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3. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO

3.4. AS ESCOLAS DOS POSTOS INDÍGENAS DO SPI E DA FUNAI

3.4.2. A Funai, os monitores bilíngues e o SIL

As escolas mantidas pela Funai preservaram do SPI a idéia da educação orientada para o

trabalho, cabendo à Fundação dar aos índios condições de “resistência e competição”.

Dentro dessa lógica os funcionários do órgão indigenista afirmavam que não podiam mais oferecer enxadas e sim tratores, de modo que a produção nas terras indígenas atendesse ao mercado. Cunha (1990) analisa que os projetos desenvolvidos pela Funai para o trabalho nos postos indígenas mantinham os objetivos integracionistas nos quais a escola tinha o papel fundamental de preparar os índios para a produção de mercadorias, geração de ganhos e inserção na sociedade nacional.

Para o referido autor, essa política da Fundação, substituindo as técnicas agrícolas dos indígenas por maquinários levou a uma maior vulnerabilidade e dependência da sociedade nacional em detrimento dos interesses dos índios. Alguns povos que iniciaram o uso dessas tecnologias, com vistas à produção em maior escala, viram esses projetos se desmoronarem, restando-lhes uma terra desprovida dos recursos tradicionais que antes garantiam sua sobrevivência.

Coelho dos Santos, em seus estudos publicados em 1974, criticava os termos em que a educação patrocinada pela Funai desde 1971, em substituição ao SPI, acontecia entre os indígenas. Apontava que tanto a escola, o programa de ensino, o monolinguísmo em português, como o professor, representam facetas do domínio e exploração exercidos pelos

brancos, preparando os jovens para servirem como consumidores e mão de obra para os trabalhos mais rudimentares, justificando os estereótipos dos não-índios e a submissão social e econômica dos indígenas.

Ampliando o foco das análises anteriores, Coelho dos Santos (1974) propunha que a educação pudesse servir para mudar essa situação, mas que, para tanto, teria de ter outra qualidade. Insistia que os índios não eram ouvidos, que a escola era isolada, que o professor não tinha preparação e que o programa de ensino era sem vínculo com o grupo indígena, sendo raros os alunos que aprendiam alguma coisa ou que faziam uso do pouco que a escola ensinava. O autor assinalava que a escolarização não os transformava em trabalhadores qualificados com rendimentos para usufruir do consumo de bens culturais ou exercer atividades nas quais exercitassem a escolaridade.

A única grande mudança nas escolas da Funai foi a introdução do ensino bilíngüe, entendido como meio de adequar a escola à realidade indígena, assim como a presença do monitor indígena nas classes de alfabetização para facilitar o contato dos professores não- índios com as crianças monolíngües na língua materna (Ferreira 2001). É importante esclarecer que se tratava de um bilinguísmo de transição para a língua nacional mas, mesmo assim, sua adoção não ocorria em todas as escolas. Os programas eram fundamentados nos estudos lingüísticos, seguidos de apresentação de uma proposta

ortográfica e da produção de material de alfabetização, variando de acordo com o “grau de aculturação”. Suas orientações incluíam ensinar português, em seguida os conteúdos

escolares nacionais, o ensino de noções de higiene, saneamento, aritmética, agricultura, marcenaria e mecânica. (Cunha, 1990)

As críticas ao ensino veiculado nas escolas da Funai dirigiam-se às formas de representação ortográfica da língua que tomava por base o português, os conteúdos e ilustrações dos materiais didáticos desvinculados da realidade cultural e histórica dos povos indígenas. Segundo Cunha (1990) a aprendizagem era superficial, decorada, sem uso real. Como não havia, por parte dos professores, uma formação intelectual adequada, a escolarização não considerava o modo como tradicionalmente as sociedades socializavam seus jovens.

Um dos marcos da atuação do órgão indigenista na área da educação foi a criação, em fevereiro de 1970, da primeira Escola Normal Indígena no Posto Indígena Guarita, em Tenente Portela no Rio Grande do Sul, destinada a formação de monitores bilíngues que atuariam como auxiliares dos professores não-índios nas escolas das aldeias e colaborariam na elaboração do material didático. Segundo Relatório do 1º. Encontro de Monitores

Bilíngues, o trabalho do monitor bilíngue consistia em “ensinar as crianças e adultos na sua

língua materna, preparando-os para entrar no sistema nacional” (Funai, 1976, p.1). Além dessa turma inicial atendendo aos Kaingang, foram efetivados cursos para os Karajás, Xavante, Guajajara, Paresi, Apalai, Kayapó, entre outros.

As dificuldades apresentadas pelos monitores eram muitas: falta de currículos adequados, de material didático, de prédios, de merenda, ausência de cursos de atualização e de orientação sistemática, do pouco tempo de curso preparatório, assim como divergências sobre os métodos de ensino105; e ainda do excesso de alunos em classe e de atividades que o monitor tinha que dar conta. Entretanto, na conclusão o documento a Fundação aponta que o sucesso ou fracasso do trabalho desses monitores dependia da sua própria capacidade de inovação, dedicação, desejo de mudar, assumindo o trabalho com firmeza e dedicação.

A situação do monitor bilíngüe era de grande pressão, tanto durante seu processo de formação, como posteriormente em seu trabalho, era ele a pessoa do grupo indígena que atuava como interlocutor e repassador, traduzindo os conteúdos ministrados pelo professor não-índio aos estudantes. Os projetos educativos que vinham de fora pouco ou nada significavam para os indígenas e seu treinamento tinha por objetivo fazê-lo adaptarem-se aos padrões da educação e sociedade nacional. O monitor bilíngüe, conforme aponta Silva

e Azevedo (1995 p.151e152): “não é outra coisa senão um professor indígena domesticado

e subalterno. [...] É muito menos alguém que monitora do que alguém que é monitorado

por outro. [...] estão sempre prontos a servir a seus superiores civilizados” (sic).

Frequentemente os docentes não-indígenas abandonavam o trabalho nas escolas indígenas e seu posto acabava sendo assumido precariamente pelo monitor bilíngüe - esse foi o caminho profissional de muitos dos professores indígenas.

105Sobre o tema é indicada a leitura do artigo “A formação dos primeiros professores indígenas no sul do Brasil” de

Andila Inácio Belfor, in: Cadernos de Educação Escolar Indígena. 3º. Grau Indígena, Barra do Bugres, Unemat, vol. 4, no. 1, 2005.

Com a finalidade de organizar o ensino bilíngue que crescia nas escolas das aldeias, especialmente naquelas sob influência do SIL106, a Funai publicou as “Normas para

Educação dos Grupos Indígenas” (Portaria 75 de 6/7/72), orientando que os idiomas indígenas deveriam ser “aproveitados”, a cultura indígena preservada e, ainda, considerar- se a necessidade de “regulamentar a grafia das publicações em língua indígena que deve

constituir-se num elemento de transição à língua nacional”. Tendo em vista esses objetivos, as Normas determinavam:

1. A educação dos grupos indígenas com problemas de barreira linguística será sempre bilíngüe;

2. Será empregada a língua nacional no desenvolvimento dos programas educacionais dirigidos aos grupos indígenas que a tenham como língua habitual, sem prejuízo de se proporcionar o conhecimento das línguas nativas, como instrução suplementar;

É significativa a expressão “problemas de barreira linguística” na medida em que remete à

idéia de que a língua própria é um entrave, literalmente um problema e não um bem cultural a ser cuidado107. O desprezo pelas línguas indígenas, sua grafia e complexidade pode ser notado nos tópicos que seguem referentes a essas mesmas Normas:

3. A grafia das línguas indígenas, para textos de consumo dos grupos tribais deve ser a mais aproximada possível da grafia do português;

4. Deve-se adotar como norma geral, na grafia das línguas indígenas, o princípio lógico de representação de um fonema por um único símbolo;

Era ainda a Funai quem propunha a reunião de colaboradores técnicos – e não funcionários de seu quadro - para “examinar e propor normas para a grafia das publicações em língua

indígena”, o que remetia claramente à parceria com religiosos, especialmente do SIL,

consolidada durante o 1º. Seminário Funai/Missões Religiosas realizado em Brasília entre 05 e 09 de novembro de 1973108.

106 O Summer Institut of Linguistics (SIL), estava presente no Brasil desde 1953 e desde 56 desenvolvia ações educativas

junto aos povos indígenas com anuência do SPI. Fez o primeiro convênio no Brasil com o Museu Nacional em 1957 com a justificativa do balanço negativo das escolas mantidas pelo SPI (apenas 66), todas monolíngües em português e que seguiam o modelo rural. Os lingüistas do SIL supririam as faltas de especialistas na área dentro da Funai com a qual estabeleceu o primeiro convenio em 1969, e que em 1972 tornou obrigatória a educação bilíngüe no Brasil. O SIL atuou junto aos Terena, Sateré Mawé, Kaingang, Hixkariana. Em 1977, o Museu Nacional rompeu o convenio constatando que os estudos lingüísticos eram precários e disfarçavam a verdadeira função de conversão religiosa.

107A idéia da língua como “instrução suplementar” está na base das posteriores soluções de enquadrar o ensino da língua,

narrativas históricas, enfim a cultura indígena como conteúdos da parte diversificada dos currículos, algo secundário

e ministrado caso “dê tempo”, “numa festinha ou atividade”, priorizando sempre a base nacional comum, como nas

demais escolas.

108 Posteriormente, em 1975 a Funai promoveu o Seminário “Antropologia, Indigenismo e Desenvolvimento” em

parceria com o Instituto Indigenista Interamericano e colaboração do Ministério das Relações Exteriores, da Aeronáutica e o SIL. Suas recomendações finais eram: desenvolver programas educacionais que estimulem o

Os termos do acordo firmado expressavam com nitidez as concepções governamentais da época sobre os índios, desde o modo de estabelecer o contato, até qual destino lhes traçar

no rumo à integração nacional, ironicamente descrita como sendo “de modo a preservar sua cultura”. Com a Portaria Nº 75 ficava oficializada a presença de missionários-linguístas

nas áreas indígenas, inclusive nas frentes de contato109, para que pudessem aprender rapidamente a língua e produzir materiais didáticos para as escolas, atuando inclusive como professores. Outras proposições aprovadas no Seminário reforçam a função da escola como instrumento de transição da cultura indígena para a nacional:

3. que as Missões Religiosas, ao alfabetizarem o grupo indígena junto ao qual atuam, o façam no idioma do grupo indígena e, também na língua portuguesa;

4. que, após alfabetizados, seja fornecida ao índio, a oportunidade de estar em contato com textos sobre assuntos variados, a fim de que ele sinta a utilidade do que aprendeu, respeitando–se sempre seus padrões culturais;

Mindlin (2004) propõe que, na comparação que era então estabelecida entre as escolas- internatos110 da igreja católica que atuavam nas áreas indígenas até a década de 70, as escolas da Funai e do SPI nas quais era proibido o uso da língua indígena e o ensino era monolíngue em português, e as escolas bilíngües do SIL, estas chegavam a receber menos críticas.

Por outro lado havia questionamentos ao trabalho do SIL, tanto do ponto de vista de sua qualidade lingüística, como por disfarçar o real objetivo proselitista, considerando que no Brasil não se poderia ficar preso ao fato de haver ou não lingüistas, problema que ainda existe. Essa carência não justificava proibir ou estimular o não uso da língua indígena, ou

desenvolvimento comunitário, capacitando os índios a assumirem as iniciativas, responsabilidades e, respeitando as peculiaridades regionais os projetos comunitários devem visar à criação de cooperativas nos postos indígenas (DIAS DA SILVA, 1997a).

109 Em 1983 a Funai incumbiu o SIL do trabalho de educação junto a 53 povos inclusive recém contatados como os

Waimiri Atroari. Em 1984 foram expulsos do Xingu pelos índios sendo que em 1990 a Opan conseguiu que a Funai os retirasse dessa área.

110

Segundo FREIRE (2004) essas escolas eram o modelo de promoção da submissão e de negação da identidade dos povos indígenas; nelas as crianças retiradas das famílias eram proibidas de usarem a própria língua e realizarem suas práticas culturais, recebiam formação profissional e cristã. Mais tarde eram devolvidas às comunidades nas quais raramente conseguiam se reintegrar. Para se conhecer com mais detalhes esse modelo de educação desenvolvido pelas missões em diversas regiões do Brasil, é fundamental a leitura de GRUPIONI (2008, p.143 a 155) que analisa a entrevista com Fausto Mandulão, liderança dos professores indígenas de Roraima, na qual relata sua vida como interno, explicitando as características, opressora, proselitista e integradora da educação ministrada pelos

missionários. Ver também o Relatório “Dispositivos pedagógicos em funcionamento no Ensino Médio no Alto e Médio Rio Negro – propostas locais de mudança”, elaborado em 2004 no âmbito do „Diagnóstico da Escolarização

em Nível Médio dos Povos Indígenas no Alto e Médio Rio Negro-AM, de autoria de Judite Gonçalves de Albuquerque.

ainda necessariamente se recorrer aos missionários do SIL111. Linguístas defendiam que a importância do ensino da língua indígena, não era servir como passagem para a língua portuguesa, mas sim pensar o interior do universo cultural indígena. Mindlin (2004) conclui com base em Monserrat (1994), que, ao invés dos lingüistas do SIL que

monopolizavam a técnica da escrita das línguas indígenas, “o domínio, o conhecimento e o

sentimento da língua tem que pertencer ao povo que a fala” (Mindlin, 2004, p.110).

Coelho dos Santos (1974) criticava firmemente a Funai como continuadora da prática do SPI, mantendo escolas nos postos com ensino e estrutura igual às da zona rural, com resultados nulos para os índios e que reforçavam ainda mais sua submissão. Defendia que não se tomasse apenas a educação como fator de mudança na relação do índio com a sociedade nacional. Apesar de manter a defesa do ensino bilíngüe, já em prática em outros países sul-americanos, observava que ele por si só não era suficiente, porque a educação não podia resolver questões de falta de clareza do indigenismo oficial. Coelho dos Santos (1974) voltou seu foco para esse ponto, propondo que as ações em educação deviam mudar a partir da definição do lugar do índio na sociedade brasileira, de modo que não constituíssem mais uma casta inferior ou uma segunda categoria de brasileiros112.