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3. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO

3.4. AS ESCOLAS DOS POSTOS INDÍGENAS DO SPI E DA FUNAI

3.4.3. Ações educativas da Funai entre os Ticuna

Em seus estudos sobre os Ticuna Cardoso de Oliveira (1978) revelou que um dos motivos que explicava a concentração desse povo nas margens do Solimões, na primeira metade do século XX, era a forte atração que as escolas exerciam sobre as famílias indígenas. A necessidade de falar o português e saber fazer contas era apontada como prática

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No final da década de 90, o Summer depois chamado Associação Internacional de Lingüística – SIL, ainda buscava manter-se presente nos contextos de trabalho com educação indígena dissimulando sua verdadeira missão evangelizadora com a aparência de trabalho lingüístico. Seu real interesse pela educação é que sirva de instrumento de tradução da bíblia, e ao acenar com acesso ao letramento e melhores condições de saúde, os missionários do SIL trocam esses benefícios por religião. Apresentando-se como prestadores de serviços assistenciais buscam um meio de permanecerem entre os índios e evangelizá-los, esforçando-se por formar pastores entre os indígenas. Seu trabalho não é, portanto de educação, mas de proselitismo religioso contrariando o princípio da educação laica, da defesa da cultura indígena previstas na Constituição Federal. Como afirma GRUPIONI (1999) a formação de professores bilíngües é responsabilidade do estado para atender aos interesses dos povos indígenas; como agravante, cita que o material utilizado pelo SIL é de total desconhecimento até pelo MEC.

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COELHO DOS SANTOS (1974) criticava a falta de material didático adequado, como também a prática dos funcionários do Posto da Funai que mantinham a mesma exploração do índio que a sociedade do entorno, usavam a mão de obra indígena e os recursos naturais, auferindo ganhos para o posto e não para os índios. Citava inclusive a criação de vilas habitacionais que favoreciam essa exploração porque nelas os índios estavam impossibilitados de terem sua criação e roça.

imprescindível a quem não quisesse ser enganado nas transações comerciais nas cidades.

“Aqui é melhor do que no igarapé porque tem escola” era a frase que o pesquisador citava

como a mais recorrente entre os que se mudavam para aldeias ribeirinhas. (Cardoso de Oliveira, 1978, p.212)

A escolarização, colocada como instrumento que permitia ao índio efetivar o trânsito entre a sociedade indígena e a nacional, coadunava-se com as perspectivas apontadas na época, por esse mesmo autor, da inserção dos Ticuna como parte do campesinato. Dentro desse contexto, tornava-se óbvio que a escola indígena ensinasse língua portuguesa e que um dos seus objetivos fosse o ensino de práticas agrícolas comuns aos sertanejos.

Leite (1994), referindo-se à década de 70, assinala o crescimento das aldeias e do processo de urbanização, o reforço das vantagens da moradia próxima às escolas como meio dos Ticuna alcançarem o universo simbólico da língua portuguesa. Daí as comunidades terem se mobilizado para a construção de escolas, a disponibilização de material construtivo, a busca de professores, a compra de cadernos e livros para as crianças motivando-as para o estudo, e mesmo terem recorrido a quem estava nas séries mais adiantadas para lecionar para as séries iniciais.

Porém, a força simbólica da escola como instrumento de acesso a relações mais equilibradas com a sociedade regional era inviabilizada pela inconstância e precariedade da educação oferecida. As experiências educativas não atendiam as expectativas dos índios que pouco aprendiam de língua portuguesa, matemática, conhecimentos gerais ou sobre a organização da sociedade nacional, que lhes permitisse dialogar num nível de menor desigualdade.

Coelho dos Santos (1974) aprofundava suas reflexões sobre a situação dos povos indígenas que em meados da década de 70 ainda eram tutelados pela Funai, e questionava os objetivos e função dessa escolarização para os povos indígenas, defendendo a necessidade de buscar uma solução através da transferência das escolas e da educação dos povos indígenas para o âmbito do Ministério da Educação. Considerava que tanto o MEC quanto as universidades poderiam desenvolver pesquisas sobre a problemática indígena que ampliariam o repertório de conhecimentos sobre esses povos, reconceituando a sociedade indígena junto à sociedade nacional, promovendo o desaparecimento de estereótipos nos

livros didáticos e meios de comunicação. Afirmava inclusive que: “[...] o MEC facilmente poderá criar um corpo técnico especializado em educação bilíngüe”113

(Coelho dos Santos, 1974, p.81).

A leitura do “Informativo Funai Nº 13” de março de 1975 reforça a percepção da frágil

atuação do órgão indigenista na oferta de educação aos povos indígenas do Alto Solimões naquele ano contavam-se 11 escolas na área, mas nenhuma mantida pelo órgão indigenista. A partir de uma visão absolutamente integracionista e de profundo desconhecimento e

desvalorização da cultura indígena, o informativo afirmava que as crianças “nem sequer falam português” (p. 68) e chegam a freqüentar a escola por mais de um ano sem

aprenderem a língua nacional. E prossegue: “Foi constatado que desde pequenas aprendem

a falar a “gíria” (língua da tribo) e só por volta dos dez anos, forçados pela situação de contato, começam a aprender o português” (p. 68).

Não deixa de ser reveladora a leitura desse informativo pela negação da transmissão da cultura ticuna, fundamentalmente realizada através do domínio da língua materna pelas novas gerações. A Funai, expressando as concepções dominantes na época, demonstrava que caberia aos pais deixar de ensinar a língua indígena a seus filhos, facilitando assim sua integração à sociedade e cultura envolvente. É possível detectar, além da recriminação aos

pais, a desconsideração pela língua indígena tratada como “gíria”, ou seja, algo sem o

status de língua dotada de estrutura, gramática e literatura.

Observa-se ainda no texto, a falta de conhecimento e consideração para com as dificuldades próprias de quem precisa aprender um segundo idioma, no caso a língua portuguesa, apenas para fins de contato. É possível notar, por outro lado, que as famílias insistiam em manter viva a língua, apesar da ação contínua por parte dos não-índios e do órgão indigenista. O Informativo explicava que os meninos iniciavam esse aprendizado porque eram obrigados a ir comercializar na cidade, onde a dificuldade de comunicação permitia que fossem constantemente enganados; já as meninas, por saírem bem menos das

aldeias “preferem manter o uso da „gíria‟” (p. 68).

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Infelizmente, até o presente o MEC não criou corpo técnico próprio especializado em educação escolar indígena, continua contratando assessores por produto e tempo determinado o que impede a constituição de uma verdadeira equipe, a continuidade dos trabalhos e o acúmulo das experiências.

Em sua conclusão o texto aponta que a Funai iria selecionar indígenas que já sabiam ler e escrever português, muitos deles por terem servido o exército no Comando de Fronteira, para serem monitores educacionais bilíngües, partindo da alfabetização na língua indígena e usando-a como língua de instrução. Isso não significava uma atitude de respeito e valorização de suas línguas, mas apenas de uma transição para chegar ao português, quando então a língua materna seria abandonada.

Uma ligeira mudança na orientação integracionista do órgão indigenista federal é destacada no relatório sobre a escolarização no Alto Solimões datado de 1979, de autoria da lingüista Ruth Wallace de Garcia Paula e da Programadora Educacional Lydia Gomes Dias Pinheiro, publicado pela Revista de Atualidade Indígena da Funai. Diante de um quadro de inexistência de qualquer unidade escolar construída ou mantida pela Fundação, Paula e Pinheiro registravam a necessidade de pelo menos mais 40 salas de aula e a contratação de 40 professores, apenas considerando as aldeias Vendaval, Feijoal, Umariaçu, Campo Alegre, Vui-Uata-In e Betânia114.

As técnicas da Funai tomavam por fundamento as orientações da Unesco - The Use of Vernacular Languages in Education - que propunham que: “é através de sua língua materna que todo ser humano primeiro aprende a formular e expressar suas idéias sobre si mesmo e sobre o mundo em que vive” (Unesco, 1953, p. 47), considerando, ser mais fácil para as crianças se alfabetizarem com a língua que falam e da qual entendem todos os significados. Nessa concepção a língua indígena deixava de ser utilizada apenas como instrumento de transição para a aquisição da língua portuguesa. As autoras defendiam o uso da língua indígena como a única possibilidade de plena expressão da própria cultura,

pois segundo elas: “É através da língua materna que ela poderá absorver o seu meio

cultural. A língua tem assim papel preponderante na moldagem dos primeiros conceitos

adquiridos por uma criança” (Paula e Pinheiro, 1979, p. 59).

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É importante frisar que a Funai nunca havia realizado qualquer curso ou contratação de monitores bilíngues entre os povos indígenas do Alto Solimões, que aprendiam sozinhos, pelo trabalho junto aos professores não indígenas contratados pelas prefeituras ou nos cursos que eram ministrados pelas entidades da sociedade civil. A primeira contratação de monitores bilíngues ticunas pela Funai ocorreu em 1986.

Essas autoras recomendavam ainda, que o ensino da língua se estendesse ao máximo possível na educação, pela dificuldade inerente aos falantes nativos de uma língua de expressar conceitos que não sejam de sua cultura, assim como as suas limitações em expressar conceitos da cultura não-indígena utilizando-se da própria língua. Consideravam também, que a proposição de ensino bilíngüe deveria considerar a diversidade de situações de contato, o grau de bilingüismo e a opinião da comunidade relativa à educação e ao ensino de línguas.

As funcionárias da Funai, em suas visitas às aldeias de São Leopoldo e Santo Antonio no município de Benjamim Constant, registraram o encontro com professores indígenas altamente interessados em alfabetizar, também, em língua materna, pois até então só o faziam em língua portuguesa. Afirmavam terem sido esses professores que propuseram o curso para monitores bilíngües e que apresentaram exercícios de alfabetização em língua ticuna elaborados por alguns deles.

É significativo que a defesa do ensino da língua indígena por Paula e Pinheiro (1979) não tenha se concretizado na utilização do material já produzido pelos próprios professores indígenas num grande esforço de autoria e valorização da língua ticuna. Porém, alegando a falta de lingüistas não vinculados às missões, as técnicas do órgão indigenista recorreram a uma adaptação do material feito no Peru pelo SIL ao planejarem um curso para monitores bilíngues em Benjamim Constant, formação essa que não se realizou por falta de recursos da Fundação. Apesar da fragilidade do órgão indigenista e da ação restrita das missões, a busca por escolaridade crescia constantemente entre os indígenas.

Oliveira Filho et alli (1982) citam como exemplo a participação de alguns indígenas nos cursos para professores leigos rurais ministrados pelo Projeto Rondon e Campus Avançado do Alto Solimões da PUC/RS a partir de 1974. Para os Ticuna, o curso era difícil e pouco proveitoso, embora se empenhassem em entender a língua portuguesa, acompanhar conteúdos, conceitos e programas que não lhes diziam respeito. Os formadores não se preocupavam de oferecer práticas didáticas nem de avaliação diferenciadas aos indígenas, não só dificultando o aprendizado como os inibindo diante da classe, fortalecendo a rejeição da identidade indígena que passava a ser escondida diante dos colegas e professores.

Somente em 1978 iniciou-se o Plano de Educação com levantamento das necessidades de recursos materiais e humanos efetuado pela divisão da Funai denominada Coordenação da Amazônia115 - Coama -, firmando-se um convênio entre o órgão federal, o CAAS da PUC/RS e a prefeitura de Benjamim Constant para projetar, construir e equipar escolas, além de oferecer assistência pedagógica. A partir desse convênio foram erguidas as primeiras cinco escolas da Funai, todas no município de Benjamim Constant (que na época incluía Tabatinga), contemplando as aldeias de São Leopoldo, Tacana, Santo Antonio, Porto Cordeirinho e Bom Intento e atendendo 217 alunos de cinco a trinta anos. Essas escolas foram construídas de madeira, elevadas e com meias paredes para favorecer o arejamento e a luminosidade. O Plano também previa que os “monitores” indígenas seriam remunerados através de convênios com as prefeituras e preparados nos cursos do Campus Avançado.

A escolha de Benjamim Constant para sediar as escolas e o curso de formação de monitores pode ser explicada pelo apoio da Secretaria de Educação, por sua localização geográfica, mas principalmente, pela infra-estrutura e atividades educativas já oferecidas pelo do CAAS da PUC/RS como parte do Projeto Rondon.

A opção de oferecer alguma escolarização aos indígenas que atuavam como professores nas escolas das aldeias decorria também da carência de professores não-indígenas, ainda que leigos, para suprir a demanda das escolas nas áreas indígenas. Diante dessa situação foi criado o Curso de Nivelamento, conforme citado anteriormente, para selecionar monitores ticunas para posterior capacitação. Paula e Pinheiro (1979) revelavam que era grande a procura e a freqüência por parte dos indígenas, inclusive os já professores ticunas de Feijoal, Belém do Solimões, Umariaçu, Vendaval, Campo Alegre, Betânia e Nova Itália, aldeias dos municípios de São Paulo de Olivença, Santo Antônio do Içá e Amaturá, respectivamente, que ainda não estavam incluídos no Plano de Educação. A conclusão desse curso foi muito valorizada pelos Ticuna que dele participaram, os diplomas obtidos são até hoje citados nos seus históricos de escolarização.

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A Coama era chefiada pelo General Demócrito um dos responsáveis pelo massacre dos Waimi-Atroari na década de 70.

Entretanto, o modelo dessas escolas oferecidas pelo órgão indigenista ainda mantinha-se desvinculado da realidade cultural dos índios, não contribuindo para atender seus problemas cotidianos, mas favorecendo em muito o processo de aculturação e negação da identidade étnica. As escolas organizadas pela Funai não tinham programas e material didático específico, os professores (não-índios) não tinham orientação e o pagamento era irregular, levando, freqüentemente, ao abandono do trabalho e desativação das escolas.

Além disso, as grandes distâncias de muitas das aldeias, aliada ao pequeno número e

constante ausência desses professores chamados de “civilizados”, acabava por deixar nas

mãos dos auxiliares indígenas toda a responsabilidade pelas escolas e alunos. Preocupados em seguir as orientações dos professores vindos da cidade, estes obrigavam o uso da língua portuguesa, chegando mesmo a aplicar os mesmos castigos que os não-índios utilizavam, entre eles, a palmatória.

Quando havia ensino bilíngüe usava-se o material feito para os Ticuna do Peru116 pelo Summer Institute of Linguistics (SIL), opção justificada por Paula e Pinheiro (1979) diante da facilidade de entendimento na leitura dos textos e do interesse em utilizá-los. Oliveira Filho et alli (1982) contestam a adaptabilidade do material elaborado pelo SIL apontando diferenças nas grafias e emprego de palavras entre os ticunas peruanos e brasileiros.

Entretanto esses últimos autores afirmam que, apesar de seguir exatamente o mesmo padrão do material do SIL para indígenas peruanos, o grande entrave para o ensino bilíngue era a falta de continuidade dos demais livros, porque apenas a 1ª. CARTILHA TUTU e o respectivo manual do professor haviam sido publicados em 1979, sem que houvesse orientação e acompanhamento no uso do material. A cartilha continha apenas 24 palavras na língua e não adaptadas ao idioma ticuna falado no Brasil.

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Figura 14 – Guia de ensino da Cartilha Tutu, lição 18 a 20 Fonte: Ministério do Interior, 1979

Em cada comunidade a escola seguia métodos e utilizava recursos muito diferentes, quase sempre adaptações das escolas para não-índios. As condições de trabalho também eram diversas, havia escolas nas aldeias de Feijoal, Belém do Solimões e Nova Itália que foram construídas pela Prelazia do Alto Solimões e os professores eram pagos por convênios com a Secretaria Estadual de Educação. Nelas os métodos e conteúdos do ensino eram os mesmos das escolas rurais; também em Belém do Solimões cuja população indígena era superior numericamente à da não indígena, seguia os mesmo procedimentos das escolas

rurais dos chamados “civilizados”.

Uma das cartilhas em uso nessas escolas era a “Terra verde céu azul” elaborada pelo

Campus Avançado da PUCRS no decorrer do curso de capacitação de professores leigos rurais de Benjamim Constant e que tinha entre seus 31 alunos três Ticuna e dois Kokama. Publicada em 1977, a cartilha apresentava as letras, as sílabas e as palavras como nas cartilhas convencionais, tendo como diferencial algumas palavras de uso regional.

Figura 15 – Cartilha Terra verde céu azul, p. 48 a 51 Fonte: PUCRS, 1997

Na época, atuando como professora no Posto Indígena Vendaval em São Paulo de

Olivença, Marina Kahn desenvolveu uma cartilha para uso junto aos Ticunas “a partir da

compilação e adaptação das cartilhas em língua ticuna, elaboradas pelo Summer Institute of Linguistics do Peru” (Kahn, 1982, não publicado). Kahn cita que as razões que a levou a preparar aquele material mimeografado era a inexistência dos volumes que dessem continuidade, tal como ocorria com o material para os ticunas peruanos, à Cartilha Tutu, da Funai, e a tentativa de evitar a interrupção do processo de alfabetização.

Figura 16 – Cartilha Ticuna, p. 21 e 22 Fonte: Kahn, 1981/82

Para atender aos adultos que sabiam falar a língua portuguesa e tinham alguma noção da sua escrita, Kahn, com a colaboração de Vera Paoliello, preparou um projeto117 de alfabetização na língua nacional partindo do uso de palavras chaves que representavam o universo temático da comunidade de Vendaval. Nessa proposta, o trabalho se iniciava com a discussão sobre o tema selecionado para que os significados das palavras fossem mais bem entendidos. Dentro da orientação freireana, Kahn partia do princípio que a discussão favorecia a conscientização dos problemas que os Ticuna enfrentam no contato com a sociedade nacional. Por ser um trabalho experimental, ela previa que a conclusão do material se daria após seu uso nas demais aldeias; Kahn projetava também a possibilidade da produção de textos pelos próprios indígenas favorecendo a difusão dos conhecimentos e da situação atual dos Ticuna, de modo que seu uso nas escolas estimulasse a identidade étnica e a recuperação da autonomia enquanto povo indígena.