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Questões de ordem legal, institucional e das políticas públicas

3. A OCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS DO ALTO SOLIMÕES: O CONTEXTO

3.5. AS AÇÕES EDUCATIVAS DA SOCIEDADE CIVIL

3.6.1. Questões de ordem legal, institucional e das políticas públicas

A relevância de alguns grupos organizados da sociedade civil na formulação das políticas de educação escolar indígena vem sendo motivo de cantada conquista no Brasil das últimas décadas. Diferentes atores políticos envolvidos com a implementação da nova escola indígena - organizações não governamentais, movimentos indígenas e órgãos de Estado -, de diversas posições e perspectivas políticas, pronunciam discursos similares sobre a educação requerida. É como se as

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Uma experiência de trabalho conjunto FIDA/PRAIA e OGPTB: a atuação da OGPTB e as políticas públicas de

educação escolar indígena, relatório final apresentado em dezembro de 2006 por Jussara Gomes Gruber e Sirlene

Bendazzoli àquela instituição que financiou durante 12 anos o Projeto Educação Ticuna.

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Ao longo de mais de 20 anos, a OGPTB tem sido uma referência para os professores ticunas e, na última década, também para os professores Kokama, Cambeba e Kaixana que habitam a região. Sua importância está relacionada ao desenvolvimento de projetos de educação, a titulação de professores no nível médio e a oferta de cursos de especialização em educação indígena, iniciativas que vêm suprindo a falta de ações públicas de formação específica por parte dos órgãos governamentais em todos os níveis. Em seus cursos de magistério indígena e preparação para a docência no ensino médio foram atendidos 481 professores indígenas e, desde 2006, atende 250 professores no curso de licenciatura intercultural.

vozes das sociedades indígenas, há séculos silenciadas pelas políticas educacionais, finalmente pudessem formular e explicitar seu projeto de escola, fazê-lo ecoar e reproduzir, ainda que sob intenso debate e conflito, em forma de novas propostas de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado brasileiro. (Monte, 2000, p.8)

A importância de retomar os principais temas de discussão dos Encontros Nacionais de Professores Indígenas organizados inicialmente pelo Cimi e depois pela própria Comissão de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima (Copiar) revela-se ao tornar possível detectar não só a força do movimento indígena de então, como a clareza e atualidade das propostas. É possível dizer, até mesmo, da radicalidade inovadora do que era proposto, da força e determinação por uma escola verdadeiramente indígena e autônoma que se expressam nos documentos finais desses encontros. No decorrer dos anos algumas propostas se consolidaram, mas muitas delas, em certa medida, foram sendo abrandadas ou enquadradas pelas políticas, programas e práticas dos sistemas de ensino tão resistentes às demandas da educação escolar indígena; até por isso são continuamente retomadas como bandeiras de luta para se atingir uma educação escolar indígena diferenciada de qualidade.

No ano de 1981, em Assembléia realizada no Alto Purus/AM, índios dos povos Jarawara, Apurina, Makuxi, Kulina, entre outros, reclamavam da falta de escolas para suas crianças.

Pleiteavam uma escola não como a que “funciona para os brancos, mas sim uma escola que

faça com que o índio queira continuar a ser índio e não ficar desejando abandonar a aldeia;

essa escola deve ter professores indígenas e ficar dentro da malocas”139

Conforme Dias da Silva (1997b) tratava-se, na época, de resignificar instrumentos como a escola, de dar corpo ao conceito de professor e escola indígena que estava sendo construído. Observava que existiam povos indígenas, como os do Rio Negro que tinham baixíssimo índice de analfabetismo por força de uma intensa ação da igreja e influência militar, ambas com objetivos integracionistas. Dias da Silva (1997b criticava dizendo que os professores desejavam era uma escola desvinculada do sistema dos não-índios140.

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Jornal Porantim n. 26 p. 6, citado por Dias da Silva, Rosa Helena. Escola indígena um caso particular de escola? In:

D‟Angelis, Wilmar e Veiga, Juracilda (orgs). Leitura e escrita em escolas indígenas. ALB e Mercado das Letras,

Campinas, P. 172, 1997b.

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Na Declaração de Princípios firmada pelos professores no IV Encontro da COPIAR em Manaus em 1991 constava no item 15 que: “O Sistema de ensino das escolas indígenas deverá ser o federal”, justificando que os municípios e estados concentravam maior resistência às proposições da educação escolar indígena.

A partir de 1982, os professores ticunas também passaram a se reunir regularmente, discutindo a situação precária dos professores e das escolas. Através da articulação entre as comunidades do Alto Solimões, 64 professores e 44 capitães reuniram-se na Aldeia Paraná Ribeiro141 para tratar do problema gerado pela contratação de apenas 75 dos 108 professores indígenas que lecionavam nas escolas das aldeias, pela precariedade das construções escolares, a falta e atraso nos pagamentos e na entrega da merenda. Na mesma reunião fundaram a Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües (OGPTB), para melhorar a qualidade da educação nas escolas ticunas, valorizar o saber, arte e cultura do povo Ticuna, promover cursos e produzir materiais específicos com a participação dos professores indígenas. (PIB, 1991, p.257)

Nesse contexto, marcado pela redemocratização e força dos movimentos sociais, os professores ticunas encaminharam, em 1988, ao Regional Norte 1 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), através de seus assessores Nadir e Arlindo Leite (Cimi/Opan), um pedido formal para a realização de um Encontro Nacional de Professores Indígenas. Segundo Dias da Silva (1997a) os Ticuna deram início e inspiraram a organização dos professores no resto do país, de modo que existem marcas no movimento de professores indígenas do Amazonas Roraima e Acre que permitem observar “a forte influência das

reflexões dos professores tikunas”. (Dias da Silva, 1997a p.39)

A firmeza dos professores Ticuna com relação a pontos básicos da educação escolar em sua área – importância da língua materna, do bilingüismo, de material didático próprio, de professores índios exercendo o magistério, da capacitação dos professores, de as decisões quanto às suas escolas serem tomadas por eles mesmos – foi um grande estimulo e desafio para os professores indígenas de outros povos consolidarem suas experiências e avançarem na formulação de uma concepção de escola coerente com suas especificidades étnicas. (Leite, 1994, p.240)

Essas determinações transparecem nas propostas e documentos dos encontros e poderiam ser sintetizadas nos seguintes tópicos: a) necessidade de formar professores indígenas para substituir os não-índios; b) ensino da língua indígena na escola; c) currículo e materiais didáticos próprios produzidos pelos professores e comunidades indígenas e que expressem o forte vínculo com o território tradicional. Uma das razões pelo fortalecimento da criação de cursos com terminalidade, que assegurasse aos indígenas o direito de pleitearem as vagas nas suas escolas, decorria da pressão das secretarias ao não contratarem os

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indígenas, alegando que estes não possuíam diploma, apesar do grande número de professores leigos não-índios existentes no Alto Solimões.

Esse primeiro encontro em 1988, contou com 41 professores do Amazonas e Roraima representantes dos povos Ticuna, Kokama, Wapixana Sateré Mawé, Marubo, Baniwa, Tukano, Munduruku, Makuxi, Cambeba, Pira-Tapuia, Mayoruna. Entre as decisões aprovadas constava a discussão de um projeto de escola autônoma, específica e diferenciada, adequada às necessidades socioculturais de cada povo, nas quais os indígenas fossem protagonistas e autores dos processos tendo por base suas experiências. Propunham também a organização e capacitação dos professores (proposta dos Ticuna e Macuxi), para conseguir uma escola bilíngüe voltada para a cultura de cada povo, fundada na tradição e autonomia, na defesa dos direitos indígenas, uso de metodologia própria e avaliada pela comunidade. Esses princípios tornaram-se a bandeira de luta do movimento indígena organizado desde então. No primeiro encontro o grupo de professores ticunas defendia:

Se aprende a viver desde a infância com os pais e com a comunidade. As mães ensinam as meninas a fazer artesanato. Os pais ensinam os meninos a caçar, pescar, andar de canoa e tudo mais. Se aprende a conhecer e respeitar a natureza, preservar os lagos, o meio ambiente. (citado por Ferreira, 2001, p.107)

Em 1989, durante o segundo encontro de professores, foi proposta a criação da Comissão de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima (Copiar), contando com 24 representantes regionais. As discussões ampliaram-se para temas como currículo, não fracionamento das disciplinas e os saberes indígenas e não-indígenas. Iniciaram-se também os debates sobre gestão das escolas, reafirmando a necessidade de respeitar as diferenças étnico-culturais. Ao final da reunião os professores firmaram um documento contendo as reivindicações básicas dos professores indígenas relativas à EEI a serem incluídas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que estava em tramitação142.

No III Encontro de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima, em 1990, a crítica recaia sobre os conteúdos e currículos impostos pelas secretarias estaduais e municipais de

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A discussão e elaboração de propostas de educação escolar para os povos indígenas a serem encaminhadas à Assembléia Nacional Constituinte e, posteriormente para o Projeto de Lei na nova LDB, reuniu diversas organizações indígenas, entre elas a União das Nações Indígenas (UNI), ONGs como CTI, Cedi, Anaí, Opan, CPI, professores e assessores de universidades, além de associações de professores indígenas que cresciam em número e importância, marcando um período de intensa mobilização da sociedade civil na elaboração de políticas que contemplassem as concepções e direitos dos povos indígenas.

educação que ainda desconsideravam os conhecimentos e modos de ensinar próprios aos indígenas. Em 1991 os professores focaram a luta pela autonomia administrativa e pedagógica; em 1992 eles questionavam que a escola que não deveria ser uma adaptação da escola dos não-índios, nem uma conciliação da educação tradicional e nova, mas sim, a criação de uma nova instância. Os professores apontavam ainda o risco de depositar na escola todo o foco da aprendizagem das crianças e jovens, deixando de valorizar outros espaços e pessoas como provedores de aprendizagens. Por outro lado, na busca pela construção do que seria a interculturalidade numa escola diferenciada, alguns deles propunham o ensino de medicina tradicional na escola.

No encontro de 1994, contando com 224 representantes de professores indígenas incluindo os do Acre os professores indígenas expressaram a dificuldade da participação indígena no Comitê de Educação Escolar Indígena criado pelo MEC, devido à falta de recursos para visitas às bases, a existência de um único representante para toda a região norte e a participação limitada no Comitê pelo seu caráter consultivo. Esse encontro marcou o lançamento da Declaração de Princípios dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre cuja discussão havia se iniciado em 1991.

Segundo Silva e Azevedo (1995), o Movimento dos Professores do Amazonas, Roraima e Acre a cada ano se tornava mais forte e expressivo. As reuniões da Copiar, mais numerosas e ricas em discussões e propostas, apresentavam-se como uma vanguarda que irradiava suas experiências e reflexões a outros povos indígenas, favorecendo o debate sobre a EEI e impulsionando a criação de associações de professores. Os autores esclarecem que os professores ticunas, os primeiros a se organizarem, inspiravam os demais na luta de tomarem em suas mãos o destino de suas escolas.