entre os celtas, além das funções óbvias, elas entraram na dinâmica do sacrifício e da propaganda, logo, na esfera religiosa.

O controle do vinho, status a partir do século II a.C., estendeu-se ao controle sobre as moedas. É o caso de algumas moedas de Vercingetorix nas quais vemos um cavalo rampante sobre uma ânfora vinária.842 Acima do cavalo há um “S” que termina em espirais, provavelmente um símbolo do relâmpago, evocando o deus Taranis.843 A capitalização da ideologia religiosa e política do festim seria a condição fundamental para o aristocrata se

839 ROSS, Anne. Pagan Celtic Britain. Op. cit. p. 101-102.

840 É o caso de Louérnio que foi rei dos arvernos; Diviciaco, rei dos suessiones e Dumnorix que foi vergobreto

dos éduos. Na Britânia, Cunobelino, rei dos atrebatas, entre outros.

841 POUX, Matthieu. Du Nord au Sud. Op. cit. p. 21.

842 DUVAL, Paul-Marie. Monnaies gauloises. Op. cit. p. 87-89.

843 DUVAL, Paul-Marie. Les dieux de la Gaule. Op. cit. p. 55, 165. GREEN, Miranda. Symbol & Image in

Celtic Religious Art. Op. cit. p. 119-120. Uma estátua encontrada em La Châtelet (Haute Marne) é geralmente

afirmar no poder. A moeda passa a ser utilizada para esses fins. Sob a observância dos druidas, os símbolos religiosos presentes nas moedas passam a servir aos interesses das famílias celtas ciosas de poder. A imagem do aristocrata representado na moeda poderia ter em si um sentido sagrado.

O uso religioso das moedas entre os éduos é patente através da simbologia presente nesses objetos, como nas moedas de Dumnorix e Dumnocovero. Postulamos que o segundo personagem poderia ser um druida apoiador de Dumnorix. As moedas serviriam como um veículo de difusão desta união simbólica. A circulação das moedas com Dumnorix retratado como um grande guerreiro cercado de símbolos tipicamente celtas constituiria uma imagem claramente compreensível a todos, mesmo aos camponeses. Para o caso dos éduos, juntamente com o sequanos e língones, idealizadores do sistema monetário mais sofisticado da Gália no quadro da chamada zona do denário gaulês, a difusão das moedas com a imagem de Dumnorix daria ao chefe éduo um imenso prestígio no leste da Gália.

Outra junção da moeda ao poder religioso e político decorre do fato dos santuários situados em fronteiras capazes de integrar alguns povos. O caso da zona do denário gaulês atesta bem tal possibilidade. É possível que o santuário de Mirebeau (Côte-d´Or), na junção dos territórios dos lingones, na junção com os éduos e sequanos, estivesse relacionado com a “união monetária” entre esses três povos. O santuário de Mirebeau844 funcionaria como um centro sagrado, entre outras coisas, para legitimar simbolicamente a união comercial entre essas três civitates celtas. Obviamente, a consolidação de tais projetos, como uma “união ou federação monetária”, precisava da participação dos druidas, reguladores dos acordos e alianças.

Katherine Gruel destaca a importância dos “poderes emissores” de moedas. A autora corrobora a idéia de poderes emissores religiosos. Também reconhece um poder político emissor, mas destaca um poder religioso sustentando a emissão. Sobre este fenômeno observado na Gália Bélgica a autora afirma,

(...) Na Gália Bélgica, ao contrário (em relação ao poder político emissor presente na Gália Céltica), a difusão de séries de moedas se faz mais frequentemente a partir dos santuários ou dos pagi que os incluem. Temos nestas regiões um poder emissor religioso; a difusão das peças de bronze (...) seria proporcional ao prestígio do santuário.845

Vimos através das recentes pesquisas no santuário do oppidum de Corent que este fenômeno não se restringia à Gália Bélgica, mas que a Gália Céltica também apresentava os

844 FICHTL, Stephan. Les peuples gaulois. Op. cit. p. 66-69. O autor sustenta a idéia de um santuário “federal”. 845 GRUEL, Katherine. Monnaies et territoires. In: Territoires celtiques. Op. cit. p. 210.

seus exemplos de emissão em santuários. O avanço das pesquisas arqueológicas deve trazer à luz outros sítios com tais características.

Outra questão relevante diz respeito à tendência em separar o poder religioso do poder político. Entendemos que tal divisão para a Gália pré-romana, não condizia com a realidade. A autora ressalta, certas séries de moedas éduas poderiam mesmo ter sido emitidas pela família de Dumnorix,846 como os “potins da cabeça grossa”,847 poderiam ter servido para políticas de alianças visando clientelismo e matrimônios.848 A difusão dos potins de cabeça grossa849 poderia refletir a influência de Dumnorix. Essas moedas são comuns nos territórios dos éduos, sequanos e, sobretudo, helvécios, povo sobre o qual, segundo César850, Dumnorix

tinha particular influência. O mapa da distribuição do potin de cabeça grossa mostra a série monetária também presente nos territórios dos bituriges, belovacos e treveros, povos também citados por César851 em relação com os éduos. Tal fato pode demonstrar que a influência dos éduos ultrapassava largamente as suas fronteiras.

Ora, mesmo se as grandes famílias celtas estivessem por trás das emissões das séries de moedas, elas não poderiam sustentar essas emissões sem a legitimação do poder representado pelos druidas, responsáveis pelos códigos utilizados nas moedas. Também não devemos descartar a hipótese de que os druidas também tivessem interesses comerciais próprios e que eles mesmos poderiam representar um poder emissor. A separação que Katherine Gruel852 faz entre os poderes emissores e os poderes político, religioso, militar e sócio-econômico, na verdade, refere-se a diferentes grupos emissores de moedas. Todavia, uma vez que a esfera religiosa atravessava a vida dos celtas antes da conquista romana, o caráter sagrado atravessa possivelmente todas as emissões de moedas. Como vimos, acerca do santuário de Corent, a emissão de moedas servia ao interesses políticos dos grandes aristocratas, mas dependia sobremaneira do aval da elite religiosa presente no oppidum. Se a família de Dumnorix cunhava moedas, não devemos esquecer que uma das figuras mais importantes853 da Gália era o irmão mais velho de Dumnorix, o druida Diviciaco, algo interessado no controle da emissão monetária. Possivelmente, Diviciaco não era o único

846 Ibidem. p. 210.

847 Ver FICHTL, Stefhan. Les peoples gaulois. Op. cit. p. 82-84. Estas séries monetárias são encontradas

particularmente na zona do denário gaulês (éduos, sequanos e lingones). O “potin da cabeça grossa” tem este nome porque no verso há uma cabeça com feições que parecem grosseiras e no anverso de alguns exemplares há um cavalo estilizado em forma de triscele.

848 CÉSAR. Op. cit. I, 18.

849 “Cabeça grossa ou grande” se deve ao fato da efígie ser uma cabeça humana volumosa. 850 CÉSAR. Op. cit. I, 18.

851 Ibidem. I, 18 (com os bituriges); II, 14 (com os belovacos); VIII, 45 (com os treveros). 852 GRUEL, Katherine. Monnaiers et territoires. In: Territoires celtiques. Op. cit. p.211. 853 CÉSAR. Op. cit. VI, 12.

druida da família. A cunhagem de moedas também servia para pagamento dos ambactos, seguidores dos grandes chefes celtas da Gália, como Dumnorix, Orgetorix e Vercingetorix. As moedas utilizadas nesses pagamentos ostentavam a imagem dos seus patronos. Assim, ao oferendá-las em santuários ou em meios aquáticos, os seguidores dos grandes chefes davam a estes um estatuto de imagem sagrada, enviada ao Outro mundo. A imagem do chefe tornava- se, assim, patrimônio da divindade tutelar do recinto consagrado ao qual era destinada. Willian Van Andringa afirma que as moedas utilizadas como oferendas durante o período romano mantinham a tradição céltica,

(...) essas moedas (oferecidas nos locais de culto) tinham uma outra função diferente de alimentar a economia que servia a manutenção do culto. O caráter desses depósitos evocava muito mais as oferendas consagradas e invioláveis, ligadas ao patrimônio da divindade.854

Assim, a cunhagem de moedas nos santuários ou fora do contexto especificamente cultual, tem uma forte carga religiosa tanto pelo seu uso como oferendas, um costume largamente atestado entre os celtas,855 como pelo seu papel de divulgação propagandística da imagem dos aristocratas. A fiscalização da cunhagem ou pelo menos do uso dos signos utilizados na confecção dos objetos monetários cabia aos druidas. Estes signos tinham um papel preciso em sua correlação com a imagem do chefe cuja imagem estava presente na moeda. Mesmo que algumas séries de moedas fossem confeccionadas em ateliês dos oppida856 fora de contextos cultuais, a presença da ingerência dos druidas muito possivelmente se fazia necessária.