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4. T S Eliot em Ana Cristina Cesar

4.2. Índice Onomástico

No labirinto de referências de Ana Cristina Cesar pode ser difícil saber por onde começar. Não há começo nem fim: cada porta (pista?) abre outras portas e é preciso cuidado para não se perder. Pensando a importância da discussão em torno das notas ao The Waste Land escritas por Eliot, e toda a ambiguidade em torno delas, é proveitoso observar alguns procedimentos de Ana Cristina Cesar que parecem dialogar criativamente com esse dilema vivido por Eliot e pela crítica, a partir das notas que explicavam passagens obscuras. Talvez o mais significativo deles seja o Índice Onomástico, em A Teus Pés, seu único livro publicado em vida em editora (desconsiderando as publicações independentes). Ao fim do livro, encontramos uma lista com referências a autores, por ordem alfabética do sobrenome, sem referência a páginas. Apenas uma lista, que começa com “Alvin, Francisco” e termina com “Whitman, Walt”, passando não apenas por poetas e escritores admirados pela autora, mas também por críticos e amigos (“Buarque, Helô”) e exemplos de cultura pop (“Holiday, Billie”).

"Nessa confissão de seu processo poético, Ana Cristina se refere ao ‘Índice Onomástico’ que lemos no final de A Teus Pés: vinte e três nomes em ordem alfabética, sem a tradicional remissão ao texto, incluindo poetas famosos, amigos pessoais, analista. Equiparando-os. Mas é um índice também ‘fingido’: nem todos os nomes que lá estão incluem-se na obra; nem todos os que estão na obra incluem-se no ‘índice’, o que o torna, portanto, apenas parcialmente verdadeiro, já que o ‘profissional’ é aquele que esconde seus ladrões, não ‘no’ índice onomástico, mas sim ‘do’ índice onomástico. Como descobrir a ladroagem? Este é o desafio. Desafio para o leitor." (CAMARGO, 2003: 148)

Situando-se num contexto histórico bastante diferente daquele vivido por T. S. Eliot, para Ana Cristina, a relação à literatura e à tradição é outra. Sua posição não apenas é

posterior cronologicamente como marginal, no sentido de ela ser uma poeta brasileira, mulher, contemporânea. Será preciso pensar sua relação com Eliot a partir também desse viés, que permite um jogo de aproximação e distanciamento, na medida em que aquilo que Eliot está construindo com The Waste Land torna-se material já solidificado para Ana e delineia-se como passível de questionamento, discussão, reconfiguração crítica e criativa. O índice pode ser lido de certa forma como metonímia desse processo que ocorre com as notas de Eliot. Permaformativamente, neles, informa-se sobre as referências e ao mesmo tempo permite-se que se trave ainda a discussão levantada pela crítica de Eliot: é necessário ou não se referir a essas notas? Uma leitura do poema precisaria encontrar as ditas “fontes”? E mais que isso: o que há de verdadeiro nessas revelações da poeta? Assim como a intimidade na poesia é — também — teatro, o Índice Onomástico é também um jogo, uma brincadeira: é verdadeiro e falso.

O Índice Onomástico, pode ser lido como uma forma de se apropriar criticamente desse processo presente na relação entre leitura, escrita, crítica e leitores, tal como se tornou visível na produção e recepção do Waste Land. Trazer esse procedimento para dentro do seu fazer literário, entendendo-o e sabendo usá-lo como material para leitores já acostumados com esta prática, é também o gesto que modifica a estrutura dessa relação.

Algumas das mudanças entre o rascunho desse Índice Onomástico e sua versão final são, aliás, de especial interesse para a presente pesquisa62. Curiosamente, tanto Whitman, como Joyce e T. S. Eliot aparecem ou no rascunho ou na versão final do índice, mas os três nomes têm uma presença de alguma forma problemática nesses materiais. Explico: Whitman, como já mencionado, tem o nome riscado e acompanha um ponto de interrogação no rascunho, mas figura como último nome na versão final do índice. Já James Joyce, que está na versão final, não aparece no rascunho. T. S. Eliot, está na lista do Índice Onomástico em seu rascunho, mas foi suprimido da versão final. De alguma forma os três nomes representam mudanças, decisões especialmente complexas, diferentes dos nomes presentes tanto no rascunho como na versão final. De qualquer forma torna-se evidente que o trabalho de Ana

62 Não se trata aqui de notas explicativas, mas, como afirma Maria Lúcia, de um “índice também fingido”. A

respeito disso será bastante interessante analisar as diferenças entre o Índice como foi publicado em A Teus Pés (e suas edições posteriores), e um rascunho desse mesmo índice presente em um dos cadernos da poeta, preservado no arquivo do Instituto Moreira Sales. Há algumas significativas diferenças, alguns nomes a mais e outros a menos. Além disso é importante que haja nomes riscados e interrogações (por exemplo, Walt Whitman aparece no rascunho com um risco e um ponto de interrogação, mas está presente na versão final), o que demonstra que o índice não é mesmo, como já esperávamos, apenas uma lista de referências para elucidar o leitor, mas um material textual sobre o qual a poeta trabalhou e refletiu esteticamente. As escolhas a respeito de quais nomes deveriam ou não configurar o índice foram evidentemente frutos mais complexos do que uma mera listagem de presenças e diálogos.

Cristina Cesar na escrita do Índice não usa o mesmo procedimento de Eliot com as notas, mas algo que, de forma deliberada e elaborada, se coloca em discussão dentro desse tema sob a forma da questão: intertextualidade e valor das referências para o leitor. Se Eliot dizia arrepender-se de suas notas ao Waste Land, afirmando que elas teriam incentivado os leitores e críticos a sair em uma busca desesperada pelo próprio “Holy Grail”, Ana parece calcular meticulosamente para alcançar enviar seu leitor a uma caça ao tesouro que é jogo consciente, deliberado, proposto ao leitor.

Essa busca por referências, pistas, no entanto, é inútil, falsa? Em outras palavras, esse tesouro que caçamos na leitura de Ana Cristina deveria ser considerado “moeda falsa”, como lemos no poema de Inéditos e Dispersos? (CESAR, 2013: 224) É uma questão de difícil resposta. A prescrição de leitura é contraditória: devemos, pelo que as palavras da poeta nos indicam, a um só tempo procurar os indícios e pistas (no índice, por exemplo), e não nos perder nas alusões, saber que é tudo um jogo e não cair nas armadilhas (não nos tornar nem Gil nem Mary63). A tarefa parece impossível.

Porém é interessante perceber que é justamente a investigação da relação da poeta com T. S. Eliot, a quem seus poemas fazem referência constante, que nos leva a refletir sobre essa estratégia eliotiana, e sobre a forma como ela é repensada no Índice Onomástico de Ana Cristina, mas também sobre a modernidade dos textos contemporâneos, através da forma como a relação de leitura, a revelação explicativa de referências e alusões, é transformada pela poeta.

“E quando estas referências de leitura, ou de decifração, vão sendo intencionalmente escamoteadas, cifradas, intensifica-se a construção enigmática, cria-se um jogo entre autor e leitor, um jogo de segredo, o jogo da esfinge: ‘Decifra-me ou te devoro.’” (CAMARGO, 2003: 148)

Nesse sentido novamente percebemos uma possível relação com a quadrilha de Drummond: o leitor lê Ana Cristina lendo Eliot, por exemplo. Para Maria Lucia Camargo o jogo de segredo que se cria pelo ocultamento e revelação (ambos bem calculados, como vimos) estabelece uma relação com o leitor. Ana Cristina está, novamente, no meio da cena: entre quem adora e quem a adora, entre quem Ana Cristina lê e quem lê Ana Cristina. O jogo de segredo, criado por esse ocultamento e revelação das “fontes”, das alusões presentes em seu texto, estabelece um elo entre texto, leitor, e outro texto, ou: leitor e tradição literária. Não

63 “Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. (...) Já Mary me lê toda como literatua pura, e não entende as referências diretas” (CESAR, 2013: 50)

se trata, porém, como no caso de Eliot, de uma pedagogia, mas de situar seu texto numa relação com os textos da tradição, e nesse jogo trazer para a relação também o leitor: “Manifesto: segura a bola” (Inverno europeu, In A Teus Pés, CESAR, 1998: 41).

Figura 1: Índice Onomásico no carderno Meios de Transporte

Fonte: Instituto Moreira Salles

Retomando o rascunho do Índice Onomástico é possível notar outra marca ausente na versão final: uma frase que o acompanha, na lateral direita da página: “certas vozes claras/ objetos obscuros voando”. Não há maiores explicações, mas reitera-se em parte essa imagem de mistura entre algumas vozes claras, presenças óbvias em sua obra, e outros objetos obscuros. No índice, para Alice Sant'Anna, que analisa o caderno de rascunhos de A Teus Pés no artigo Meios de Transporte64, se trata de “um dispositivo, uma entrada para o livro. Tem a função dos créditos finais de um filme, passando na tela preta”. A imagem é interessante, porém seria preciso pensar em créditos a um filme que não incluem apenas a equipe de

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filmagem, os atores, diretor etc, mas também nomes que o inspiraram, referências pouco claras, que mais do que explicação suscitam a reflexão e o questionamento do espectador.

Questão idêntica vem à tona na menção às duas figuras de leitor presentes em Correspondência Completa, comentadas por Silviano Santiago em Singular e Anônimo mencionadas acima. “Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.” (CESAR, 1998: 120) O artigo de Santiago busca o que estaria para além das leituras desses imaginários Gil e Mary, que dificultam a escrita, nesse trecho de Correspondência Completa.

Pensando esses versos em relação à questão do Índice Onomástico e das notas sobre referências, por um lado não se quer um leitor que “leia para desvendar mistérios”, como Gil, e por outro, recusa-se também Mary, que “não entende as referências diretas”. É preciso lembrar que ao mesmo tempo que Ana Cristina chama o leitor para a ação, para a conversa, ela aponta caminhos e ao mesmo tempo os desencoraja, interdita. Não há leitura “correta”, ou não há leitor ideal que torne o fazer literário mais possível, nas palavras da própria Ana. Há que se jogar o jogo, porém ter consciência dele, escolher os momentos de entrega e abandono ("abandonemo-nos ao prazer", como afirmaria a própria autora de modo contraditório no ensaio a respeito da literatura feminina), mas também os momentos de distanciamento, quando nos serve buscar as referências, “flagrar a ladroagem”. Pois bem, a pergunta que nos resta então, enquanto leitores, é a escolha desses momentos: quando será proveitoso “flagrar a ladroagem”? Talvez justamente para deslindar uma forma específica de trabalhar a intertextualidade. Sem pretender, porém, realizar uma leitura que encerre o texto, resolva seus enigmas, e reduza, portanto, suas múltiplas possibilidades poéticas. No caso de T. S. Eliot e sua presença na obra de Ana Cristina, vimos que uma aproximação entre esses modos de lidar com a teia ou labirinto de alusões pode ser produtiva. Vejamos.