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2. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO POLÍTICO E

2.3. O TRABALHO DO SPI

2.4.3. A luta pela demarcação da terra ticuna

As reações ao recrudescimento do poder dos patrões foram esporádicas, mas muito significativas, porque marcaram a ascensão de novas lideranças que tiveram papel decisivo na luta pela terra. O depoimento72 de um deles, Pedro Inácio Pinheiro (Ngematücü) datado de 1984, esclarece sobre a vida no seringal, a ação da Ordem da Cruz, mas principalmente, como foi possível aos Ticuna se organizarem na luta pela demarcação de seu território:

Então, naquele tempo mesmo eu não conhecia esta palavra do Governo, agora no meio dela é a vida – não é mesmo? 73-, porque naquele tempo eu não era nada, só um morador eu era, [...]. Então naquele tempo de repente ele, aquele homem, - o nome dele, [...] – nesta boca do Igarapé Preto – o nome dele é Quirino Mafra, [...] – ele dizia que era dono desta terra, que era dono do igarapé Preto, dono da terra, [...]. E dono da propriedade era aquele filho dele, Benedito Mafra, [...]. Naquele tempo, lá mesmo, de repente mesmo ele aceitou então aquela cruz e ele plantou a religião daquela Santa Cruz, [...]. Naquele tempo, aquele me pediu para ficar como guarda, ele me pediu para ficar [...]. Muitas vezes mesmo, naquele tempo, ele deixou ordem, não era bom deixar entrar na igreja vestido curto, homem de cabelo comprido, brinco na orelha, grampo no cabelo e, lá, muitas vezes, usar coisas como boca pintada e unha pintada ele proibiu [...]. Naquele tempo mesmo, lá eu estava como guarda e, naquele tempo, ele mandou proibir tudo. Então, naquele tempo tinha muitos civilizados parentes dele, aqueles civilizados [...]. E, naquele tempo, eu era guarda e de repente, um dia, do outro lado do rio vieram civilizados. Então naquele tempo, para eles eu proibi tudo. E, naquele tempo, para mim ele perguntou e comigo ele brigou, o diretor [...]. E naquele tempo a mim ele proibiu e assim falou: „Por que você fez mais?‟ – assim ele falou. Comigo ele brigou [...]. Naquele tempo mesmo, assim eu disse, eu como é que é? Será que só nós ele proíbe de usar vestido curto, porque nós somos Ticunas e não valemos

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Porantim. ano II, no. 13, Manaus, nov 1979.

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PINHEIRO, Pedro Inácio (Ngematücü). Tchorü duǖ’ǖgüca tchanũ / Minha luta pelo meu povo. Transcrição de Reinaldo Otaviano do Carmo (Mepawecü), tradução de Marília Facó Soares. Rio de Janeiro, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1984.

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Sendo um depoimento gravado e transcrito muitas destas marcas da oralidade permeiam o texto, para facilitar a fluência da leitura serão substituídas doravante pelas reticências entre colchetes como sinal de sua supressão. A mudança de parágrafo indica supressão de frases.

nada? Será que só entre vocês é bom vocês entrem de vestido curto, de brinco na orelha, de boca pintada? – assim eu falei, dentro do tempo daquele tempo [...] Por causa disso naquele tempo a mim ele expulsou e só uma pessoa eu passei a ser. Então, naquele tempo mesmo, um capitão eu ainda não era, naquele tempo eu era só um morador [...]. Eu não tinha conhecimento porque naquele tempo não tinha Funai [...] De repente a notícia dele estava lá, do governo que briga por nós o governo dos índios mesmo, o governo dos índios existia [...] Naquele tempo, um dia a ele eu procurei, e então ele me encontrou. E naquele tempo mesmo só na terra de Umariaçu ele existia há muito tempo ele existia, a pessoa chama de governo, [...] Naquele tempo, para o governo eu contei tudo [...] Naquele tempo aquele governo levou o documento. [...]

E assim ele (o patrão) falou: „como é que aquilo você fez? Primeiro mesmo aqui comigo você criou74, as coisas você soube, aqui você criou e por que aquilo você fez?‟ – assim ele falou para mim, então ele. Naquele tempo eu mesmo assim falei: sim, porque neste tempo mesmo não existe patrão de Ticuna e, por isso, nenhum de nós, um Ticuna morador daqui, agora farinha para você vai dar, banana, abacaxi e coisas para você vai dar, porque Ticuna mesmo aqui só vende onde ele quer, na compra eles não vão – assim eu falei naquele tempo. Naquele tempo, muitas vezes ele brigou e dentro da delegacia para mim a palavra dele mesmo assim ele falou: „então você vai ser preso, porque agora eles eu chamo, os governadores dos homens, coronéis e todos os soldados eu vou chamar, para pegar todos os Ticuna, e você mesmo é cabeça deles, você é mentiroso‟ [...] então, naquele tempo eu mesmo, como agora, não tive medo e naquele tempo assim eu falei: „está bom, eles você chama e eu fico esperando, eu, e vamos ver qual mesmo de nós é aquele que vai perder essa questão, se você, se eu‟ [...]

Assim um homem, assim ele falou: „agora em você ele vai dar tiro, agora você vai morrer, agora com você ele vai fazer coisa‟. Eu mesmo lá eu fui, porque por mulher eu não morro, por roubar mulher do outro eu não morro, por roubar filho do outro eu não morro. Eu morro por ele, este meu povo, por quantos que como eu muitas vezes sofrem e muitas vezes tudo para eles falta, não existe dinheiro e, como para mim, não existe conhecimento para eles. Por isso eu morro, por ela, esta terra, todas as coisas que acontecerem, por elas eu morro, por isso, quando for assim. Naquele tempo, então de repente ele chegou demorado, esse ficou pronto, esse posto da Funai. [...] Naquele tempo, é bem verdade, eu não sabia o que era reunião como agora, como era juntar elas, aquelas pessoas e a força delas para o governo dar a terra [...].

Por isso, de repente para mim chegou então uma palavra, mandada do rio grande na terra de baixo [...] uma carta assim contando uma coisa boa. Exista lá longe outra cidade, muito longe, na cidade, na reunião eu fui, o nome daquela era São Paulo do Sul75. Então naquele tempo lá o que era eu aprendi, como é que eles procuram aqueles outros, nossos irmãos índios de outras nações. Naquele tempo, para mim eles contaram como era aquilo de procurar por ela, para nós ela existe, a terra. [...] De lá eu vim e já sabia como é que era a notícia deles, como eles fazem todas as coisas lá. Aqui na terra de novo eu cheguei. Eu fiz uma reunião, eu aqui na terra. A eles eu chamei,

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No início deste depoimento Pedro Inácio revela que entre os 12 e 23 anos trabalhou para a família Mafra que explorava os seringais do Igarapé Preto, em São Paulo de Olivença, onde ele nasceu.

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todos os capitães [...] E notícia para eles eu contei, de como para nós existia nosso direito [...].

E então, naquele tempo, chegaram na reunião muitas pessoas, e capitães chegaram, lá estavam. Naquele tempo para eles lá eu levei aquele, nós fizemos aquele mapa, eu fiz aquele, onde é que era e como é que ia ser, aquele documento dela, o documento da terra [...]. Aqueles, naquele tempo, eles foram, um outro dia, com ele, aquele resultado daquela reunião. Naquele tempo76, em Brasília nós fomos, em Brasília com o presidente, e para ele por ela pedimos, para aquele presidente, a existência da terra para eles, os Ticuna, a demarcação dela, aquela terra [...].

Ela chegou, aquela comissão, aqui na terra. E outra vez eles me levaram, e até terra dos Ticuna, até o Içá, e até dentro do Jacurapá eles entraram e a todas as aldeias fizeram visita e perguntaram como, para os Ticuna, existia a terra. Naquele tempo, eles pegaram o documento aquele mapa, para ver como é que era. [...]

E de novo em Brasília era a reunião [...], lá muito mais para mim existiu [...] – o entendimento. E por isso existe meu entendimento dele, de como muitas vezes é uma luta [...] por ela, a nossa terra. E por isso desde antigamente mesmo a nós muito eles estão devendo, os brancos. [...]

Então eu mesmo nunca vou ter fim [...] só quando tiver a minha morte. Então por ele eu não vou morrer, por ele o roubo; por ele não vou morrer, pelo roubo do filho de outro; por fugir com mulher de outro, por isso eu não vou morrer; por ir na festa eu não vou morrer. Por isto eu vou morrer, meus irmãos, pela melhora de todas as pessoas, pelo amor de uns pelos outros e pela crença naquela palavra do governo, [...] (Pinheiro, 1984, p.14 a 48)

A luta dos capitães e de todo povo Ticuna foi longa e muito árdua, apesar desse fato inconteste, pode-se considerar que a expansão dos Postos Indígenas na região do Alto Solimões ocorreu de modo lento, mas colaborou de algum modo, para a posterior demarcação das áreas indígenas. A Funai em 1975 criou um posto indígena em Vendaval, sede do barracão pertencente ao maior seringalista da região, a família Mafra; entre 1976 e 1981 construiu postos em: Feijoal, Campo Alegre, Nova Itália, Betânia, Belém do Solimões. A partir desses postos foi se disseminando a idéia do direito dos Ticuna sobre suas terras e o fruto de seu trabalho, direitos estes fixados pelo Estatuto do Índio (Lei no.

6.001 de 19/12/1973). Esses postos tiveram um peso decisivo para “evitar que a frente pioneira que ora ameaça os grupos indígenas do Javari, se voltasse para a área Ticuna”

(Oliveira Filho et alli, 1982, p.14). Essas frentes incrementavam a invasão por não-índios e a especulação das terras indígenas disponibilizando-as para exploração econômica, mobilizavam créditos bancários, a presença de grandes empresas madeireiras e de programas de desenvolvimento regional promovidos por diversos órgãos

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governamentais77. Evidentemente tais atividades se davam em total desrespeito à ocupação e uso imemorial pelos grupos indígenas.

Conforme Oliveira Filho (1987), a avaliação positiva dos resultados do Projeto Vendaval, adaptação restrita do Projeto Tukuna (1975) que não chegou a ser implementado, não podia ocultar a enorme demanda dos índios Ticuna pela delimitação de terras próprias e livres de invasão, ou seja, um território Ticuna.

O regime ditatorial em vigor no Brasil e as divergências teóricas sobre direitos dos povos indígenas e necessidade de proteção, mas não da tutela exercida pela Funai, orientavam para soluções de conciliação. Mesmo assim, eram reafirmadas como sendo as reais necessidades dos Ticuna: a demarcação do território, a retirada dos ocupantes não- indígenas e a aplicação de programas de saúde e educação bilíngue.

Entretanto, em relatório encaminhado à Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 1981, Oliveira Filho e Paoliello, referem-se ao fato de que a Funai tinha planos para demarcação de apenas duas pequenas áreas de ocupação Ticuna, sendo que as regiões tradicionais e com maior população sequer haviam sido estudadas. A demora na definição da posse das terras no Solimões acarretava a retomada das invasões para extração de madeira, caça, peles e peixes, além da instalação de serrarias tal como ocorria no vale do Javari. A invasão de grandes barcos frigoríficos de ex- seringalistas locais, e vindos até de Manaus, levavam ao extermínio de peixes e o consequente desabastecimento dos índios que os utilizavam para a alimentação e venda. Vários relatórios e memorandos do chefe do Posto de Vendaval (André Villas Boas) denunciavam à Sudepe a necessidade de interditar a pesca aos não-índios, evitando os arrombamentos de lagos dentro de terras indígenas e a morte de milhares de peixes78.

O avanço dessas frentes de exploração em áreas não ribeirinhas era também efetuado por ex-seringalistas que se ocupavam da plantação de epadu (coca brasileira) e criação de gado, sempre em áreas indígenas. Nelas instalavam empregados e suas famílias descaracterizando a área como de ocupação indígena; além disso, implantavam

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Cianorte, Maderex, Sudhevea, Sudepe, Emater, Petrobras, CPRM, entre outros.

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A Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) tentou fazer os Ticuna se associarem aos não-indígenas permitindo assim aos cooperados terem livre acesso aos lagos.

benfeitorias utilizando financiamento bancário, o que implicava em maior dificuldade de remoção desses invasores.

A retirada de madeira e peixes, contrariamente à borracha, não exigia delimitação de terras privadas a serem exploradas, por essa razão as áreas ocupadas pelos indígenas passaram a ser consideradas de livre trânsito pelos empresários. Conforme aponta Pinheiro (1984) foram todas essas arbitrariedades, invasões e descasos que impulsionaram as lideranças e demais Ticuna se mobilizarem para uma série de reuniões, sendo a primeira realizada em dezembro de 1980 cobrando a demarcação das suas terras. No encontro de julho de 1981 os Ticuna elaboraram um mapa definindo o território e a ocupação indígena, como uma etapa do processo de demarcação. Essa mobilização ocorreu apesar das ameaças do chefe da Ajudância do Solimões – Ajusol (instância da Funai em Atalaia do Norte) de que prenderia e expulsaria os capitães de Umariaçu, Nova Itália, Feijoal se participassem do encontro, vedando-lhes o uso do barco da comunidade. O relatório enviado à ABA79 aponta que, em oposição à boa acolhida da proposta de demarcação do território Ticuna pelo presidente da Funai em Brasília, a chefia da Ajusol defendia os invasores e não os povos indígenas que exigiam a defesa de suas terras.

As reuniões das lideranças e a necessidade de criar uma comissão que representasse os interesses de todo o povo ticuna junto às autoridades públicas, originou a criação em 1982 do Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT), encabeçado por Pedro Inácio Pinheiro, que não correspondia às tradições culturais dos Ticuna marcada pela ausência de chefia política, mas necessário no contexto das lutas de então.

Os processos caminharam muito lentamente até que em 1985 quatro pequenas áreas tiveram suas propostas de delimitação aprovadas no âmbito do órgão indigenista, tendo em vista as novas políticas de defesa das regiões de fronteira implantadas pelo regime militar, o que interrompera a aprovação de territórios contínuos dentro da faixa considerada de segurança nacional. Essa situação de suspensão apresentava-se como o espaço possível para indígenas e não-indígenas afirmarem sua posse sobre as terras e delas tirarem diversos recursos naturais. Os Ticuna defendiam a ocupação ancestral denunciando e expulsando os

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predadores, como ocorreu na comunidade Ourique onde os índios apreenderam 250 toras de madeira que a patrulha da Polícia Militar pretendia devolver aos madeireiros.

O aguçamento desses conflitos no alto Solimões determinou a primeira visita de um presidente da Funai à região, em fevereiro de 1985, para participar de uma grande reunião, ao fim da qual, prometeu empenho na aprovação das áreas reivindicadas pelos Ticuna. O que chama atenção no relatório apresentado à ABA em 1985 foram os acontecimentos ocorridos após a bem sucedida reunião, e que revelaram o clima de tensão e o grau de hostilidade que reinava contra os índios na região80.

Os inúmeros eventos semelhantes envolvendo as relações entre os Ticuna, os regionais e o Estado, fornecem pistas para entender os conflitos e as oscilações do órgão indigenista, ora agindo em favor dos índios, ora contra, e muitas vezes sendo omisso, corrupto e incompetente. No contexto do Alto Solimões, especificamente, as ações de pretensa defesa decorrentes da tutela indígena pela Funai, configuravam-se como controle e domínio. Como tutelados estavam submetidos ao órgão indigenista e, portanto, enfraquecidos em sua identidade étnica que implicava em direitos a serem respeitados. Por outro lado, os Ticuna sofriam a pressão, não só dos grandes proprietários e exploradores, mas da população ribeirinha que vivia numa condição muito próxima à sua em termos econômicos. Antes tratados depreciativamente como caboclos, passaram a ser

discriminados também pela assunção da identidade étnica e criticados por terem “mais direitos” do que os regionais.

Os processos de identificação e demarcação das terras ticunas demandaram muitas reuniões e idas a Manaus e Brasília, esbarrando em todo tipo de entrave burocrático81 e do aparato ditatorial exercido em nome da segurança nacional. Foram processos demorados e

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O barco que transportava os indígenas pelo rio abaixo aportou em Benjamim Constant para pernoitar e alguns deles foram reconhecidos por policiais como os que impediram a retirada da madeira em Ourique, seguiu-se um confronto com índios e Policiais Militares. A tentativa de levar os indígenas feridos ao hospital foi barrada por não-índios que dispararam contra o grupo, apesar da presença de funcionários da Funai e dos familiares que os acompanhavam. Houve prisão de índios, fugas e manifestações ostensivas de civis armados e policiais o que exigiu a ida, ainda na madrugada, de embarcação da Capitania dos Portos de Tabatinga guarnecida pela Polícia Federal para retirada dos indígenas presos, feridos e escondidos na embarcação indígena depredada. O caso foi relatado ao presidente da Funai que ainda se encontrava em Tabatinga, sendo solicitada proteção aos feridos hostilizados por populares e PMs no hospital daquela cidade, e também, que a Polícia Federal abrisse um inquérito, uma vez que as autoridades civis e policiais locais não tinham isenção suficiente, acusando os Ticuna de bêbados, aculturados e portanto sem direitos como indígenas.

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Em 1982 o presidente da Funai entregou a cinco líderes Ticuna os “documentos” de suas terras, na verdade portarias sem números e datas e, portanto sem eficácia legal.

tiveram como resultado um território pequeno e fracionado, uma vitória no marco da política militarista da época, mas um problema diante do tamanho da população ticuna. O poder decisório do Conselho de Segurança Nacional se sobrepunha ao órgão indigenista na

definição de “áreas” e “colônias” estabelecidas de acordo com o “grau de aculturação”.

Segundo Oliveira Filho (CDPAS, 1988, p.8) essa era uma “forma disfarçada de reduzir as pretensões a terras que dessem suporte à identificação étnica, atomizando o

reconhecimento da terra indígena ao nível da aldeia”. Áreas já estudadas e delimitadas

foram alvo do Projeto Calha Norte e tiveram seus processos de demarcação paralisados, outras foram delimitadas erroneamente, deixando de fora aldeias inteiras e destinando essas terras a colonos assentados pelo Incra82. Essa conduta, decorrente do “limite tênue entre a incompetência e a má-fé no campo técnico da cartografia e da topografia” (CDPAS, 1988, p.9), complicou ainda mais as relações entre índios e regionais que implantaram suas roças nessas terras em litígio.83

Os conflitos persistiram com roubos, espancamentos, ameaças, invasões, contestação da identidade étnica, com a participação de civis e militares, empregados e representantes das famílias Mafra e Castelo Branco e dos pretensos defensores do órgão indigenista; mas também com a reação dos indígenas expulsando moradores e apreendendo malhadeiras84 e madeira extraidas das áreas indígenas. O ápice se deu em 1988 quando Oscar Castelo Branco tirou 200 toras de madeira da área de São Leopoldo, chegando a vender 47 delas sem impedimento da Funai ou da Polícia Federal. O posterior desaparecimento de um boi dessa comunidade levou suas lideranças a procurarem a Funai e Polícia Militar em Benjamim Constant, enquanto os demais os aguardavam próximo à beira do rio. Nesse espaço de tempo, 14 homens armados a mando de Oscar Castelo Branco aportaram, dispararam sobre os índios que vieram desarmados ao seu encontro. Enquanto proferiam

ameaças de “matar todos os Ticuna” e disparavam suas armas, alguns indígenas tentavam

fugir para o igarapé e para o rio, sendo 23 deles atingidos por múltiplos tiros de espingardas; ao final foram 14 mortos entre adultos e crianças e diversos desaparecidos.

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Uma das propostas do Incra aos Ticuna era a concessão de títulos individuais provisórios da terra tratando-os como assentados.

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Os indígenas das comunidades atingidas reuniram-se num grande ajuri e eles próprios capinaram toda a extensão da linha divisória real para evitar a ocupação até que se corrigisse a demarcação.

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O chamado “Massacre do Capacete” (nome dado ao igarapé local) repercutiu na opinião

pública do Brasil e no exterior, sendo as apurações cobradas pelo Cimi, OAB, UNI, comissões de deputados e organismos internacionais, conforme publicação do Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões - CDPAS85, de 1988 “Rü aü i Ticunagü arü wu’i – A lágrima Ticuna é uma só”. Para este estudo é relevante destacar a negação dos fatos e o desdobramento dos conflitos, (CDPAS Magüta, 1988, p.78):

Acontece que Oscar Castelo Branco possuía um empregado índio chamado Flores, pertencente àquela nação, já aculturado, e os outros índios decidiram ir buscá-lo para que retornasse à tribo. Porém quando os índios se aproximaram do terreno, os empregados de Castelo Branco ficaram temerosos e dispararam contra os índios, acertando mais de cinco e ferindo outros.

Valmir de Barros Torres administrador da Funai de Tabatinga86, Jornal a Notícia,