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2. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO POLÍTICO E

2.2. OS PATRÕES E OS SERINGAIS

Antes da exploração sistemática do látex, os indígenas do alto Solimões desenvolviam atividades voltadas à sobrevivência e obtenção de peixes, peles, tartarugas e as chamadas

“drogas do sertão” comercializadas pelas missões. Com a criação do Diretório dos Índios e

expulsão dos jesuítas, as missões passaram para a administração civil, transformadas em vilas e mantendo o uso da mão de obra indígena. O final do século XIX e início do XX marcam o estabelecimento dos primeiros registros de glebas para a exploração do

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Dossiê da OGPTB, junho de 2004.

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MELATTI, Júlio César. Página do Melatti. Disponível em: <http://www.unb.br/ics/dan/juliomelatti/> acessado em 02/08/09

caucho51, da seringa e da madeira, em áreas situadas nas bocas dos igarapés e margens do Solimões. Os títulos de posse e concessões de exploração concentravam-se nas mãos de pouquíssimas famílias, dentre elas Mafra, Ayres de Almeida e Weil.

Oliveira Filho (1988) tendo por base os trabalhos de Nimuendaju (1952, 1982) e Cardoso de Oliveira (1972) afirma que o desaparecimento das malocas e o processo de integração dos Ticuna na exploração da borracha não ocorreram de modo homogêneo, atingindo fortemente os agrupamentos indígenas ribeirinhos próximos aos seringais mais ativos.

Cardoso de Oliveira (1972, p.50) afirma que: “Os Tukuna das terras mais altas, muitas

vezes distantes dias das margens do Solimões, conservaram-se relativamente arredios [...]”. Esse autor esclarece ainda que essa situação protegida era temporária, existindo como alternativa escaparem pelas cabeceiras dos igarapés, já em território colombiano. A ação violenta dos patrões, pondo fim às malocas e impedindo a formação de agrupamentos contendo muitas moradias, foi considerado por Nimuendaju (1982) como uma estratégia de não mais tratar os Ticuna enquanto povo e de pressionar isoladamente cada família submetendo-as ao seu domínio.

A desorganização do modo tradicional de vida dos Ticuna os fragilizou em termos da sobrevivência, obrigando-os ao trabalho escravo nos seringais, também impôs a figura do

“tuxaua52”, um capataz com a função de controlar os índios e promover a produção

mercantil. Sem vínculos com as estruturas políticas tradicionais, a posição de mando dos tuxauas, apesar de investida de poder pelo patrão, era ilegítima e incompreensível para os

Ticuna. Nimuendaju (1982, p.194) afirmava que: “São meros intérpretes, pobres diabos

condenados a mentir aos seus compatriotas da tribo para agradar os patrões, e a estes para

se reconciliar com aqueles”. Apesar da situação de fragilidade diante do seringalista que

podia puni-lo como aos demais índios, Oliveira Filho (1988) aponta a existência de tuxauas que foram respeitados e assumiram uma real liderança; mesmo assim quase todos morreram por causas consideradas como “mágicas”.

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O Caucho (Castilloa ulei) é uma árvore da qual se extrai um látex também usado na fabricação da borracha, mas de qualidade diferente daquele retirado da seringueira Hevea brasiliensis. Por estas características era utilizado pelos índios e seringueiros para fabricarem tecidos e objetos encauchados ou emborrachados.

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Junto às bocas dos igarapés, eram instalados os “barracões” que o seringalista utilizava

para controlar os deslocamentos impedir as fugas ou venda de seringa para outros comerciantes. Foi também Nimuendaju (1982) que relatou a proibição feita pela família Mafra, proprietária dos maiores seringais da região, da realização de cerimônias da puberdade com a justificativa que, com elas, se perdiam dias de trabalho. Havia patrões que exigiam pedidos de licença prévia para festas determinando as datas à revelia das tradições, assim como limitavam ou impunham casamentos desrespeitando as mais profundas regras sociais dos Ticuna.

A exploração e uso do látex não faziam parte dos costumes e interesses dos Ticuna, como também o trabalho sistemático exigido no seringal, a obediência ao patrão e os castigos

físicos. [Os Ticuna] “Foram induzidos a trabalhar em algo que lhes era duplamente

estranho: o látex e as técnicas produtivas que lhes eram inerentes, mais a condição de mercadoria impregnada no produto.” (Cardoso de Oliveira, 1972, p.52). Sem recursos para contratar trabalhadores nordestinos (os chamados arigós), os seringalistas do Alto Solimões forçavam a incorporação dos indígenas. Por um lado, usavam a persuasão através

da oferta de produtos “dos civilizados”; por outro, recorriam a ameaças, castigos e uso da

cachaça para transformar os índios em servos de sua terra ocupada.

O trabalho isolado típico do seringueiro forçava o afastamento dos Ticuna do seu grupo social e resultava no prejuízo das atividades tradicionais voltadas à sobrevivência. Era ainda prática comum aos patrões o deslocamento forçado de famílias para atender seus interesses de produção em diferentes áreas, ou ainda o envio de homens para a insalubre e arriscada atividade de extração de madeira na área do rio Javari, relatada por Nimuendaju (1982). A lógica da produção e do lucro imposta pelo seringalista alcançava os indígenas de um modo abrangente mas diversificado. Segundo Oliveira Filho (1988, p.130):

As interferências dos seringalistas sobre os costumes, com a redefinição da ocupação do espaço, o tipo de moradia, a organização econômica, a constituição da família, os papéis de liderança, a realização de rituais e a proibição de pajés, era sentida pelos índios de forma bastante diferenciada.

A variação dos preços da borracha, aliada à baixa produtividade dos seringais do Alto Solimões, marcavam as diferenças na liberação, ou não, do direito aos Ticuna de manterem roçados junto aos barracões. Nos períodos de queda do preço da borracha os Ticuna puderam retomar a caça, pesca e agricultura, mas, com a grande diferença de que toda

produção deveria ser entregue no barracão em troca de mercadorias, o chamado “regime do troco”. Diferente de áreas amazônicas de grande produtividade gomífera, no Alto Solimões

os seringalistas extraiam grande parte do lucro da comercialização da produção indígena no mercado regional, e na venda aos índios de mercadorias como sal, roupas, terçados53, anzóis e cachaça a preços extorsivos.

Esse sistema exigia rigoroso controle para impedir os índios de vender e comprar de outros que oferecessem melhor preço pela borracha, peles ou produtos do roçado. Para fazer respeitar essas leis os patrões recorriam à força e à construção do mito do poder do seringalista, para além da própria realidade, “através de uma tradição de violência que,

presente na memória do índio, era por si só um poderoso fator de persuasão e intimidação”.

(Oliveira Filho, 1988, p.131). Bater de palmatórias, surrar com chicotes, salgar feridas, prender no tronco ou na cela escura, confiscar canoas e roçados, cobrir a cabeça com piche e deixar exposto acorrentado, estender os castigos à família, além de assassinatos, eram alguns dos meios de intimidação utilizados em graus diferentes pelos patrões. A partir do depoimento, em 1981, do Ticuna Damásio, da aldeia Vendaval, Oliveira Filho (1988, p.131) esclarece:

Essa fama de ferocidade barrava qualquer tentativa do índio de reivindicar seus direitos ou de resistir a essas imposições. Conta-se que outras vezes, quando o índio recusava as mercadorias oferecidas e pedia saldo em dinheiro, o patrão enfiava a espingarda carregada (e pronta para disparar) diante de sua face, dando-lhe alguns segundos para largar a sua mercadoria ali e fugir depressa, sem pagamento algum, isso se não quisesse ser morto.

Assim como essa recusa assinalada, pedir dinheiro por produtos do roçado ou vendê-los a outros - os chamados “marreteiros” – constituam atitudes de rebeldia punidas com castigos e mortes. Porém, havia diferenças de comportamento entre patrões, entre as diferentes áreas de seringais ou diferentes épocas. Assim como havia patrões que exigiam que os índios lhes beijassem a mão (Nimuendaju, 1982, p.205), havia os que eram identificados com demônios porque os ameaçava de “beber seu sangue” caso não os obedecessem, o que era entendido literalmente pelos indígenas como ato próprio dos seres não humanos (Oliveira Filho, 1988, p.136). O que não mudava nunca era o rigor no monopólio comercial, o ritmo forçado de produção, o impedimento de o índio acumular saldo que lhe

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permitisse sair da situação servil e ainda, o de ser acolhido num seringal caso fugisse devendo em outro.

À medida que o „civilizado‟ vai se aproximando da maloca, vai escolhendo tudo que tenha algum valor comercial, limitando-se a determinar aos índios, donos dos produtos, que os transportem para o batelão encostado à margem. Não passa pela cabeça do empregado do seringal perguntar, ao menos, o preço de cada produto, ou, ainda, se é ou não desejo do índio vender sua produção. Numa dessas ocasiões em que subimos o igarapé Belém, o empregado passou por um braseiro, onde eram moqueados oito peixes „matrichões‟, arpoados pelos Tukuna moradores da maloca; olhou-os e ordenou aos índios que levassem os peixes para o batelão, enquanto procurava saber se havia mais a „comprar‟ na maloca. Não cogitou de perguntar sequer se os peixes não fariam falta à dieta daquela família Tukuna, numa época de penúria alimentar porque toda a tribo estava passando. E acrescente-se que os peixes foram creditados na conta dessa família à razão de Cr$ 0,05 cada, quantia irrisória, considerando-se que por menos de Cr$ 0,30 nunca esses mesmos peixes seriam vendidos nas margens do Solimões. Note-se ainda que mesmo esse dinheiro jamais é visto pelos Tukuna, pois passam a dispor somente de um crédito em mercadorias no „barracão‟ do seringal. (Cardoso de Oliveira, 1972, p. 95)

A concepção de que os índios eram apenas ocupantes temporários das terras, até que os brancos definissem seu uso produtivo, penetrou também no discurso dos próprios Ticuna:

“Mas não digo nada pro civilizado, porque civilizado tá na terra dele... se estivesse na minha eu brigaria com ele” (Cardoso de Oliveira, 1972, p.94). A negação ao índio do

direito sobre a terra, aliada à defesa desse direito aos pequenos agricultores e seringueiros não-índios, fez o índio “sentir-se intruso em sua própria terra” (Cardoso de Oliveira, 1972, p.94)

Esse mesmo autor defende que os Ticuna incorporados à produção mercantil já não poderiam mais ser considerados indígenas e sim caboclos. Essa nova categoria social

estabelecia a diferença entre os “índios selvagens” do vale do Javari, nus ou semi-vestidos,

arredios que atacavam as frentes extrativistas que penetravam seu território, e os Ticuna enquanto

[...] população pacífica, „desmoralizada‟, atada às formas de trabalho impostas pela civilização, e extremamente dependente do comércio regional. Em suma, é o índio integrado (a seu modo) na periferia da sociedade nacional [...].

O caboclo é, assim, o Tukuna vendo-se a si mesmo com os olhos do branco, i.e., como intruso, indolente, traiçoeiro, enfim como alguém cujo único destino é trabalhar para o branco (Cardoso de Oliveira, 1972, p.83)

Essas análises são significativas e refletem as teorias antropológicas valorizadas na época das pesquisas realizadas por esse autor junto aos Ticuna. Ele prosseguia defendendo que:

“o índio isolado torna-se cada vez mais uma categoria abstrata, i.e., irreal; e que a única realidade atualmente, é o caboclo” Cardoso de Oliveira, (1972, p. 96). Afirmava que

existiam dois percursos possíveis: um deles seria encaminhar os indígenas para uma

“situação de estufa”, o que seria segregá-los, dando como exemplo a criação da reserva de

Umariaçu pelo SPI; o outro caminho seria integrar os remanescentes dos indígenas

“domesticados” à periferia da sociedade. Considerava que “[...] a situação concreta dos

Tukuna só pode evoluir para uma integração do grupo na sociedade envolvente, e naquelas camadas menos favorecidas, que constituem a base da pirâmide social identificável no Alto

Solimões.” (Cardoso de Oliveira, 1972, p.97)

Na medida em que, na época, se considerava como definitiva a ocupação dos territórios indígenas pelos não-índios, este autor propunha que as práticas de comercialização com uso da moeda fossem fortalecidas. Cardoso de Oliveira apontava que os Ticunas que vivam nas beiras do Solimões possuíam mais liberdade em comercializar com os negociantes que aportavam nessas beiras, realizavam vendas com parte do pagamento em dinheiro, o que os aproximava mais da categoria social de campesinato rural. Isso seria um avanço em relação ao regime servil do seringal, por isso, via com bons olhos a afluência de famílias vindas dos altos dos igarapés para as povoações ribeirinhas. Concluindo, via que o futuro dos Ticuna estava na inserção como classe trabalhadora dos empresários brancos, questionava a ação do SPI no Alto Solimões vendo-a como uma contradição da política indigenista voltada para assimilação e integração; isso porque os Ticuna que lá vivam defendiam enfaticamente sua condição de índio:

[...] o Serviço de Proteção aos Índios, mediante a ação de seus Postos Indígenas, tende a dificultar (senão a impedir) o processo de assimilação dos índios à sociedade brasileira na medida em que fortalece, estimulando, a identificação tribal dos componentes de populações aborígenes alvo de assistência direta. (Cardoso de Oliveira, 1972, p.87)

Essas análises de Roberto Cardoso de Oliveira, posteriormente bastante modificadas, são significativas para se compreender o contexto da época, as concepções em jogo sobre os povos indígenas, mas principalmente, ajudam a dimensionar o tamanho do esforço que os Ticuna tiveram de realizar para enfrentar desde leituras acadêmicas como as citadas, até reações de seringueiros e militares contrários à retomada e demarcação das terras pelos povos indígenas.

Um dos passos desse percurso seria o de modificar o conceito arraigado na região de que

eram “caboclos falantes de uma gíria” para passarem a ser vistos como povo indígena dono

de uma língua específica. Nas situações de contato os ticuna eram desprezados como índios, como caboclos, e como seringueiros; ao mesmo tempo, os regionais afirmavam que eles se diziam índios para se beneficiar da legislação específica, mesmo vivendo como caboclos seringueiros. Apesar das observações de Cardoso de Oliveira (1972), os indígenas que recusavam essa confusão identitária, atribuída pela população regional, e que buscavam refúgio junto aos postos do SPI, não estavam livres das ambiguidades dos discursos integracionistas da instituição.