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3. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO

3.4. AS ESCOLAS DOS POSTOS INDÍGENAS DO SPI E DA FUNAI

3.4.1. As escolas do SPI

A atuação do SPI a partir de 1910 significou uma mudança na orientação das relações do Estado com os índios, que pressupunha respeito à diversidade cultural e lingüística dos povos indígenas em substituição às práticas seculares de extermínio exercidas sobre eles. Ferreira (2001) aponta que, contrariamente às escolas missionárias, as ações do SPI não tinham objetivos catequéticos, mas reforçavam a formação para o trabalho, na pecuária e agricultura ou até pequenos ofícios que favorecessem a integração dos indígenas no mercado enquanto trabalhadores, produtores e consumidores. Cunha (1990) esclarece

ainda que diversos postos indígenas do SPI instalavam oficinas mecânicas, engenhos de cana e casas de farinha, treinando os índios em diversos ofícios, ou enviando crianças indígenas para as escolas de artífices existentes nas capitais estaduais.

Assim como nos antigos aldeamentos missionários, as escolas dos postos indígenas do SPI também eram vistas como espaços que favoreciam a sedentarização dos índios. Além da alfabetização e dos trabalhos manuais específicos para meninas e meninos, ministravam noções de higiene e uso de vestimentas, além de desenvolverem diversas atividades cívicas. Na maioria dos postos a professora era a esposa do encarregado, que acolhia também filhos de funcionários, de colonos e até dos fazendeiros vizinhos; tal como qualquer escola rural, poucas vezes a professora tinha formação e os métodos de ensino utilizados eram precários, o que resultava num nível muito baixo de aprendizagem e aprovação. Dentro dessa perspectiva integracionista, a língua valorizada, ensinada e utilizada na escola era exclusivamente a língua portuguesa.

Entretanto, é importante destacar na prática das escolas do SPI aquilo que a diferenciava

das demais escolas rurais, ou seja, a transformação dos índios em “trabalhadores úteis”.

Isso ocorria através do ensino de técnicas de confecção de roupas e trabalhos com agulhas para as meninas e carpintaria, funilaria, olaria, trabalho com couro, e outros ofícios aos meninos – o que era motivo de profundo desinteresse para as crianças e seus pais, exceto entre os que Cunha (1990) designava como “mais aculturados”.

Segundo esse autor, ao contrário do que comumente se afirmava, os técnicos do SPI chegaram a questionar as escolas oferecidas aos povos indígenas. Criticavam o fato que após tantos anos ainda eram em pequeno número (pouco mais de 60 unidades na década de 50 em todo Brasil) e seu funcionamento se dava nos moldes das escolas comuns,

inadequados aos índios. Embora defendessem que “Ensinar é preparar a criança para assumir os papéis que a sociedade os chamará a exercer”. (SPI103

1953, citado por Cunha, 1990, p.89), os técnicos do SPI criticavam a fragilidade da formação dos professores e as condições precárias de trabalho, assim como a disciplina forçada e o confinamento das crianças durante muitas horas.

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As propostas que tais técnicos apresentavam previam a criação de um espaço mais agradável e aberto, como uma extensão da aldeia, e também que as crianças não fossem privadas do aprendizado informal das técnicas essenciais à sua vida, como a produção de artefatos tribais de caça, pesca e da dança. Mesmo assim, mantinham para os homens o aprendizado dos ofícios relativos à manutenção das máquinas e ferramentas do posto e o ensino da costura para as mulheres. Quanto à língua utilizada na escola, Cunha (1990) aponta que os técnicos do SPI consideravam que, diante do monolinguismo em língua indígena de grande parte das crianças indígenas, no primeiro ano se fizesse apenas o ensino oral do português. Esperavam, assim, que as crianças aprendessem com maior facilidade e talvez não esquecessem tão rapidamente, por não usarem a língua aprendida, exceção feita aos grupos bilíngues, de maior contato, já em transição para o monolinguismo em português.

Essas escolas, impostas aos povos indígenas, constituíam-se em espaço de negação da identidade indígena, de submissão e promoção do desaparecimento dos indígenas enquanto povos culturalmente distintos, com vistas à sua integração nas camadas mais baixas da sociedade nacional. Em seus currículos não havia espaço para os conhecimentos e línguas indígenas, assim como não existiam materiais específicos e nem previsão de participação da comunidade na vida escolar.

Na região do Alto Solimões, a primeira escola do SPI foi criada após a instalação do Posto Indígena Ticunas (PIT) em Tabatinga no ano de 1942. Como na área viviam indígenas e não-indígenas a escola atendia um alunado diversificado, sua organização e conteúdos eram, como nas demais escolas daquele órgão, semelhantes aos de qualquer escola rural. Nessa área, outros postos indígenas somente foram criados muito tempo depois, entre 1975 e 1981, sendo que as escolas a eles vinculadas tiveram início quando já se contava com a parceria de missões religiosas e prefeituras.

Face à precariedade de informações, os relatos do professor Silvio Coelho dos Santos, da Universidade de Santa Catarina, se revestem de grande importância. Em 1962 Coelho dos Santos participou de um estudo de campo na região do Alto Solimões sob a orientação do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Seu foco de observação eram as escolas e como estas poderiam favorecer os povos indígenas que viviam forte processo de sujeição pela sociedade nacional. Realizando um

estudo das escolas entre os Xokleng de Santa Catarina e os Ticuna do Alto Solimões, o

antropólogo catarinense partia do princípio que a escola poderia ser uma instituição “capaz

de facilitar a integração do índio na vida sócio-econômica regional” (Coelho dos Santos 1966, p. 31), mas para isso, precisaria seguir princípios e práticas melhores do que aquelas encontradas em suas pesquisas junto a esses grupos indígenas nas escolas mantidas pelo SPI e pelas missões.

Apesar das críticas que fazia aos modelos de educação vigentes na época, Coelho dos Santos desconfiava da possibilidade de serem introduzidas orientações inovadoras, discutidas nos seminários latino-americanos desde a década de 40, relativas ao ensino bilíngüe. Considerava que tais inovações não poderiam ser aplicadas no Brasil por falta de professores capacitados, pelo alto custo devido às muitas línguas faladas, porque a

população indígena era reduzida e devido à falta de “literatura escolar específica para cada grupo” (Coelho dos Santos 1966, p. 31)104

. Segundo ele, esses seriam os motivos que levaram o SPI a adotar a língua portuguesa no ensino aos indígenas.

Em suas críticas, o autor afirma que a escola no Posto Indígena Ticunas funcionava há oito anos e nenhum dos alunos havia sido promovido para a segunda série ou se alfabetizado. Durante seu estudo, um professor da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo sediado no município vizinho de Benjamim Constant, ministrava voluntariamente aulas, pois não havia recurso para pagamento do docente. Nessa escola havia 78 alunos matriculados com idade de 10 a 19 anos e a taxa de freqüência era de 65%. Segundo o autor, os alunos chegavam a fazer cópias perfeitas, mas não sabiam ler. Não era ensinado nada sobre artesanato ou agricultura, nem havia atividades recreativas, conteúdos valorizados pelo autor como meio de criar um ambiente favorável ao aprendizado das técnicas de produção, comuns nas propriedades rurais nas quais os indígenas poderiam conseguir emprego.

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O autor cita BELTRÁN, 1973, p. 226, referindo-se ao 1º. Congresso Indigenista Interamericano, realizado em Pátzcuruaro, México, em 1940, no qual o ensino bilíngüe foi discutido e que, posteriormente, em outros congressos interamericanos foram fixados acordos para troca de experiências sobre o tema. Observa que na II Conferência Interamericana de Educação (Santiago do Chile, 1944), no Seminário Regional de Educação na América Latina (Caracas, 1948), na IX Reunião do Conselho Interamericano Cultural (México 1951) e na Reunião de Peritos da Unesco (Paris, 1951), a educação bilíngüe foi enfatizada e valorizada para ser usada na América, justificando que a educação iniciada pela língua que não a materna leva a um semi-analfabetismo, e que ainda que não haja literatura sobre o ensino da língua vernácula, é esse o método mais adequado para uma alfabetização duradoura. Coelho dos Santos, 1974, p. 61, nota de rodapé.

Posteriormente, pesquisas realizadas por Oliveira Filho (1988) denunciavam ainda que a escola do PIT em Umariaçu atendia uma maioria de crianças indígenas e algumas não- indígenas, mas mesmo assim, alfabetizava em Língua Portuguesa sendo que os alunos indígenas só falavam a própria língua. Essa escola padecia da falta constante de professores e, quando os tinha, eram pessoas pouco preparadas. Em 1965 foi construída uma escola estadual que ficou sob a responsabilidade da Marinha até 1983, passando na década de 90 a ser considerada indígena embora seu diretor e corpo docente fossem não- índios. Há poucos anos a comunidade de Umariaçu conseguiu substituir esses funcionários por professores indígenas.

Coelho dos Santos (1966) visitou ainda a escola isolada de Vendaval no igarapé São Jerônimo, município de São Paulo de Olivença, onde não encontrou alunos indígenas apesar da numerosa população de índios, especialmente Ticuna. O autor relata que segundo a professora local ela não perdia tempo em ensiná-los, pois não conseguiam aprender. Para Coelho dos Santos (1966) esses resultados ruins refletiam a falta de formação da professora que, do mesmo modo, ensinava mal aos que ele denominava “civilizados”. O autor registrava que, ao longo de três ou quatro anos, o ensino aos não-indígenas restringia- se às quatro operações e à cartilha, também com resultados muito precários.

O referido autor elencava algumas características dos indígenas que dificultavam o processo de alfabetização: apenas os homens falavam português, sendo que as mulheres e crianças, por terem pouco contato com os regionais, chegavam à escola sem conhecerem quase nenhuma palavra nessa língua. Lembrava que o modo como os pais criavam os filhos entrava em desajuste com as práticas coercitivas da escola, concluindo que o modo de vida indígena conduzia os interesses das famílias para outras atividades que não o estudo.

O autor acreditava que o modo como os Ticuna se relacionaram com as frentes de

expansão havia gerado essa “timidez”, uma “casca” em relação ao “civilizado”, que os professores não sabiam romper e, por isso, os taxavam de “calados”, “complexados” e “difíceis de ensinar”; entretanto os Ticuna eram muito interessados pela Cartilha do ABC

Nesse estudo, realizado por Coelho dos Santos no início da década de 60, o foco da crítica sobre o insucesso das escolas entre os povos indígenas recaia sobre o professor, seus métodos de trabalho e o modo preconceituoso no trato com o aluno indígena. Ele defendia que os professores deveriam conhecer a cultura do grupo, manter um convívio e familiaridade com a língua e instituições sociais e políticas dos grupos indígenas, para que soubessem adaptar seus princípios educacionais à realidade específica dos Ticuna. Sua crítica se estendia aos programas do SPI considerados insuficientes e necessitando urgentemente, da elaboração de princípios básicos para o ensino de povos tribais, com formação de professores que respeitassem as realidades específicas indígenas. Segundo ele, só assim a escola seria um agente orientador da aculturação.