• Nenhum resultado encontrado

4. T S Eliot em Ana Cristina Cesar

5.3. Walt Whitman, feminino?

No entanto, para alguns leitores da poeta carioca, Whitman aparece justamente como exemplo de escrita feminina. Na sua resenha a respeito da tradução de Geir Campos para a obra de Walt Whitman, Ana Cristina cita Álvaro de Campos, ao descrever os versos longos de Whitman como “versos-ataques-histéricos”. Relacionando essa afirmação às palavras de Ana Cristina no depoimento do curso “literatura de mulheres no Brasil”, — “mulher é aquela que histeriza o tempo todo, aquela que joga no corpo, aquela que fala com o corpo” (CESAR, 1999: 271). Annita Costa Malufe salienta que o exemplo dado por Ana Cristina Cesar para essa escrita feminina que “gruda no corpo”, não seria uma mulher mas, justamente, Whitman.

No primeiro capítulo procuramos esclarecer que nossa proposta de leitura da questão da mulher na poesia de Ana Cristina Cesar passa mais pelos gestos poéticos de leitura diante da tradição, do que por características estéticas de sua escrita. Por outro lado, como bem observa Annita Malufe, é interessante salientar a relação entre a escrita que se propõe corpo, que afirma tocar o leitor, característica de Whitman, e a ideia expressa por Ana Cristina de que “a mulher é aquela que joga no corpo, histérica por natureza”. Porém, a ideia de que Whitman represente uma escrita feminina para Ana Cristina, ainda que possível consequência lógicas dessas afirmações da poeta, feitas em ocasiões diferentes, não é explicitamente ou diretamente expressa por Ana Cristina.

Levantemos, portanto, outra hipótese: não seria justamente o modo como Ana Cristina se apropria das propostas poéticas de Whitman e desse aspecto de corporificação e relação sensual/amorosa com o leitor, que o coloca num lugar tão próximo a aspectos femininos de uma escrita poética? A hipótese se torna relevante enquanto reflexão na medida em que a análise das alterações propostas por Ana Cristina na sua “tradução livre” dos versos de So Long nos mostra significativas mudanças nos termos whitmanianos: se para Ana Cristina a escrita do poeta norte-americano pudesse ser entendida como feminina, por que a necessidade de transformar seus versos, suprimindo deles “whoever touches this touches a man”, transformando o termo camerado em amor? Não serão estas formas, justamente, de abrandar o tom marcadamente masculino da poesia de Whitman?

Questionar a possibilidade de uma leitura da poesia de Walt Whitman como, em algum sentido, feminina, ou como exemplo, na escrita de um homem, de feminilidade, porém, não é exclusividade do diálogo com Ana Cristina Cesar. A própria fortuna crítica do poeta discute essa ideia. E como já pudemos perceber, a fortuna crítica de Whitman chega a poucos consensos. Contradizendo a ideia apresentada aqui por Annita Malufe, Sandra Gilbert no artigo The American Sexual Poetics of Walt Whitman and Emily Dickinson (BERCOVITCH, 1999: 123) ressalta o fato que Whitman é lido por muitos, a priori, como “parodicamente masculino”. Para a autora, tanto ele como Emily Dickinson se apresentam pessoal e poeticamente como se “buscassem provar a distinção entre uma tradição poética masculina e feminina numa paródia de papéis sexuais estereotípicos do século XIX”. (idem)

Torna-se discutível, portanto, associar tão diretamente a escrita de Whitman a um “traço feminino”, ainda que, para Ana Cristina Cesar, essa particular característica do autor, que descreve o livro como o próprio corpo, que descreve o encontro com o leitor tantas vezes como ato físico de toque, possa ser relacionada à ideia de uma escrita feminina, ligada à histórica figura da mulher histérica, que “joga no corpo”.

A construção poética de encontro com o leitor em Whitman tem diversas outras camadas de complexidade. Retornaremos a elas em seguida. Por enquanto vale, porém, afirmar que talvez para a pergunta “a escrita de Whitman pode ou não ser lida como feminina?” não haja resposta. Talvez se trate mesmo de uma pergunta ilusória. O que podemos argumentar é que Ana Cristina Cesar encontra, nas palavras de Whitman, uma tela para a projeção de aspectos da escrita que estão, para ela, profundamente atrelados ao feminino. Não é, porém, o caso de afirmar que as palavras inalteradas de Whitman representem, para Ana Cristina, uma escrita em essência feminina. É na recontextualização e alteração de pontos importantes de Whitman que Ana Cristina associa a ele uma escrita feminina, que não é de Whitman, mas de Ana Cristina Cesar, refletindo e escrevendo por cima das palavras do poeta norte-americano.

Talvez aquilo que torne o trecho vampirizado de Whitman mais feminino em Luvas de Pelica seja justamente a tradução adaptada da poeta carioca. Caso ela mantivesse o original whoever touches this, touces a man, seria ainda possível ler o trecho como feminino? Apenas a título de curiosidade, esbocemos a hipótese de uma tradução literal: “Camarada, isso não é um livro. Quem quer que o toque estará tocando um homem”. O efeito é inevitavelmente diferente daquele que temos com a tradução adaptada de Ana Cristina. A escrita feminina em Whitman está, então, nos olhos de quem lê, ou, na pena de Ana Cristina, que declama WW de um lugar completamente diferente do autor, além de alterar cirurgicamente termos essenciais

para essa transição. Talvez importe menos se Ana Cristina Cesar fez ou não intencionalmente a relação entre os “versos ataques histéricos”, mencionados por ela na resenha em que comenta Whitman, e seu discurso no depoimento a respeito da literatura de mulher ter algo que cola no corpo, “da histérica”, e mais aquilo que é feito da apropriação desse discurso whitmaniano (por vezes considerado extremamente masculino, por outras menos fixo a características de gênero).

O que podemos, talvez, imaginar, retornando à poesia (menos atentas às teorizações da poeta), é a apropriação de um aspecto whitmaniano que, na pena de Ana Cristina, abre caminho para diversos traços de uma escrita (e leitura) que se atrela à questão da mulher, seus espaços historicamente atribuídos, suas formas de expressão literária mais tradicionais e mesmo o questionamento de estereótipos como a “literatura confessional feminina”, já que Ana Cristina não retoma nada disso em vão, nem com olhar inocente. Talvez esse gesto sirva também justamente ao propósito de um tipo de denúncia (nada panfletária, muito poética) desse double standard, dois pesos e duas medidas da nossa leitura ingênua: estar “aos pés de” em Ana Cristina é lido como gesto feminino, confessional, enquanto spring from the pages to your arms em Whitman é gesto paternal e fundador de uma nação.

A crítica de Whitman se debate e continuará se debatendo em torno da questão da mulher na poesia do autor. Infeliz ou felizmente não daremos aqui solução a esse problema, até porque talvez não seja o caso de solucioná-lo. A própria crítica de Whitman, aliás, em suas contradições, nos mostra que a “porção mulher” do poeta (se quisermos usar o termo da canção de Gilberto Gil, tão cara a Ana Cristina) está nos olhos de quem lê. O que nos interessa é a leitura que Ana Cristina Cesar faz dele. O interesse dessa leitura, e suas inúmeras camadas, se revela mais na sua poesia e “tradução adaptada”, nas suas vampiragens, do que nas suas menções a Whitman em textos não-poéticos. Apesar de a poeta ter sido uma instigante e inteligente ensaísta, as leituras mais interessantes de Ana Cristina Cesar sobre poetas da tradição se revelam em sua escrita poética.