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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.9. Quadrilha: Ana amava Adélia, que amava Carlos que amava

Maria Lucia traz à tona também a questão feminina enquanto relacional, agora entendida como relação entre mulheres, quando afirma: “(...) Ana encontra em Adélia uma parceira. Uma cúmplice na tarefa de trazer a mulher para o texto e, dentro de suas margens, elaborar a inveja ao ‘Irmão maior’”. (idem: 73) Dito de outro modo: tal como desenvolve Maria Lucia, Ana tem uma leitura bastante crítica e ao mesmo tempo apaixonada de Adélia, e parece se interessar especificamente pela relação da escrita de Adélia Prado com Drummond. A relação primeira aqui é a parceria poética entre Ana e Adélia: que passa por identificação, admiração e crítica. Em seguida, a relação se dá então com Drummond, e pode ser entendida como metonímia para a relação de sua poesia com autores homens da tradição, os “irmãos mais velhos”. Em outras palavras, a questão da mulher não se coloca na leitura de Ana Cristina Cesar como poesia isolada, mas na percepção das relações importantes presentes no seu ensaio e na sua poesia: para ela, Adélia se relaciona com Drummond de um modo importante e relevante para pensar a questão da literatura feminina. Dessa forma, entender essa relação é entender também o lugar de Ana Cristina Cesar nessa discussão.

A ideia de “inveja do irmão mais velho” ressaltada pela leitura que Ana Cristina faz de Adélia (lendo Drummond), e que, portanto, Maria Lúcia de Barros Camargo faz de Ana Cristina lendo Adélia, lendo Drummond34 tem uma origem bastante específica apontada por Maria Lucia. Existe no arquivo de Ana Cristina Cesar um texto inédito que se constitui de

34 A “quadrilha” de leitura é importante para a própria Ana, aliás, como lemos em Pensamentos Sublimes Sobre o

Ato de Traduzir. No ensaio de 1980, Ana Cristina discute de forma íntima e apaixonada questões a respeito da

tradução, partindo do poema Going to Bed, de John Donne, traduzido pelos irmãos Campos e musicado por Caetano Veloso na canção Elegia. “(...) Augusto podia traduzir mas Caetano não podia cantar outra coisa senão essa elegia especialmente cintilante; e que diz que Donne escreveu essa elegia ou parte dela para o Caetano cantar para mim.” (CESAR, 1999: 236) A ideia se parece com essa quadrilha, em que a poeta brasileira escuta a canção que o músico brasileiro criou a partir do poema que o poeta brasileiro traduziu do poeta inglês. Ana ouvindo Caetano, cantando Campos, traduzindo Donne.

anotações para um ensaio a respeito do livro The Madwoman in the Attic de Sandra Gilbert e Susan Gubar. Importante obra da crítica literária feminista norte americana, o livro tece, a partir de um olhar histórico sobre as obras de escritoras do século XIX, uma discussão muito relevante a respeito das dificuldades práticas, simbólicas, individuais e coletivas na escrita de mulheres ao longo dos anos. Um dos pontos mais importantes da argumentação das autoras é a ideia de ansiedade de autoria, elaborada a partir de um diálogo com as teorias do crítico Harold Bloom sobre ansiedade de influência, nas quais Bloom descreve uma relação entre autores e seus precursores bastante inspirada na relação edipiana: filho batalha contra pai. Para Gilbert e Gubar, o modelo de Bloom é exclusivamente masculino e patriarcal. Descrições simbólicas como a luta entre filho e pai, ou a descrição da criação poética como ato sexual entre poeta homem e musa feminina, excluem da ideia de “ansiedade de influência” de Bloom — e de toda a sua teoria a respeito da relação do escritor com a tradição – as escritoras mulheres.

Where, then, does the female poet fit in? Does she want to anihilate a ‘forefather’ or a ‘foremother’? What if she can find no models, no precursors? Does she have a muse, and what is its sex? Such ques- tions are inevitable in any female consideration of Bloomian poetics.” (GILBER, GUBAR, 1984: 47)

Para as autoras o modelo psicossocial de Bloom é útil, por um lado, para apontar e definir o contexto patriarcal da criação de grande parte da literatura ocidental, mas inutilizável para distinguir as ansiedades e conquistas das autoras femininas daquelas dos autores masculinos. A escritora mulher não lidará com as figuras de autoridade da tradição da mesma forma que um autor homem: a maioria dessas figuras é masculina, e encarna a autoridade patriarcal, além de tentar encaixá-la, (a própria mulher), nas categorias estereotipadas que entram em conflito com a situação dela, sua própria identidade. A ideia de “ansiedade de autoria” feminina substitui a “ansiedade de influência”, pensada por Bloom para o autor homem. A escritora mulher se depara com questões que vão além da ideia de “superar os modelos anteriores”, tal como Bloom teoriza para o homem: “On the one hand, therefore, the woman writer's male precursors symbolize authority; on the other hand, despite their authori- ty, they fail to define the ways in which she experiences her own identity as a writer”. (idem: 48)

A presença da leitura desse texto por Ana Cristina Cesar, e mais do que a leitura, suas anotações e esboço de ensaio, apontam para a importância dessa teoria no pensamento da poeta. A relação com Adélia Prado, ressaltada por Maria Lúcia, vai nessa direção: refletir a respeito da “inveja” de Adélia pelo “irmão mais velho Drummond” (que poderia se espelhar

também na inveja do irmão mais velho que sente Ana Cristina por outros poetas, como Pessoa: “A gente sempre acha que é Fernando Pessoa”, dizia um de seus poemas mais curtos, por exemplo).

Pensar a respeito dessas relações entre poeta mulher e homem da tradição, a partir de um momento histórico de autoconsciência das escritoras ou a partir ainda de um momento de dependência em relação ao cânone tradicional, é pensar a questão da mulher na escrita de Ana Cristina Cesar: “Ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama de Baudelaire”.35 Essa discussão em torno da intertextualidade se aprofunda no capítulo Vampiragens, penúltimo segmento do texto de Maria Lúcia de Barros Camargo.

Parte-se do poema de A Teus Pés, que mistura inglês, espanhol e português em dois versos que Maria Lúcia toma como metáfora principal de um processo de escrita em Ana Cristina: “castillo de alusiones/ forest of mirrors.”, um castelo de alusões, uma floresta de espelhos. Além da interessante condensação de ilusões e alusões, em paralelo a elas há justamente a imagem de espelhos, não uma imagem refletida, mas muitas. Tais elementos, somados ao encontro de idiomas nesse poema fazem dele, para Maria Lucia, representante da construção proposta pela poeta. Camargo nos lembra prontamente que a ideia do texto como palimpsesto, referência a Borges e ideia corrente, não é particularidade da poeta carioca, e afirma estar ciente da “inexistência da originalidade absoluta” por parte de Ana C.. Não há nada de novo na existência desse processo em si. Explica: “Novo será o modo de ler. Nova será a explicitação desse projeto, a confissão da intimidade de seu modus operandi”. (CAMARGO, 2003:144).

Nesse trecho, encontramos uma articulação possível entre a proposta de Siscar — a intimidade como estratégia na relação com a alteridade-leitor —, e a confissão do modus operandi que se constrói de alusões, projeto poético intertextual por excelência, não apenas por ser texto, e portanto palimpsesto, mas por essa escolha de colocar o procedimento em pauta, por ser “autoexplicitação desse projeto”. Como afirma adiante Maria Lucia, “todos roubam versos, constroem castelos de alusões, florestas de espelhos, porém nem todos o revelam”. (idem:147)

“Conceber-se como palimpsesto parece ser a forma pela qual a poesia de Ana Cristina assume e elabora a contradição entre o velho e o novo: em vez de repetir os ‘gastos gatos’, trata de refazê-los, relocá-los, buscando sua fala de mulher, a fala de Ana Cristina, no labirinto das infinitas falas da tradição. Como olhar nos espelhos e encontrar a própria face, se eles apenas

35 Poema curto de Isabel Câmara, escolhido brilhantemente por Ana Cristina Cesar como epígrafe para o ensaio de 1979. (CESAR, 1999: 224), e discutida por Camargo brevemente no início de seu capítulo, trazendo à tona esse aspecto da relação com a tradição masculina da literatura.

refletem alusões? Elaborar estética e conscientemente essa profusão de reflexos sem culpa, sem luta edipiana, parece ser o modo de superar a ‘ansiedade da influência’, para tornar-se projeto estético, onde a própria voz se mescla intensa e intencionalmente às outras vozes.” (idem: 144)

É “buscando sua fala de mulher”, segundo a estudiosa, que Ana trata de refazer, como em palimpsesto, e não de repetir, vozes da tradição em diálogo. M.L. de Barros Camargo propõe que a superação da “ansiedade da influência” (Gilbert e Gubar) esteja justamente na proposta poética intertextual de Ana Cristina Cesar, enquanto prática que passa também pelo encontro de uma “fala de mulher”.

Há, por um lado, na poesia da carioca, certa busca de superação dessa “ansiedade de influência”, enquanto por outro lado, essa mesma superação conduz “contraditória e concomitantemente, a um movimento de adesão desse passado e de dessacralização desse mesmo passado, tornado próximo, presentificado”.(idem:145) A relação intertextual se elabora, nessa proposta hermenêutica, por meio de uma “relação carnal com o poema”, onde o erotismo aparece como um dos elementos da relação com outros textos. É a ideia da intimidade (ou construção dela) presente na proposta de relação com o leitor (como afirmaria Siscar), bem como com aqueles de quem a própria poeta é leitora, que permite uma relação com o passado, porém a mantém inserida no presente: “A fidelidade ao biográfico e a confissão da intimidade, mesmo que irônica e fingida, é um modo de inserção no presente, no agora”. (idem: 147)

A imagem principal usada aqui para descrever esse processo intertextual que se busca compreender foi resgatada de outra obra de Ana Cristina Cesar e é também a que dá título ao capítulo da pesquisadora: em Correspondência Completa, a remetente da carta endereçada a “Querida” afirma que escrever a deixa com “remorso de vampiro”. Para Maria Lucia de Barros Camargo, a metáfora do vampiro é imagem que possibilita pensar a intertextualidade na obra: “vida e morte, ou morto-vivo, ou nem morte nem vida; noite/ dia, sombra/ luz; espelho sem imagem; deuses e demônios; pecado e sacrifício; prazer e culpa, sexualidade e punição (…)”. (idem: 149)

Expandindo ainda as possibilidades do desenvolvimento dessa metáfora, Maria Lucia acrescenta à discussão as observações de Margot Glantz a respeito da figura mitológica do vampiro (Las metamorfosis del vampiro, 1980), um ser reconhecido geralmente como masculino, mas que tem também uma origem feminina e é associado à figura da bruxa, outro ser mitológico caracterizado pela mesma ambiguidade: feia/bela, jovem/velha etc. “O vampiro era, primeiro, mulher; a obscuridade da noite, sua proximidade com as mulheres que amamentam, o ventre caótico e fecundo, a fertilidade obscura da terra, (…)", afirma Glantz.

(idem)

A ambivalência genérica do vampiro-bruxa é uma pista promissora. Já no livro The Madwoman in the Attic, (comentado por Maria Lucia e lido por Ana Cristina Cesar), as discussões em torno da representação literária da mulher evidenciavam, segundo as autoras, o uso das metáforas opostas do anjo ou do monstro. O interessante é que ambas as figuras estariam excluídas da ordem social: o anjo por estar acima de qualquer humanidade, idealizado e não corporificado, e o monstro por estar abaixo, criatura definida centralmente pela corporalidade, sub-humana. Em tantos dos exemplos analisados pelas autoras, a figura do monstro feminino se apresenta justamente a partir da bruxa, e em alguns casos assumir-se bruxa é o caminho por onde algumas das escritoras mulheres começam o processo de superação da impossibilidade de escrita, à qual tantas são reduzidas no século XVIII e XIX.

O vampiro de Maria Lucia/Ana Cristina incorpora os valores criativos intertextuais, levando “ao processo que ergue o ‘castillo de alusiones/forest of mirrors’”. (150) Combinada à imagem da floresta de espelhos, a metáfora do vampiro resulta num processo em que não se vê mais a si mesmo: “espelhos que não refletem a imagem do seu criador, mas as múltiplas falas” — o vampiro, segundo a lenda, não pode ver sua imagem no espelho. A metáfora funciona impressionantemente bem para pensar a escrita de Ana Cristina, e nos remete também a um verso que Maria Lucia deixa de mencionar, título do artigo de Natalia Brizuela a respeito da presença da fotografia na poesia de Ana C.: “espelho, buraco na parede/ teu retrato, buraco na parede”. “Constrói-se o triângulo: o eu, o outro, a obra.” (CAMARGO, 2003: 150)

Seguindo por esse caminho: Maria Lucia observa que o ato (primitivo e erótico) de sugar o sangue não apenas alimenta o vampiro, mas transforma o ser “vampirizado” em seu semelhante. Não há morte para nenhuma das partes (“morto-vivo”), mas transformação. Aliás, para Maria Lucia o ato “em última instância garante aos dois a imortalidade”. (idem) Ora, falamos em “imortalizar” grandes poetas, ou grandes autores, e inversamente acusamos de “assassinato” das obras, em atitude purista, aquilo se apropria para transformar. Como o ser vampirizado é transformado em semelhante pelo vampiro, o procedimento poético de Ana Cristina não apenas rouba, mas entrega também a eles algo de si, transformando-os ambos: “Ao sugar gêneros, frases e palavras para nutrir-se, dá-lhes outra vida. Dá-lhes o seu próprio modo de ser. Identificam-se apesar das diferenças”. (idem) Nesse sentido, porém, a proposta de Maria Lucia em relação ao processo de vampiragem é diferente de um processo antropofágico: “Não há necessidade de deglutição total”, os outros do vampiro são transformados em semelhantes, sugados, mas não são destruídos nem totalmente apropriados.

Nas palavras de Maria Lúcia, trata-se da “construção de simulacros que transgridem mas não agridem”. A pesquisadora passa então à análise mais detalhada de algumas dessas vampiragens.

Para Maria Lucia, Carta de Paris, recriação traduzida do poema Le Cygne de Baudelaire, seria “um bom exemplo de sua vampiragem, da superação da ‘angústia das influências’”. (idem: 152) Entretanto, a superação da angústia, enquanto forma pacificada e tranquila de vampiragem, parece-nos pedir também outras análises, pelo ângulo tenso, da interpretação de uma atitude pouco plácida, e talvez não tão bem resolvida quanto supõe a pesquisadora, quando afirma: “(...) a transgressão, seja pela vampiragem, seja pela aparente ‘ocultação do crime’, deixa de ser agressiva para se tornar devota: ‘me jogo aos teus pés inteiramente grata’”. (idem: 152).

Entre Ana Cristina, Mário de Andrade e Manuel Bandeira: a análise de Atrás dos Olhos das Meninas Sérias, publicado em A Teus Pés, revela o interesse imediato e direto do poema para a questão feminina. É uma reapropriação dos últimos versos do poema Variações Sérias em Forma de Soneto, de Bandeira; na última estrofe, vampirizada por Ana Cristina, o verso “Mas poderei dizer-vos que eles ousam?” se refere, no poema de Bandeira, aos olhos do sujeito (masculino) que olha para as “meninas sérias”. Nas palavras de Camargo, “Elas, as meninas, sérias; eles, ousam. E desejam ousar”. A divisão do poema de Bandeira confirma representações bastante tradicionais de gênero. O poema de Ana Cristina Cesar utiliza o segundo verso do poema de Bandeira como título (Atrás dos olhos das meninas sérias), colocando as meninas no foco central do poema, em posição de destaque (se comparada ao poema de Bandeira), como aliás não ressaltou Maria Lucia de Barros Camargo. Ela observou, porém, como o decassílabo e a rima são desfeitos por Ana Cristina, transformando-se o trecho em “uma forma limítrofe entre o verso livre e a prosa”. (idem: 191) A mudança de gênero executada pela poeta carioca no último terceto de Bandeira transforma profundamente com tal gesto o sentido original do poema. Não se trata mais dos olhos que possivelmente ousam, mas das meninas: “Mas poderei dizer-vos que elas ousam?”. Segue o poema na íntegra, e na sequência, a análise de M. L. de Barros Camargo:

ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão, por injunções muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam?

“Na versão de Ana Cristina, o olhar é o da mulher, e isso muda tudo. Muda porque rompe com o estereótipo da mulher passiva e pura, tão cristalizada na representação idealizada (romântica) da figura feminina, das meninas sérias. É dela a possibilidade de ousar. Por trás dos olhos das meninas sérias, desconstroem-se as meninas de Bandeira.” (idem: 192)

Sem dúvida: a mudança do gênero, somada à quebra da versificação do poeta, desestabiliza o poema original e sua estrutura principalmente no que concerne o olhar masculino sobre as figuras femininas presentes no poema. A mudança no olhar, e na voz, como afirma Maria Lúcia, são as chaves para compreender esse exemplo de intertextualidade em Ana Cristina Cesar enquanto procedimento de vampiragem, que transforma a si e ao outro. Seria importante ressaltar, como complemento da ideia de vampiragem, que nossa leitura é interpelada pela leitura de Ana Cristina. É mesmo na sua “voz” que os versos passam a ser outros, ainda que ecoando e dialogando com os originais. Na medida em que “poderei dizer-vos que elas ousam” surge como uma resposta a Bandeira, as meninas antes sérias e silenciosas, seres observados de longe, ganham agência, por meio do gesto imaginativo de Ana Cristina Cesar. Ou seja, desentranhado (para usar um termo do próprio Bandeira que lembrou Moriconi) algo dos versos de Bandeira, repetidos quase idênticos, o poema de Ana Cristina propõe novas “meninas sérias”.

Para concluir: as perguntas de alguns críticos ecoam: que diferença faz se a poeta é homem ou mulher? Para além do essencialismo, e embora não baste ser de mulher, o processo de escrita de Ana Cristina está marcado de maneira evidente pela forma específica como a mulher trabalha o feminino. A respeito do segundo poema desentranhado ou vampirizado a partir de Bandeira, vale então ressaltar ainda algumas palavras de Maria Lucia de Barros Camargo:

“Estabelece-se uma relação triangular que agudiza as tensões entre passado e presente, entre tradição e contemporaneidade, entre palavra alheia e palavra própria, entre modelo masculino e a poesia de mulher. E, afinal entre duas imagens de mulher. A desconstrução da figura feminina que o soneto construía da lugar à multiplicidade de imagens da mulher, apontando para um elenco de estereótipos que reproduz, ironicamente, o olhar masculino e a tradicional dicotomia da mulher angelical x a diabólica e pecadora. A menina séria avisa que ‘vai virando um avião’, termo que, especialmente na gíria masculina designa a mulher atraente, sensual. Este avião se desdobra em várias outras representações: a ‘cigana’ (de olhos oblíquos?), a ‘separatista protestante’, a ‘melindrosa basca’. Em todas elas um traço comum: a transgressão. A ousadia.” (idem: 193)

“Parece, no entanto, que a possibilidade da ousadia e da sobrevivência estará em afiar as garras, aguçar felinidades, mas também em alçar voos mais ousados, sabendo ‘sugar’ o velho sangue para transformá-lo no 'gás de decolagem'. Para transformar o ponto de vista, para olhar e escrever como mulher, com todos os riscos e desdobramentos.” (idem:194)

O projeto é tentar caminhar sem se perder no labirinto de alusões poético-textuais, com a ajuda do fio condutor de certa reflexão sobre a mulher. Mas a contrapartida é que, para não se perder na negatividade do discurso teórico sobre o feminino, será também produtivo aceitar o desafio do viés intertextual, metaforizado em vampirização, ponte de saída desse impasse teórico, e retorno ao texto.