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A Ordem da Cruz e o reforço das relações de dominação

2. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO POLÍTICO E

2.3. O TRABALHO DO SPI

2.4.2. A Ordem da Cruz e o reforço das relações de dominação

Os movimentos salvacionistas ou messiânicos entre os Ticuna foram objeto de estudo detalhado por Oro68, observando sua frequência ao longo do tempo, assim como sua capacidade de provocar a movimentação em larga escala de famílias, concentrando-as em alguns locais e modificando o padrão de ocupação das áreas pelos indígenas.

Partindo dessas análises seria possível compreender alguns dos motivos, além da atração exercidas pelos polos comerciais e pelas escolas, nos movimentos e deslocamento de famílias ticunas e na formação de grandes povoações. Umariaçu cresceu tanto como centro de atração por ser uma reserva livre dos seringalistas, como pelo movimento salvacionista que para lá dirigiu grande número de indígenas na década de 40. Belém tinha como forte atração a presença do padre franciscano ligado à Prelazia do Alto Solimões que se contrapunha ao controle comercial dos patrões; assim como Campo Alegre e Betânia ligadas às missões batistas, consolidavam-se como pontos de intensa concentração de famílias que buscavam fugir à exploração econômica e à violência.

O movimento da Santa Cruz promoveu uma das maiores reorganizações espaciais do povo ticuna. Chefiado pelo mineiro José Francisco da Cruz que peregrinou pelo Brasil com o nome de Irmão José da Cruz, anunciava a proximidade do fim do mundo e pregava a salvação dos que se juntassem a ele e seguissem rigidamente seus mandamentos. A salvação possível não pode ser entendida como a salvação cristã transcendental, mas a física (Cardoso de Oliveira, 1972, p.93), livrando-se os crentes do cataclismo que ocorreria em breve. Irmão José mobilizou a população ribeirinha na fronteira do Peru com o Brasil, sua chegada ao Alto Solimões em 1972 trouxe consigo os componentes dos movimentos

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ORO, Ari Pedro. Tükúna: vida e morte. Porto Alegre: Vozes, 1977; Los índios Tükuna y el movimento de Santa Cruz. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, PUC/RS, 5(1):29-50, 1979; Na Amazônia um messias de índios e

brancos: para uma antropologia do messianismo. Petrópolis: Vozes, Porto Alegre: EdiPUCRS, 1989. 208 p.;

Messianisme eglise et etat en Amazonie bresilienne. In: Cahiers du Brésil Contemporain. Paris, 1990, v. 11, pp. 95- 120.

salvacionistas próprios dos Ticuna: alguém que tem visões de um desastre iminente e anuncia a salvação a todos que seguirem para um determinado local onde estarão protegidos desse risco. Cardoso de Oliveira (1978) justifica, tendo por base os estudos de Queiroz (1963) e Nimuendaju (1952), que a adesão dos Ticuna à pregação do movimento da Cruz deve ser entendida dentro do marco da cultura desse povo, do significado que estabelece com os seus mitos e tradições culturais. Significa menos uma mudança na crença indígena do que a escolha de uma identidade possível.

O movimento cresceu com a implantação de cruzes em muitas povoações sinalizando a filiação à Ordem da Cruz, apesar da força contrária da Prelazia e da Missão Batista. Contou com o apoio ostensivo dos patrões e da Funai, ambos motivados pela consequências práticas que a adesão aos princípios da irmandade propiciavam: proibição rigorosa de festas, de rituais de cura, de bebidas, de brigas, forte obediência à lei e valorização do trabalho.

Figura 7 - Transferência da igreja para outro local da aldeia, Porto Cordeirinho, Terra Indígena Tikuna de Santo Antônio, Município de Benjamin Constant, Amazonas.

Foto: Jussara Gruber, 1979; Fonte: Instituto Socioambiental

Os patrões perceberam rapidamente as vantagens que advinham dessa adesão e iniciaram, eles próprios, a atração do missionário. Combinavam habilmente o papel de patrão e dirigente da irmandade, ampliando, como nunca, seus poderes – à época enfraquecidos diante da queda da exploração da borracha e da perda de força econômica e política - sobre o trabalho dos Ticuna. Igrejas foram erguidas pelos seringalistas próximas aos seus

barracões, promovendo missas e rituais nos quais os patrões eram sagrados como diretores da Irmandade, fortalecendo-os e promovendo nova fonte de legitimidade para seu domínio.

Por outro lado, os Ticuna seguidores da Cruz identificavam na seita a possibilidade de uma relação diferente com os demais fiéis, fossem eles seringalistas ou não, porque todos se deviam chamar de irmãos. Isso representava para os Ticuna uma mudança positiva,

comparando com o habitual trato depreciativo de “caboclo”, assim como justificava a

supressão dos castigos proibidos aos patrões convertidos. Oliveira Filho (1987) destaca que o principal fator de conversão dos indígenas consistia na possibilidade de passar a ser visto pela comunidade regional como ordeiro e trabalhador, em oposição aos discursos costumeiros que os associavam a bebidas, pouco trabalho, suicídios69 e feitiçaria. Dentro desse contexto, a escola ganhava reforço como espaço de aprender a ler e escrever em

português, abandonando a “gíria”, como era depreciativamente chamada a língua indígena

ticuna, e tendo por objetivo principal a leitura da bíblia.

Esse autor aponta ainda, que a concentração populacional nas aldeias da Cruz também fazia crescer o comércio do patrão sem que este tivesse de percorrer longas distâncias oferecendo e comprando produtos. Nessas comuniades houve recrudescimento do monopólio dos barracões, além da possibilidade do patrão recorrer à prisão dos indígenas que bebessem – medida apoiada pelos indigenistas da Funai. Estes, convenientemente, juntavam à proibição do uso da cachaça pelos índios o uso das bebidas tradicionais que eram fundamentais para a realização das festas e rituais de cura. Desse modo, ao usar a autoridade dos funcionários do Posto Indígena Ticuna, a ameaça dos patrões de que mandariam prender quem os desobedecesse, se tornava bastante concreta.

A manipulação do poder pelos administradores dos Postos Indígenas da Funai se dava também a partir do beneficiamento, através da disponibilização de verbas, motores, e outros recursos, aos capitães das comunidades ligadas ao movimento da Santa Cruz, o que lhes garantia prestígio e crescimento do contingente populacional atraído pelos bens recebidos. O chefe do Posto de Umariaçu apoiava declaradamente o movimento que,

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Sobre o suicídio, prática ainda recorrente especialmente entre jovens, consultar: ERTHAL, Regina Maria de Carvalho.

O suicídio Ticuna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro,

Fiocruz, v. 17, n. 2, mar./abr. 2001; ERTHAL, Regina Maria de Carvalho. O suicídio Ticuna na região do Alto

segundo Cardoso de Oliveira (1978), se constituía na panacéia tão esperada por esses funcionários para resolver os problemas de domesticação dos Ticuna. Esse autor contesta a ação desses indigenistas, tanto pela necessária defesa da laicidade do Estado e seus órgãos, como pelo fato de que o apoio da Funai revertia essencialmente no fortalecimento do poder dos patrões em detrimento dos Ticuna, muitos dos quais já começavam a falar na definição de áreas ou reservas para seu povo.

Cardoso de Oliveira (1978) observa que a apropriação dos recursos do órgão oficial pelas lideranças associadas aos valores ideológicos da Santa Cruz configurou as facções dominantes, verdadeiras unidades políticas com poder absoluto de preconizar a ordem vigente para a vida de toda a aldeia. Em locais como Umariaçu e Belém o faccionalismo religioso, alimentado pelo órgão indigenista, provocou muitos conflitos derivados da não aceitação, por outros moradores, das imposições religiosas que se confundiam com a autoridade política do Posto. O crescimento das proibições e a semi-clandestinidade de grande parte da vida social dos membros não seguidores da Cruz culminaram na desqualificação de suas lideranças. Posteriormente, através de um projeto desenvolvido pelo antropólogo João Pacheco Oliveira Filho dentro do âmbito de sua pesquisa de mestrado70, foi proposta uma intervenção no sentido de interromper ou controlar a manipulação da autoridade da Funai em favor de uma das facções, de modo que seus representantes decidissem juntos sobre as demandas dos moradores. A morte do líder irmão José em 1983 diminuiu a força do movimento que prosseguiu tendo à sua frente um sucessor por ele nomeado.

Outras propostas de ação para o órgão indigenista foram aventadas pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1978), entre elas, a restrição do movimento de Santa Cruz ao âmbito das igrejas assumindo a Funai o trabalho de educação, saúde, e também a criação de cooperativas que pusessem fim ao controle do comércio pelos patrões donos dos barracões. Cardoso de Oliveira defendia que o foco da Funai deveria ser a luta pela preservação dos territórios indígenas com suas áreas de roça no interior nos igarapés e não só as vilas, alertando para o risco que se configurava com a previsão da abertura da Perimetral Norte. Ele também conciliava, propondo a manutenção das propriedades e

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Oliveira Filho, João Pacheco. As facções e a ordem política em uma reserva Tukuna. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, 1977.

comércios dos brancos instalados nas povoações, desde que “auferissem lucros justos”

(Cardoso de Oliveira, 1978, p.218). Por mais que essa idéia nos pareça impossível seria, provavelmente, menos drástica do que a proposta da Funai anunciada em 1979, de aproveitar a mão de obra de 30 mil índios da região amazônica, incluindo os Ticuna, para trabalharem na exploração de borracha, contando com empréstimos bancários para financiar seringalistas e comerciantes71.