• Nenhum resultado encontrado

Os missionários e os primórdios da escolarização entre os Ticuna

3. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO

3.1. AS AÇÕES MISSIONÁRIAS NO ALTO SOLIMÕES

3.1.1. Os missionários e os primórdios da escolarização entre os Ticuna

É possível que o início da criação das escolas em áreas de povoação indígena tenha tido como ponto de partida o aumento do número de religiosos nessas regiões. Mas é provável também que tenha relação com os dados e idéias apresentadas no Congresso Eucarístico Internacional de 1934 que apontavam a existência de 572 mil índios no Brasil, dos quais

189 mil eram católicos, além de “Meio milhão de índios que nenhum serviço ainda presta à

humanidade, não pertencem ao Reino de Deus! Meio milhão de almas no caminho da

perdição ainda” (Estrella das Missões92

, 1934, citado por Argañaraz, 2004, p. 48).

Os missionários, desde o início de sua chegada, cuidaram da aproximação dos índios e sempre em ocasião de festas ou outras ocasiões batizavam seus filhos, sob proteção dos patrões ou comerciantes em cujos sítios se juntavam os índios. Mas verdadeira catequese principiou desde o ano de 1934, quando o Prefeito Apostólico destinou o missionário Frei Fidélis de Alviano para esta difícil tarefa. Desde então, o missionário procurou penetrar nos seus esconderijos, aprendeu seu idioma e hoje são os mesmos índios que vão em busca do Padre para batizar os filhos e abençoar os matrimônios. (Poliantéia93,1949, citado por Argañaraz, 2004, p.92)

Em Belém (do Solimões), local de grande concentração da população ticuna, Frei Fidelis de Alviano criou, em 1935, uma residência missionária em com o objetivo de desenvolver um grande centro de catequese para os índios, seguida da construção de um colégio anexo. Entretanto não havia quem freqüentasse esse colégio porque, segundo a revista católica Voce Seráfica de Assisi94 (1985, citada por Argañaraz, 2004, p.92) “os índios se sentiam

92

Periódico Católico Estrella das Missões, X 10-11, p. 76, 1934.

93

POLIANTEIA, Revista. 1949. Comemorativa das bodas de ouro sacerdotais do reverendo Frei Domingos de Gualdo Tadino, Capuchinho fundador da Missão do Alto Solimões. Spoleto. 2, VII, 1899- Manaus, 2, VII, p.50, 1949.

94

livres como os pássaros do céu, habitavam bastante longe e dispersos e os filhos

dificilmente se separavam da família”. Depois de um tempo o colégio foi demolido ficando

apenas a residência e a igreja.

Em 1940 os freis capuchinhos construíram uma escola em Benjamim Constant para a população não-indígena, cuja coordenação ficou a cargo da Congregação das Irmãs Franciscanas e, em 1946 eles criaram um orfanato e um Santuário em Amaturá. A catequese entre os índios era quase nula, tanto pelo esporádico contato com os religiosos, como pelo desconhecimento destes em relação à língua ticuna. Frei Alviano foi o primeiro capuchinho a estudar essa língua a partir dos estudos de Rivet e na prática adquirida em suas atividades, tendo publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico uma Gramática Ticuna e um dicionário, em 1949. Por ter aprendido a língua ticuna Frei Fidélis

de Alviano foi consagrado “vigário cooperador com especial encargo sobre os índios”,

tendo coletado material etnográfico posteriormente exposto nos Congressos eucarísticos de São Paulo e Rio de Janeiro nas décadas de 40 e 50.

Além da barreira lingüística os missionários mencionavam a dificuldade de acesso às áreas indígenas, explicitando que em 28 anos de exercício o 1º. Prefeito apostólico da região havia ido somente três vezes a Belém (do Solimões). Eles citavam ainda a presença de

nativos bravios das cabeceiras dos rios Jacurapá, Javari e Jundiatuba, o “nomadismo” dos

índios, além de tecerem avaliações sobre a índole dos ticunas muito ligados ao núcleo familiar. Reclamavam também da sujeição dos indígenas aos patrões como dificuldades encontradas para exercer a verdadeira catequese estável e progressiva, principalmente devido ao fato de que muitos seringalistas não permitiam a entrada dos freis.

A prioridade era dada à conversão de não-indígenas e à conservação da fé entre os católicos, sobrepondo-se à tarefa de expandir a fé entre os pagãos. Os freis consideravam que só quando a missão estivesse mais estruturada é que poderiam enviar missionários para

educar os “indiozinhos”, pois a catequese junto aos adultos era “pouco frutuosa”. É

significativo que apenas em 1971 tenha se fixado um missionário em Belém depois da introdução do Movimento da Santa Cruz naquele seringal.

Segundo Argañaraz (2004), como padrão da atuação missionária deve-se considerar também as alianças com militares e o silêncio por parte do SPI, destacando-se a

contribuição no processo de nacionalização da população através da alfabetização e formação para o trabalho. Em 1940 a missão do Alto Solimões tinha 9 escolas primárias com 465 alunos, sendo poucos os indígenas. Se a própria catequese era vista como geradora de parcos resultados, menor ainda eram os investimentos dos religiosos na escolarização dos índios, estes quando muito, estudavam por alguns períodos nas escolinhas criadas nas vilas e povoados, do mesmo modo que qualquer ribeirinho.

Os relatórios dos freis apontavam a necessidade de implantar escolas e nomear professores pelos povoados ao longo dos rios, citavam que a prefeitura apostólica abrira escolas nas três paróquias, mas que precisaria haver muitas outras criadas pelo Estado. Somente em 1949 os colégios de São Paulo de Olivença e Benjamim Constant foram reconhecidos pelo Estado, em decorrência da nomeação do Frei Pio como “inspetor escolar” com direito a abrir escolas e nomear professores. Os relatos dos capuchinhos exaltam o papel civilizador da atuação religiosa através da criação do sentimento cívico e da educação marcada pelo pertencimento à comunidade católica e nacional.

A catequese de Fr. Fidélis entre os Ticuna dos igarapés de Belém prestou e está prestando ótimos serviços em benefício da civilização. As suas instruções religiosas em língua ticuna puderam extirpar muitos abusos entre eles, como roubo, vinganças, destruições e incêndios de barracas, de roças maduras, suicídios, homicídios, abusos, etc, infelizmente comuns entre os índios. (Revista Poliantéia95, 1949 citado por Argañaraz, 2004, p.152)

Para Frei Fidélis de Alviano, saber a língua foi mais um instrumento facilitador na administração dos sacramentos, além de lhe dar maior prestígio. Segundo Alviano, ao mesmo tempo em que o pastor ilumina o rebanho com seu saber, se ilumina pelo saber que tem sobre os índios (Argañaraz, 2004). O frei apontava a bondade natural e primitiva dos Ticuna que deveria ser refinada pela ação missionária para se transformar em bondade

iluminada, domesticada, cristã, porque: “para um civilizado a festa da moça nova é motivo

de estudo mas é, ao mesmo tempo, do ponto de vista da moral cristã, um espetáculo bem

revoltante” (Alviano, 1943, p.18)

Destaca-se, contudo, o fato da ação do Frei Fidélis de Alviano não ter sido organizada em uma proposta educativa, ou seja, sua preocupação em transformar os primitivos e bons

95

POLIANTEIA, Revista. 1949. Comemorativa das bodas de ouro sacerdotais do reverendo Frei Domingos de Gualdo Tadino, Capuchinho fundador da Missão do Alto Solimões. Spoleto. 2, VII, 1899- Manaus, 2, VII, p.51, 1949.

Ticuna em domesticados cristãos se fazia através do trabalho missionário. Frei Fidélis não desenvolveu escolas, formou professores indígenas ou produziu materiais que se destinassem à escolarização dos índios. Em parte esse trabalho foi desenvolvido posteriormente por outra congregação: a Missão Batista.