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2. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO POLÍTICO E

2.3. O TRABALHO DO SPI

2.4.1. O trabalho da Funai no Alto Solimões

As mudanças nas políticas que atingiam a região do Alto Solimões antecederam a instalação dos postos da Funai na área. O golpe de 1964 e a ideologia da segurança nacional posta em ação pelos militares no poder incluíam mudanças profundas na ocupação da Amazônia, entre elas a construção da estrada Perimetral Norte. Nesse contexto é que pode ser entendida a transformação da Guarnição Militar de Tabatinga em Comando de Fronteiras do Solimões (CF-SOL) com poder e autoridade para efetuar desde patrulhas na área do Javari, até a intervenção em questões civis antes decididas por políticos locais.

Oliveira Filho (1987) propõe que a presença de militares de alta patente e de um corpo de oficiais desvinculados das relações de poder locais, modificou favoravelmente a relação entre os patrões e os Ticuna. Foram abertas sindicâncias que levaram à punição de seringalistas que aplicavam castigos nos índios, houve impedimento de apropriação de terras indígenas por um poderoso comerciante local, entre outras ações que estabeleceram algumas limitações aos desmandos dos patrões. O lançamento do Programa de Integração Nacional (PIN) em 1974 trouxe aporte de recursos para diversos programas, entre eles o atendimento das populações indígenas da área da futura Perimetral Norte; com isso, o órgão indigenista ganhou melhores condições para ampliar sua ação para além do Posto Indígena de Umariaçu.

Foi nesse contexto que a Funai apresentou o Projeto Tukuna66 que tinha entre seus objetivos interferir no antigo sistema de trabalho e comercialização entre indígenas e os civilizados (sic) rompendo a dependência dos primeiros e a dominação dos segundos, e elevar o nível de vida da população indígena oferecendo assistência jurídica, educacional e médica. Apresentava como meta principal oferecer alternativas que assegurassem o direito à terra tradicional, permitindo assim a manutenção do controle sobre seu processo de integração.

O Projeto proposto pela Funai deixava explicitas as concepções vigentes na época relativas à integração dos indígenas na sociedade nacional. A defesa do direito ao território tradicional indígena já tomava mais força, mas a certeza da diluição dos índios em meio à população rural pobre aparece ainda como um destino irredutível. No projeto constava que a Funai precisaria dar apoio à produção agrícola dos Ticuna para que houvesse excedente a ser comercializado. Considerava que posteriormente os indígenas optariam por “um modelo mais adequado de atividade econômica, seja orientando-se primariamente em função do mercado, seja preferindo manter os padrões camponeses, com a preservação da

unidade do grupo.” (Funai, 1975, p.40)

Também os estudos de Roberto Cardoso de Oliveira desenvolvidos na década de 60 caracterizavam os Ticuna como uma população “tipicamente camponesa”, classificação que pode ser remetida às categorias analíticas de então. Mas Oliveira Filho, seu discípulo, ainda mantinha, na época em que o Projeto Tukuna foi elaborado, esse referencial. Registrava que o Projeto fora inicialmente planejado para a população indígena localizada em Benjamim Constant e arredores. Atestava ainda, que havia muitos Ticuna vivendo ao

longo do rio Solimões, mas que uma ação da Funai que os reclassificasse como “índios”

entraria em choque com os interesses desses Ticuna, uma vez que estes “se identificam e

convivem em pé de igualdade com os sertanejos” (Funai, 1975, p.38).

Conforme o Projeto Tukuna, a futura constituição de um território Ticuna deveria dispor de administração própria nos moldes de um município, com a vantagem da dupla vinculação à Funai e ao Estado, o que permitiria maior mobilização de recursos e manutenção de infra- estrutura e pleno exercício da cidadania. Para tanto, estava prevista a construção de escolas

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que contassem com professores “civilizados” (sic) acompanhados por auxiliares Ticuna. Para estes o SIL promoveria curso de monitores bilíngües com duração de quatro anos para, futuramente, substituir os professores não-índios. Na área assistencial previa-se a construção de enfermarias nas aldeias maiores, alocando-se monitores de saúde indígenas a serem formados. A supervisão ficaria a cargo da Equipe Volante de Saúde, em convênio com o Hospital de Moléstias Tropicais de Manaus, com a Funai também colaborando na ativação do Hospital da Prelazia do Alto Solimões.

Esse projeto nunca chegou a ser implementado, pois o corte de verbas redirecionado para as grandes rodovias planejadas para a Amazônia exigiu a readequação das metas. O local escolhido para uma pequena intervenção foi Vendaval, em São Paulo de Olivença, área de ocupação de muitas famílias ticunas e de grandes seringais de um único patrão. Nesse local

o “regime do barracão” persistiu mesmo após o fim da exploração gomífera; a condição

imposta pelo patrão aos Ticuna para morarem em “sua terra” era a de venderem e comprarem apenas em seu comércio.

Oliveira Filho (1987) revela um caso significativo da situação reinante: mesmo proibido, um líder ticuna viajou até Umariaçu para denunciar o patrão que pretendia se apossar também de uma roça comunitária. A ida de representantes da Funai ao local e posterior construção, efetuada pela comunidade, do Posto Indígena de Vendaval, criou uma situação nova ao inserir o órgão indigenista próximo aos índios e longe do comércio e das cidades como em Tabatinga. Desse modo, mantinha-se ainda a posse da terra pelos brancos, mas não o poder sobre os índios.

Incluídos nas políticas públicas para a Amazônia, especificamente as do Projeto Calha Norte67, foram criados mais cinco postos indígenas na região do alto Solimões, oscilando a reação dos seringalistas da resistência aos indigenistas à pretensa colaboração através da oferta de terras para venda à Funai. Em relação aos indígenas, perduravam as ameaças de expulsão da terra, agora para aqueles que se aproximassem do órgão indigenista.

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O Projeto Calha Norte foi criado em 1985, no governo Sarney. Previa a ocupação militar de uma faixa do território nacional situada ao norte da calha do rio Solimões e Amazonas contando com 160 quilômetros de largura ao longo de 6,5 mil quilômetros de fronteiras com a Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia. Incluía 14 bases avançadas do Exército, com apoio da Aeronáutica e da Marinha. Algumas das metas eram: fortalecer as estruturas e ação de órgãos governamentais na região, a infra-estrutura de energia e telecomunicações, proteger as fronteiras e promover a assistência e proteção às populações indígenas.

Entretanto, muitos patrões reforçaram seu poder através do aliciamento religioso intermediado pela Ordem da Cruzada Apostólica e pelas Igrejas Evangélicas que se fortaleciam nesta mesma época.