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4. T S Eliot em Ana Cristina Cesar

4.4. Prufrock e Senhor A

No capítulo A arte da conversação do livro Até Segunda Ordem Não Me Risque Nada, Flora Sussekind discute a ideia de uma poesia construída a partir da noção de conversação, em “um terreno cheio de interferências em que Ana Cristina ensaia seu método, e do constante exílio voluntário em métodos alheios (tradução), linguagens não verbais (pictografia, desenho), diários de bordo e tantas reescrituras de um mesmo, e às vezes mínimo, texto seu”. (SUSSEKIND, 1995: 9) Para discutir a ideia central de Sussekind, de uma poesia em vozes, ademais, vozes em diálogo, a estudiosa precisa passar por algumas das presenças de outros autores na escrita de Ana Cristina, os tais “exílios voluntários em métodos alheios”, que além da tradução, arrisco, podem ser entendidos também como uma outra forma de descrição dos vários modos como a intertextualidade se faz presente em sua poesia. É nesse contexto que Flora Sussekind menciona a relação de um poema de Ana Cristina com a obra de T. S. Eliot, segundo ela, relação esta semelhante ao jogo que ocorre em 21 de fevereiro com o Belo Belo, de Bandeira, ao qual Ana Cristina, “impondo a lâmina” (idem), acrescenta a ameaça (“tenho tudo que fere”), como vimos anteriormente nas palavras de Maria Lucia Camargo. O poema mencionado por Sussekind é Senhor A, publicado no

último segmento de Inéditos e Dispersos, contendo poemas escritos entre 1982 e 1983, que se refere diretamente ao poema The Lovesong of J Alfred Prufrock, de T. S. Eliot, e o seu célebre verso “In the room the women come and go/ Talking of Michelangelo”. Em Senhor A lemos: “Na sala ao lado não há mulheres/ Falando de Miguelângelo”.

The Love Song of J. Alfred Prufrock foi publicado por Eliot em 1915. Para alguns, como F. R. Leavis, o poema é considerado uma quebra completa com a tradição do século XIX, no sentido de desafiar noções tradicionais de “seriedade” (“it defies the traditional canon of seriousness” (SOUTHAM, 1978: 120)). Para Ezra Pound, em carta escrita a Hariet Monroe no mesmo ano de publicação do poema, tratar-se-ia de “um retrato satírico sobre a futilidade” (“a portrait satire on futility”) (idem: 119). Para Pound o poema de Eliot é um de seus melhores poemas longos e retrata um personagem que fracassa. Prufrock é um monólogo interior de um homem aparentemente próximo da velhice e fala de suas dificuldades em relação à comunicação e aproximação em geral em relação ao gênero feminino. O comentário de Leavis a respeito das noções de seriedade em transformação no poema ganha forma a partir de algumas ideias apresentadas por Hugh Kenner em artigo de 1960, no qual este último aponta a presença daquilo que denomina como “melancolia grotesca” (idem: 128) no poema de Eliot. Haveria, portanto, em Prufrock talvez uma contradição de tons, ou a convivência simultânea de uma mordaz ironia com a melancolia com a qual é possível, apesar do tom irônico, identificar-se. Kenner comenta os versos “I grow old... I grow old.../ I shall wear the bottoms of my trousers rolled”, afirmando: “They manage to be ridiculous without being fun- ny (the speaker is not making a joke) or cruel (a joke is not being made about the speaker)”69. (idem: 129)

Os fracassos de J. Alfred Prufrock, como apontava Pound, são ironizados ou satirizados por meio do tom do poema, mas ao mesmo tempo não se completa o distanciamento do leitor, que não se torna capaz de julgar o personagem de modo totalmente isento e ausente daquilo que é ironizado: a melancolia é irônica porém próxima, real.

Senhor A parece replicar bem o paradoxo de um poema melancólico e ao mesmo tempo irônico em relação a tal melancolia, crítico dela: “Minha mulher foi viajar./ Recebo em casa; velha cúmplice esquenta os pratos, sou homem, rico/ também choro”. O tom desses versos é bastante semelhante ao tom geral em Prufrock, no qual o personagem se torna alvo

69 “[os versos] Conseguem ser ridículos sem ser engraçados (a voz da enunciação não está fazendo uma piada)

de certo deboche do autor implicado,70 porém de forma sutil, não há piada direta explícita. Esses aspectos estão presentes no poema de Ana Cristina Cesar, mostrando que o diálogo se comprova pela menção direta ao verso de Eliot, mas não se limita a ela.

Sussekind aponta a presença dessa menção direta a Eliot na poesia da autora, verso no qual Ana Cristina transforma apenas em um detalhe significativo (“não”), como uma indicação de que determinadas características da poesia de Eliot (a “colagem de falas” e “o sujeito como ‘zona de consciência’”) aparecem como "condição necessária para a fixação, por parte de Ana Cristina, do seu próprio método de composição" (SUSSEKIND, 1995: 21). A proposição de Flora Sussekind confirma a importância de Eliot para as propostas de Ana Cristina. Como vimos a partir da discussão em torno do Índice Onomástico e das presenças do Waste Land e das discussões que o cercam ao longo da história literária, a presença de ecos da poesia de Eliot na obra de Ana Cristina Cesar permite esclarecer o papel, nela, do enxerto de outras falas no texto da poeta, enquanto ressignificação de uma técnica a partir de uma imitação deslocada: imita-se a importância dessa mistura de falas no plano da discussão sobre literatura para deslocar o uso dela, não imitando exatamente a forma que ela assume em Eliot. Como mostra mais esse exemplo, com a presença de um verso de Prufrock em Senhor A de Ana Cristina Cesar.

Outro ponto de encontro significativo entre os poemas se torna evidente a partir de outro comentário de Hugh Kenner:

“It was genius that separated the speaker of the monologue from the writer of the poem by the solitary

device of affixing an unforgettable title. Having done that, Eliot didn't need to keep fending off his pro- tagonist with facile irony; the result was a poised intimacy which could draw on every emotion the young author knew without incurring in the liabilities of 'self-expression'." (Casebook Series, ed by B. C. Southam “Prufrock, Gerontion and Ash Wednesday”: 128)71

70

Pensado originalmente por Wayne Booth e comentado por Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa (RICOEUR, 2012: 272), o autor implicado, na tradução de Claudia Berliner (implied author em Booth), é uma instância discursiva do texto. O autor real “assume o ‘second self’ que faz dele um ‘autor implicado’” como parte das estratégias retóricas de persuasão (idem). O termo é útil para que não se caia numa confusão com uma “psicologia de autor, na medida em que põe a ênfase, não no suposto processo de criação da obra, mas nas técnicas mediante as quais uma obra se torna comunicável.(...) Resultará daí que o único tipo de autor cuja autoridade está em jogo não é o autor real, objeto de biografia, mas o autor implicado.” (idem). Partimos da hipótese que o tom de deboche em Prufrock não vem de Eliot, mas do autor implicado no poema The Love Song

of J. Alfred Prufrock.

71 “Foi genialidade que separou o sujeito do monólogo do escritor do poema pela única estratégia de estabelecer um título inesquecível. Tendo feito isto, Eliot não precisava continuar afastando seu protagonista com ironias arbitrárias; o resultado foi uma intimidade posicionada para lançar mão de todos os sentimentos conhecidos pelo jovem autor sem incorrer nos problemas da ‘auto-expressão’”. (tradução nossa)

As observações de Kenner explicam de certa forma um dos mecanismos pelos quais Eliot atinge esse efeito de simultânea intimidade e melancolia sem deixar de ironizar as atitudes do personagem. O título proporciona um distanciamento entre, não apenas autor e voz da enunciação, como também entre a voz da enunciação e o próprio leitor. Ao determinar, por meio do título, que aquelas palavras pertencem ao personagem J. Alfred Prufrock, e não a um “eu” indeterminado, Eliot escapa dos problemas da chamada “expressão individual”, como nos lembra Kenner (e dos problemas relacionados à confissão), mas também permite ao leitor tal distanciamento. O que queremos defender por nossa parte é que o distanciamento, ao se garantir no título, não precisa ser constantemente reiterado, e portanto não impede também a identificação, ainda que parcial, do leitor com as dores do personagem. Cria-se uma dúvida constante em relação ao que pensamos desse personagem. Devemos rir dele? Nos identificar com ele? Sentir pena, deboche, ou até mesmo raiva dele? Levando em consideração o verso apropriado por Ana Cristina Cesar como garantia da relação entre esses poemas, podemos ler Senhor A como um exercício de escrita aos moldes de The Love Song of J. Alfred Prufrock e podemos, então, perceber que, ao menos no que concerne o título, o mecanismo de Prufrock se repete cuidadosamente em Ana Cristina Cesar. Isto é, seu título também determina o distanciamento entre leitor e autora. Uma diferença significativa porém, é que em vez de um nome completo para esse personagem, como no poema de T. S. Eliot, o que temos aqui é apenas uma letra, guardando determinado mistério para a identidade de A (lembrando, aliás, o remetente de Três Cartas a Navarro, que assina apenas como R)72. Vale frisar que, nesse caso, além da distância que se cria entre autor e voz da enunciação no poema de Eliot, o poema de Ana Cristina aprofunda essa distância na medida em que se constrói a partir de um eu masculino, como Prufrock. Um homem, aliás, que difere aparentemente em diversos aspectos de outras vozes presentes em seus poemas: é rico, bebe uísque, fuma cachimbo, é casado etc.

Sussekind aponta brevemente, como vimos, a presença do verso de Eliot no poema de Ana Cristina Cesar e sua importância em relação à forma como os processos de escrita do poeta ajudam a determinar modos de escrita da própria Ana Cristina. A estudiosa não se aprofunda nessa escolha, porém, e a presença desses versos específicos aos quais Ana faz menção em Senhor A é significativa. Para Hugh Kenner a construção dos versos “In the room the women come and go/ Talking of Michelangelo”, com suas assonâncias em os abertos e

72 Primeiro texto da Pasta Rosa, publicado em Antigos e Soltos, a respeito do qual Viviana Bosi trava uma

fechados “tece um contexto de grandiosidade a partir do qual nosso sentimento em relação a essas mulheres triviais se determina” (idem: 130)73 A frase seguinte do texto crítico é bastante significativa: “The heroic sound, and specially the carefully dramatized sound of the painter's name, is what muffles these women”. (idem) O som das mulheres, segundo Kenner, portanto, é abafado pelo nome do pintor, pelo nome de grandiosidade e autoridade. Trata-se de “versos cujo mecanismo poético depende de um simples contraste de concepções: mulheres falando, e um visionário heróico” (...)74 A oposição apontada pelo crítico, entre a grandiosidade representada pelo nome de Miguelângelo e a trivialidade das mulheres conversando (“trivial women”) estabelece uma relação entre discurso elevado masculino (na figura do artista) e discurso baixo e prosaico feminino, na fala das mulheres.

A escolha desse verso em particular para a ladroagem de Ana Cristina Cesar em Senhor A não nos parece trivial. Se para Hugh Kenner é o nome de Miguelangelo que abafa a voz dessas mulheres no poema de Eliot (“the heroic sound (...) is what muffles these women”), na voz de Ana Cristina existe uma negação completa dessas vozes: “Na sala ao lado não há mulheres / falando de Miguelângelo”. Sussekind atribui essa negação, o “não” acrescentado por Ana Cristina à cena, à criação de um “contexto ainda menos nobre”. Porém, a questão de gênero se manifesta nesse gesto particular de ladroagem/vampiragem acrescida da negação: é significativo o acréscimo do não justamente a um verso que, como vimos por meio de Kenner, opõe a fala feminina ao discurso artístico. A escolha por uma menção acrescida da negativa nessa cena apresenta mais diretamente, por um lado, o silêncio: não há mulheres falando. Mas por outro lado, há a própria fala feminina da autora, que se impõe à cena. O silenciamento é explicitado porém sutilmente invertido: quem fala agora é uma mulher, nas palavras de Eliot, porém pela negativa. Não há mulheres na sala ao lado falando de Miguelângelo, há mulher no espaço presente, nesta sala, falando de Eliot, falando com Eliot, ou melhor, discutindo com ele.

Podemos ir mais além na leitura do verso de Ana Cristina: O que se está negando exatamente na versão dela com este: “Na sala ao lado não há mulheres/ falando de Miguelângelo”? A existência das próprias mulheres na sala ao lado? Elas não estão lá? Ou se trataria do discurso delas que não acontece? Há mulheres na sala ao lado, mas elas estão em silêncio? Ou ainda, numa terceira possibilidade: não há mulheres falando de Miguelângelo,

73

“Weave a context of grandeur within which our feeling about these trivial women determines itself”.

74 “Lines whose poetic mechanism (...) depended on so simple a contrast of conceptions: talking women, and a

pois estão falando de outras coisas, seu discurso é outro. O que significaria que Eliot, ou Prufrock, não sabe do que falam as mulheres, afinal.

Neste último caso, dissolve-se a oposição apontada por Kenner entre as “mulheres triviais” e o “visionário heróico”. Se não é de Miguelângelo que essas mulheres imaginárias falam, o discurso feminino é sequestrado das mãos de Eliot e devolvido às mulheres (imaginativamente). Isto implica a introdução de uma dimensão temporal nova, pelo ângulo da colagem: não havendo mulheres falando de Miguelângelo, tampouco há mulheres silenciadas pela grandiosidade masculina, pelo menos não mais. Elas hoje estão falando de outra coisa ao não falar de Miguelângelo. E esse hoje talvez até contamine ou reinterprete o ontem: elas já nem falavam disso, mas Eliot não sabia...

Porém, o sujeito do poema de Ana Cristina Cesar continua masculino: tudo indica que este tal “Senhor A”, que serve um jantar ao seu “casal de condenados”, doa com seu olhar “o calor que pode”, “o calor de um negócio travado a altas horas”, se parece com uma versão contemporânea de J. Alfred Prufrock, ao menos no tom solitário e levemente irônico de sua melancolia (“sou homem, rico/ também choro.”). Daí o pastiche: convivem no exercício de recriar a partir de Prufrock, a imitação de sua “melancolia grotesca”, e a ironia dessa recriação a partir de outra voz, que acrescenta justamente a negação ao único verso que nos aponta diretamente para sua fonte. Voltando ao título do poema de Ana, cabe nos perguntar: a que se refere? Tomando em consideração a menção ao poema The Lovesong of J. Alfred Prufrock poderíamos presumir que o título Senhor A se refere à letra inicial do segundo nome do personagem de Eliot, Alfred. Mas há também um jogo sonoro que não deve nos escapar aqui, sugerindo, para quem lê em voz alta, a homofonia com a palavra senhora. Além disso, A é a letra inicial do nome de Ana, a autora. Não há como não constatar que a voz feminina se insere em detalhes e vestígios através das apropriações e vampiragens de Ana Cristina. Como observa Maria Lucia, o vampiro, ao contrário do processo antropofágico, não apenas introjeta aquilo que é do outro, mas enxerta no outro um pouco de si, transformando o “ser vampirizado em semelhante”. Nossa hipótese é que, no caso de Ana Cristina, estaríamos sempre (ou quase) diante de uma vampira.

Todo o problema então consiste em distinguir a vampira, ou pelo menos em tentar retratá-la como alguém que está às voltas com o processo de deslocamento feminil da própria literatura moderna. Um processo que pode acabar por apagar sua especificidade de gênero. Vale dizer que o desafio importa para Ana Cristina tanto quanto para suas leitoras. Apostamos numa hipótese de leitura na qual Ana Cristina imita Eliot, mas propõe um deslocamento do próprio Eliot, de modo a não reproduzir o deslocamento do autor em relação à modernidade.

O estilo de Ana C. se mantém diferente daquele assinado por Eliot, já que a sua imitação diz respeito ao processo de escrita, num gesto que produz resistência feminina ao estilo do autor. Desse modo é possível afirmar que a voz feminina em Ana Cristina Cesar não se dissolve na questão da modernidade, como em Eliot, e é nesse ponto que a apropriação das palavras do poeta se dá sempre mediante um olhar que propõe transformação no original.

Ao discutir a presença de modos de escrita eliotianos na poesia de Ana Cristina Cesar, Ítalo Moriconi afirma que a “incorporação ao poema de fragmentos de conversação”, apesar de ser um processo praticado pela poesia marginal em geral, em Ana Cristina Cesar teria suas particularidades e remeteria, justamente, à escrita de T. S. Eliot: “vindo não de nosso coloquialismo oswaldiano ou bandeiriano, mas arrancado diretamente de dentro do texto- colagem de Eliot”. Essa incorporação de fragmentos de conversação teria seu “modelo básico” justamente no poema The Love Song of J. Alfred Prufrock. Como percebemos, a partir tanto dessas observações como do capítulo de Flora Sussekind sobre sua poesia como “arte da conversação”, há (pelo menos) dois níveis em que o diálogo se faz presente na sua poesia a partir de Eliot (e outros): por um lado, por encontrar nele um modelo de escrita que pensa justamente esse movimento de colagem de falas e por outro por tornar esse encontro com o outro autor, o outro texto, um modo de enxertar no texto a fala alheia, além de encontrar no texto alheio a fala própria. Neste sentido, quando falamos de presença de fragmentos de conversação, não se trata apenas de fragmentos de falas no sentido oral e literal, conversa ouvida, reproduzida, mas de fragmentos de uma conversação com Eliot, com Joyce, com o outro literário. Moriconi já observava neste ponto a importância de uma questão de gênero:

“Se no poema masculino de Eliot a conversação entre mulheres é crucial para o sentido e é incluída na colagem de falas enquanto algo entreouvido, sendo assim incorporada a um texto que na verdade a transcende, na poesia feminina de Ana Cristina tal conversação é o próprio sentido, corporifica o poema, dotando-o de moldura integradora. Pode-se, portanto, dizer que o poema de Ana figura um desejo projetado pelo poema de Eliot, na medida em que se organiza a partir de imagem ali prefigurada. O poema de Ana se inclui e depois se desengata do poema de Eliot. De costela de Adão vira loba de Roma. Vampira na jugular do pai estrangeiro, estranhado. Sangue jorrando leite. Hermafroditismo das influências.” (MORICONI, 2016: pos.1247)

Como bem observa Moriconi, a conversação entre mulheres é crucial para o poema masculino de Eliot. Porém, ao ler o poema The Love Song of J. Alfred Prufrock, apontado por Moriconi como modelo da incorporação de fragmentos da conversação, o leitor se confronta com a impressão (presente para diversos críticos) de que qualquer fragmento da fala feminina ali pode ser atribuído à própria imaginação do personagem, à sua impressão ou suas projeções

daquilo que diria a mulher (ou as mulheres) segundo ele, ou umas para as outras. Ou seja, a presença desses supostos fragmentos de conversação é mediada por um personagem masculino específico (com nome e sobrenome) e o poema é antes de mais nada um retrato de seu universo subjetivo, e, portanto, toda a possível fala feminina presente no poema é fala masculina sobre a fala feminina. Num primeiro plano, o poema de Eliot pode ser lido como uma metonímia da tradição literária masculina em suas tentativas de retratar o discurso feminino, de representar um universo feminino alheio a essa tradição, impenetrável, ou que nunca se quis penetrar verdadeiramente para começo de conversa. As seguintes afirmações de Ítalo Moriconi podem ser aclaradoras:

“Ao desejar corporificar no poema a eliotiana conversa feminina, a poeta em Ana realiza ao mesmo tempo o gesto de rejeitar o desejo masculino projetado pela poesia de seu outro querido, o francês Baudelaire, cujo texto, em lugar do comércio social entre pessoas possivelmente cultas, encena o amor lésbico como obscenidade exibida em espetáculo para o homem devasso. (...) Ao contrário de Baudelaire, de maneira mais próxima a Eliot neste particular, a concretização de eros na poesia de Ana aparece sempre como algo intrinsecamente problemático, complicado, hesitante. Moldura que só muda mesmo em A teus Pés, onde eros é substituído pela paixão.” (idem: 1256)

As formas como essas quebras e modos de evidenciar a diferença entre uma existência feminina na poesia e uma tradição masculina da literatura são muito variadas. Como vimos, com Joyce havia uma presença mais marcante do embate, de um estilete da arte (tanto dele como sua), que cortava trechos de Ulysses e os reorganizava em seu discurso, de modo a criar um destronamento, e mais: o desejo desse destronamento numa figura de autoridade que acaba por ganhar o título de tirano. Com Eliot a relação é outra.