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Ser caboclo ou índio? As ações do SPI junto aos Ticuna

2. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO POLÍTICO E

2.3. O TRABALHO DO SPI

2.3.2. Ser caboclo ou índio? As ações do SPI junto aos Ticuna

Em 1942 o SPI instalou em Tabatinga o Posto Indígena Ticunas (PIT) inaugurando alterações significativas nas relações entre os índios e a população regional, decorrentes das profundas divergências entre os princípios indigenistas do órgão e o modo e concepções dos regionais no trato com os Ticuna. Essa polarização inicial marcou toda a trajetória de sua atuação – houve encarregados que tiveram grande dificuldade na tentativa de apoiar as demandas indígenas devido a forte resistência das famílias proprietárias dos

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LEMOS, Bento. Relatório do Inspetor referente aos trabalhos realizados no exercício de 1030-31 na Inspetoria

do Amazonas e Acre. Manaus: MAIC/SPI, 1932, citado por ROCHA FREIRE, 2007, p.20.

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Idem.

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seringais; outros eram francamente aliados dessa elite local, ou ainda, estritamente burocráticos e omissos.

Nesse contexto, a atuação de Manuel Pereira Lima - o Manuelão - no período de 1943 a 46, transformou-o em personagem cujo prestígio perdurou por décadas após sua permanência no PIT. Manuelão criou um sistema de compra de farinha por preços mais elevados que aqueles pagos pelos patrões nos seringais, possibilitando inclusive o recebimento de dinheiro pelos índios, o que era absolutamente inédito, e lhes permitia comprar as mercadorias onde lhes conviesse.

Criou grandes roças e desenvolveu a criação de animais junto ao Posto Indígena de Umariaçu, atividades que obtiveram grande produtividade, revertendo a venda para os índios responsáveis pelo trabalho e parte para a manutenção do Posto. Sua linha de ação seguia a orientação do SPI de ensinar aos índios técnicas agrícolas que lhes permitissem inserir-se na sociedade como trabalhadores, mas diferentemente de outros brancos, sua atuação era muito próxima dos indígenas: trabalhava na terra na qual cultivavam feijão, cana de açúcar, milho, produzindo farinha, criando animais e ainda pondo em funcionamento uma olaria.

A notícia de que Manuelão comprava a farinha levada pelos Ticuna por preço do mercado regional, assim como desenvolvia no Posto um roçado no qual o trabalho indígena era remunerado, alastrou-se rapidamente pelos seringais e conduziu para o entorno do PIT grande número de famílias ticunas. Esse movimento gerou insatisfação entre os moradores de Tabatinga e, principalmente, junto aos seringalistas que viam esvaziarem-se os igarapés da mão de obra que ferrenhamente subjugavam. Como forma de distanciar os indígenas da pressão exercida contra o PIT pelos moradores da cidade de Tabatinga, Manuelão obteve permissão para compra de uma área um pouco mais afastada, junto ao igarapé Umariaçu para onde foi deslocado o Posto. Constituiu-se, aquela faixa de terra entre o rio Solimões e a guarnição do Exército, numa área de reserva indígena ainda que nela permanecessem antigos posseiros.

O significado que a figura de Manuelão adquiriu para os Ticuna é analisado por Oliveira Filho (1988) apontando que apenas ele e Curt Nimuendaju foram chamados de aẽ gacü - que poderia ser traduzido como chefe legítimo - mas atribuída apenas a um chefe externo,

uma vez que tal categoria não tinha referência na organização política tradicional ticuna. Esse autor destaca que não havia nada de novo nas atividades agrícolas que Manuelão propunha, ou seja, elas eram semelhantes àquelas que os indígenas já realizavam como atividade complementar ao lado do barracão no seringal. Entretanto, no seringal, os produtos do roçado eram comprados pelo patrão por preços ínfimos e nunca pagos em dinheiro, mas sim através da troca por mercadorias oferecidas pelo seringalista a preços extorsivos. O regime do seringal mantinha os indígenas subjugados economicamente, pois eram impedidos de realizarem vendas a qualquer outro negociante sob pena de surras, prisões e destruição das roças.

Nesse sentido, Manuelão não era apenas um bom patrão que pagava corretamente; o que havia de novo era possibilidade do trabalho remunerado, a relação amistosa que estabeleceu com os índios, defendendo-os das violências dos patrões, ainda que pouco resultado obtivesse em suas denuncias. Buscou, a seu modo, incorporá-los como cidadãos brasileiros dentro do espírito cívico que marcava os princípios do SPI, daí sua preocupação em comemorar as datas nacionais, reverenciar os símbolos pátrios, colocando-se como representante do governo federal no enfrentamento com as elites locais. Esses aspectos foram de suma importância na construção da imagem e significado de Manuelão: ele era de fora, não era um branco como outros, ele não defendia os interesses dos seringalistas locais, ele era do governo federal, era desse mesmo governo que havia comprado uma terra só para os índios, enfim - esse era o governo dos índios e sua fala era uma ordem do

“Nosso Governo” - Torü aẽ gacü.

A força de atração da então reserva de Umariaçu ganhou reforço a partir do movimento salvacionista no qual um jovem ticuna anunciava mensagens enviadas pelos heróis imortais do povo Ticuna. Entre elas, previa uma grande catástrofe na região da qual só se salvaria a terra do SPI. Esse episódio analisado por Queiroz (1963) e Oliveira Filho (1988) não se dirigia diretamente contra os patrões, porém, causou um enorme deslocamento de famílias que abandonaram os seringais rumando para a área do Posto, apesar da falta de estrutura para atender tanta gente. Os autores citados observam que o movimento se constituiu na exploração de uma oportunidade histórica pelos índios que viviam o regime do seringal, pois até então, só tinham como alternativa fugirem para as cabeceiras dos igarapés afastando-se cada vez mais para dentro da floresta nos limites com a Colômbia.

Com a mudança de sua chefia, Manuelão foi transferido, para alívio dos regionais, e total desconsolo dos Ticuna que afirmavam, ainda décadas depois, que nunca mais houve outro encarregado que se aproximasse do trabalho que ele fizera. Mais do que um funcionário que cumpria as orientações do indigenismo, o que ele representou para os índios foi a possibilidade de se verem não mais como caboclos, mas como cidadãos brasileiros. Os Ticuna valorizavam extremamente o tratamento respeitoso, as sindicâncias nos seringais, o pagamento em dinheiro que os igualava aos demais trabalhadores e os distanciava do conceito de índio selvagem atribuído aos povos do Javari. Porém, o que mais favoreceu a construção dessa imagem de Manuelão junto aos Ticuna foi a associação da sua atuação como orientador ensinando novos conhecimentos. Isso o aproximava, segundo análise de Oliveira Filho (1988), do modo de agir dos heróis míticos do povo Ticuna - Ipi e Yo’i que também transmitiram, nos tempos antigos, tudo o que os Ticuna sabiam sobre o mundo. Manuelão era associado ao lado leste, ao Brasil, direção escolhida por Yo’i quando deixou a terra sagrada do Eware. Teria havido então uma “tradução da ação indigenista em termos

da tradição” (Oliveira Filho, 1988, p.187) e Manuelão considerado como um chefe

associado à tradição, enviado pelos imortais.

A falta de prestígio, poder, verbas e pessoal qualificado constituíram grandes limitações aos administradores do Posto Indígena Ticuna no Alto Solimões que eram quase sempre omissos e pouco empreendedores, o que alimentava a crítica feita pelos índios. Muitas denúncias não encontravam respaldo na administração central e mesmo a pressão para tirar os posseiros de Umariaçu se esvaziara. Por outro lado, embora a chefia do PIT tivesse, até mesmo, sido entregue a familiares de seringalistas, os moradores de Tabatinga defendiam seu fechamento justificando que a presença do Posto era um entrave ao desenvolvimento regional. A pressão dos não-índios se fazia também através do argumento que os Ticuna eram caboclos aculturados, que o SPI deveria se ocupar dos verdadeiros índios que habitavam o vale do Javari, já que, estes sim, vinham causando problemas aos seringalistas e madeireiros por seus ataques às frentes de exploração.

O PIT incomodava principalmente por ser um local para onde os Ticuna podiam refugiar- se dos patrões e do trabalho do seringal, crescendo sempre o número de famílias que lá buscavam proteção após fugas ou conflitos com os seringalistas. Por outro lado, o encarregado do Posto tinha sua ação limitada à reserva indígena de Umariaçu e se via diante da impossibilidade de exercer os enfrentamentos necessários nas extensas áreas de

exploração da borracha ao longo do Solimões e seus igarapés. Os Ticuna eram mantidos sob desenfreada exploração, constantes violências e pressões por parte dos patrões, especialmente nos grandes seringais de São Paulo de Olivença. Nessas regiões consideradas de ocupação privada pelos seringalistas, o SPI não tinha acesso e nem era reconhecido pelos índios.

Cardoso de Oliveira (1978) destaca ainda que os índios que viviam em povoações ribeirinhas ao Solimões beneficiavam-se do contato mais frequente com regatões62, comerciantes e missionários, por meio dos quais podiam burlar o controle do patrão e negociar obtendo uma margem melhor de ganho. No igarapé Belém63 o padre local permitia que os barcos atracassem em seu porto e negociassem com os indígenas para total contrariedade do dono do seringal vizinho. A margem de negociação era pequena, pois se o Ticuna não vendesse a quem por ali passava perdia a mercadoria, produto quase sempre perecível.

Outros fatores contribuíram para a quebra do monopólio dos patrões além do próprio enfraquecimento decorrente da decadência da borracha. Estes se referem à atração das cidades que foram se formando, tais como Benjamim Constant (no Brasil) e, especialmente, Letícia (na Colômbia) cuja moeda era o peso, mais valorizado que o cruzeiro de então. Somente quando foi possível aos Ticuna obter dinheiro nas trocas, é que puderam comprar coletivamente pequenos motores que lhes permitiram chegar até os regatões aportados no Solimões, ou à vila de Santa Rita e à cidade de São Paulo de Olivença, entre outros locais nos quais os índios ofereciam seus produtos por preços mais vantajosos.

Um dos fortes pontos de atração indígena foi a missão Batista (Association of Baptistis for World Evangelism) que em 1959 se instalou nas vilas de Santa Rita do Weil e Santo António do Içá com o objetivo de converter a população ribeirinha. Em Santa Rita foi construída, pela Missão, uma igreja e uma escola para o ensino religioso e alfabetização que logo contou com a presença crescente de famílias ticunas. Havia os que vinham de

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Vendedor com barco que percorre rios e igarapés, parando em cada vila, povoado e cidade.

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O seringal de Belém sempre produziu cachaça utilizada para venda no comércio regional e no aliciamento dos indígenas. Nimuendaju (1972) já apontava também a maior incidência de doenças e mortalidade infantil nesse local em relação às áreas mais afastadas como do igarapé Preto ou São Jerônimo.

longe, em canoas para assistir as aulas e conhecerem novos códigos da sociedade abrangente, animados que estavam pelo tratamento dos pastores chamando-os de “irmãos”. Macedo (1999) afirma que a escola representava a possibilidade de uma nova relação com os não-índios, apesar do lugar de autoridade ocupado pelos missionários:

No entanto não havia a troca e a exploração, impostas pelo dono de terras, do trabalho pela sobrevivência, a submissão ao trabalho. Os Ticuna atendiam ao chamado dos brancos para aprender, para conhecer o mundo, ou melhor, para aprender novas formas de relação e entendimento do mundo que poderiam fornecer-lhes mais segurança ou pelo menos alternativas à situação por eles vivida. (Macedo, 1999, p.180)

Oliveira Filho (1987) discorda de Macedo (1996) observando que, tanto em Campo Alegre como Betânia, a exploração continuava através da ação dos grandes comerciantes membros da elite regional que discriminava os Ticuna. Cardoso de Oliveira (1972), por sua vez, defendia que os índios eram bem vindos enquanto fornecedores de produtos agrícolas, artefatos e também como consumidores, mas não para participarem da vida da comunidade não-índia.

Em 1965 os missionários batistas compraram uma área em Santa Rita, antes pertencente a uma família de seringalistas, para nela criarem uma aldeia exclusiva para os Ticuna que também contava com uma escola construída pelos moradores. Campo Alegre cresceu rápido com a chegada de famílias vindas de seringais espalhados pelo Solimões e atraídas pela possibilidade de estudo, mas principalmente, porque lá não vigorava o mesmo regime de exploração instalado em todos os seringais, com a obrigação de troca de trabalho, farinha e peixe, por produtos industrializados no barracão do patrão. Para morar em Campo Alegre as famílias doavam um paneiro de farinha64 por ano ao proprietário da terra (antes da compra desta pelos missionários). A partir de então produziam para sua subsistência e para o pequeno comércio de Santa Rita do Weil onde podiam negociar seus produtos por dinheiro.

Esse tipo de aldeamento aos moldes de Campo Alegre diferia muito do modo de vida vigente entre as famílias indígenas espalhadas pelo Solimões e igarapés, que permaneciam em total dependência dos patrões. O crescimento de Campo Alegre coincidiu segundo

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Paneiro de farinha é uma unidade de medida usual na Amazônia, se constitui num cesto de trama aberta revestido de folhas de bananeira comportando aproximadamente trinta quilos de farinha de mandioca.

Macedo (1996) com a decadência econômica e de poder dos proprietários de terras no Alto Solimões. De modo semelhante deu-se a criação da aldeia Betânia no município de Santo Antônio do Içá pela mesma missão batista.

Macedo (1999) afirma em sua pesquisa que os motivos alegados pelos Ticuna ao se mudarem para Campo Alegre e Betânia era a “palavra de Deus” e a vida melhor que poderiam ter longe das bebedeiras, uma vez que nos demais locais a cachaça era utilizada largamente como moeda de troca pelos patrões seringalistas. A reorganização da vida dos Ticuna em Campo Alegre incluiu também o fim das festas e práticas tradicionais. Mesmo depois da partida dos missionários americanos que deixaram em seu lugar pessoas treinadas para os substituírem, os moradores de Campo Alegre não realizavam mais cerimônias de iniciação, de nomeação, como também diziam não haver mais casos de feitiçaria ou brigas motivadas pelo consumo de álcool.

2.3.3. Não só através da violência se exerce o poder: a tutela do SPI e o capitão