• Nenhum resultado encontrado

Neste item, buscarei elementos para analisar a trama religiosa, cultural e social que se oculta por trás da unidade literária de Provérbios 1-9. Já que o próprio texto, em seu gênero poético altamente elaborado, não deixa transparecer informações sobre sua época e seu contexto, será necessário confrontá-lo com outros textos bíblicos e criar um debate entre diferentes autores e autoras para situar o momento histórico da sua elaboração. Este trabalho torna-se necessário, porque em Pr 1; 8 e 9 apresenta-se o símbolo da sabedoria mulher, com vários aspectos que revelam e, ao mesmo tempo ocultam, sentidos importantes para uma interpretação deste texto.

Segundo Sharon Ringue, “os símbolos evocam significados e referências às amplas tradições de uma cultura, comunidade histórica ou um corpo religioso particular”85.

85Sharon H. Ringe, Jesús, la liberación y el jubileo bíblico – Imagines para la ética y la cristología, San José: Editorial DEI, 1997, p.28.

Continuando sua reflexão sobre a importância da linguagem simbólica, Sharon Ringue se detém nas “imagens”, afirmando que elas expressam e, por conseguinte, criam o universo no qual se desenvolve a ação. As imagens estão enraizadas em um contexto social, cultural e político particular. Elas não são neutras, acrescenta a autora, mas “interessadas” e representam uma estrutura de valores e significados que incidem na vida, ao mesmo tempo em que dela brotam. Em outras palavras, esta é também a opinião de Paul Ricoeur, para quem “a interpretação encontra sua função aplicando-se à intenção constitutiva da experiência que se comunicou através da metáfora”86.

Convencida por estes e outros autores sobre a importância e a força da linguagem simbólica, buscarei encontrar a época em que foram elaborados os poemas sobre a sabedoria mulher que se encontram no livro dos Provérbios. Através de um confronto entre as opiniões de vários autores e autoras que já escreveram sobre este tema, tentarei descobrir as experiências que o símbolo da sabedoria mulher evoca e as funções que desempenha no seu tempo.

Durante muitos séculos, os estudiosos afirmavam que havia material pré-exílico em Provérbios 1-9. Gerhard von Rad nos informa que “até a metade do século XIX, ainda se afirmava a autenticidade salomônica do Livro dos Provérbios”87. No século XX, com a ajuda do método histórico crítico e da história das formas, conseguiu-se verificar que não havia uma unidade literária no livro dos Provérbios, mas várias unidades escritas em épocas e lugares diferentes. No entanto, há ainda muita divergência sobre a datação das diferentes unidades que formam o livro dos Provérbios. R. Derek Kidner afirma que “até meados do século88, aceitava-se que Provérbios continha alguma matéria pré-exílica, porém a madura concepção da Sabedoria nos Capítulos 1-9 parecia dever demais ao pensamento persa ou grego para poder ter assumido o seu formato antes do século quinto até o terceiro século a.C.”89.

86Paul Ricoeur, Tiempo y narración – Configuración del tiempo en el relato histórico, Madri: Cristiandad, 1987, p.26.

87Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial, p.21.

88 O autor, certamente, refere-se ao século XX, pois a primeira edição desta obra foi em 1964, em Londres. 89 R. Derek Kidner, Provérbios introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1980, p.25.

Derek Kidner faz um comentário sobre a afirmação de que uma característica que possibilitaria a datação de uma unidade na literatura sapiencial, seria a sua forma maxal que, quanto mais curta fosse uma unidade literária, mais antiga deveria ser. Esta característica ajudou a perceber que os capítulos 10ss do livro dos Provérbios eram anteriores aos cap.1-9. No entanto, em seus estudos, Derek Kidner mostra certa perplexidade, afirmando que os estudos sobre a literatura egípcia, babilônica e, sobretudo, sobre a literatura fenícia de Ugarit (Ras Shamra – século catorze a.C.) mostraram que o conteúdo de Provérbios (seja qual for a data de sua redação final) pertence mais ao mundo do Israel primitivo do que ao judaísmo pós-exílico. Para este autor, “os capítulos 8-9, até agora considerados como a parte mais recente do livro, têm maior proximidade do pano de fundo cananita de Israel, recuando-se, talvez, até à data de Salomão”90, deixando aberta a pergunta se os capítulos 1-9 teriam ou não uma história de desenvolvimento interno.

Para Teodorico Ballarini, os capítulos 1-9 de Provérbios seriam de uma data recente pós-exílica, anterior ao Eclesiástico (Ben Sira 180 a.C.).91 Esta é também a opinião de

Claudia V. Camp, que argumenta ter sido “o livro de Ben Sira construído sobre os estudos da lei, dos profetas e dos outros escritos, entre os quais estaria o livro dos Provérbios. As reminiscências que faz Ben Sira do livro dos Provérbios – especialmente seu desenvolvimento da figura da sabedoria personificada no capítulo 24 – sugerem que Provérbios teve então um tempo anterior ao trabalho de Ben Sira suficiente para ganhar reputação e autoridade.”92 E acrescenta: “o desenvolvimento que faz Ben Sira da identidade da Sabedoria como Tora - desconhecido pelo editor de Provérbios – indica que houve um espaço de tempo entre estes dois escritos.”93

Segundo Norman Gottwald, somente com consciência de método, enquanto aplicado realmente ao texto, teremos condições de ver concretamente por que os intérpretes bíblicos têm discordado em suas conclusões. O método histórico crítico procura estabelecer

90 R. Derek Kidner, Proverbios – Introducción y comentario, Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1990, p.30. 91Teodorico Ballarini, Os livros poéticos – Salmos, Jó, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes,

Eclesiáticos, Sabebdoria, Petrópolis: Vozes, 1985, p.193 (Introdução à Bíblia).

92 Claudia V. Camp, Wisdom and famine in the book of Proverbs, Sheffield: Sheffield Press, 1985, 352 p. (Bible and literature series 11).

as origens verdadeiras do texto e avaliar as probabilidades através de uma pesquisa dentro do próprio texto e da comparação com outros documentos do mesmo período ou do mesmo tipo.94 Esta é também a opinião de Gerhard von Rad, ao afirmar que não é possível esclarecer o conteúdo e as tendências ideológicas dos poemas didáticos de Provérbios sem re-situá- los dentro do horizonte das imagens do seu tempo.95

A maioria dos autores situa nosso texto no final do período persa. Segundo Luis Alonso Schökel, Pr 1-9 e 31,10-31 são as partes mais recentes de Provérbios e foram compostas pelo próprio editor do livro. Para esse autor, isto é mais claro em relação a Pr 1- 9, sendo que o poema final (31,10-31) poderia ser uma criação própria ou uma adaptação do editor. Na opinião de Luis Alonso Schökel a data da composição destas últimas seções e da edição do livro dos Provérbios seria anterior ao livro de Ben Sira (180 a.C.), pois, segundo parecer geral dos estudiosos, Ben Sira tinha em mãos o livro dos Provérbios e a ele se referiu (Eclo 47,17).96 Isto significa que a elaboração de Pr 1-9 e a edição final do livro, segundo este autor, seriam anteriores a 332 a.C. Esta opinião coincide com a de Martin A. Klopfenstein, pois este afirma que a maioria dos comentários aponta a época pós-exílica para a redação de Pr 1-9 “sem descer até à época helenística”97. No entanto, há opiniões diferentes: por exemplo, Karen Armstrong indica o século III a.C. como data provável para a elaboração do nosso texto e a edição final do livro dos Provérbios. 98

Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica, não somente em nível literário, como foi argumentado acima, mas por questões histó ricas, culturais e sociais. Parece que a situação de enfraquecimento do império persa pelas prolongadas guerras contra os gregos e as diferentes tendências internas ao judaísmo criaram um espaço que permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente em outros textos da época e também em Pr 8,22-31.

94 Norman Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.23. 95 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.21.

96 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.105.

97 Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1 -9?”, p.531. 98 Confira Karen Armstrong, Uma História de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e

De um modo geral, esta é a opinião dos autores que situam a elaboração de Pr 1-9 no final do período persa. Há condições sócio-políticas e religiosas que possibilitam esta elaboração, como afirma Silvia Schroer: “A queda da monarquia e a destruição do templo de Jerusalém sacudiram maciçamente a ordem patriarcal estabelecida e, neste sentido, as mulheres tiveram novas chances, porque os padrões sociais tradicionais de funções sociais e os sistemas da fé já não tiveram autoridade automática. De repente, a religiosidade de Israel estava ligada fortemente à família e ao clã, como na época pré-estatal.”99

Segundo Nelson Kilpp, a partir do início do século V, os persas sofreram imensas perdas em pessoas e material no interminável conflito pela supremacia do comércio no Mar Mediterrâneo. O alto custo da guerra levou o império persa a aumentar a tributação, causando rebelião das satrapias mais organizadas. No reinado de Artaxerxes II (404 – 359 a.C.), o império persa enfrentou a revolta da satrapia do Egito, que conseguiu se liberar da ocupação persa, aproveitando a instabilidade interna do império. Também os Povos do Mar (fenícios) tiraram proveito desse enfraquecimento do império persa. Anteriormente, eles haviam sido parceiros da Pérsia na luta contra os gregos, sobretudo nas batalhas navais. Ofereciam ao império seus conhecimentos sobre as navegações marítimas e, em troca, receberam território no litoral da Palestina, onde incrementaram o comércio internacional através dos portos de Ascalon e Jope. A pequena e inexpressiva província de Judá parece que se beneficiou, a longo prazo, com a proximidade dos fenícios e do seu comércio. No entanto, a maioria das pessoas ainda trabalhava na agricultura, mesmo quando morava na cidade. Além da produção agrícola para o mercado interno, Judá deve ter intensificado sua produção de azeite e vinho, os tradicionais produtos de exportação, aproveitando a atuação dos fenícios nos portos locais. Não sabemos se os efeitos da reforma de Neemias (Ne 5) foram duradouros ou se, pelo contrário, o processo de endividamento e escravidão de pequenos agricultores e o concomitante acúmulo de terras começaram logo após a sua gestão. Pelo que sabemos, a instituição que mais arrecadava na época, o templo (confira Ne 10,33.36a.38), não investia em propriedades agrícolas. 100

99 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche

Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.

100 Este é um resumo de Nelson Kilpp, Jonas, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.21-22, (Comentário Bíblico do AT).

É interessante observar que em Pr 1-9 não se fala em templo, nem em sacerdotes, o que nos leva a pensar em um certo distanciamento entre os autores de Pr 1-9 e o templo de Jerusalém. Embora os camponeses se congregassem no templo por ocasião das festas, certamente manteriam nas sinagogas das aldeias e, mesmo nas casas, a sua formação religiosa mais diretamente ligada às diferentes situações da vida, com seus antigos rituais. A casa, a família e a comunidade seriam um lugar importante, onde se transmitiriam não somente normas de bem viver, mas também sagas, lendas e mitos ligados à história do povo e também às coisas simples que teciam o dia-a-dia das famílias. Se nesta época a maioria das famílias morava no campo, ou viviam do trabalho agrícola, estariam mais ligadas à natureza e dependentes da fertilidade do solo e da ocorrência periódica das chuvas para obter uma boa colheita.

Com a finalidade de obter uma visão mais aproximada sobre a situação concreta do povo de Judá, nos séculos 4º e 3º a.C., e uma caracterização das tendências internas que haveria nessa época, adoto um estudo de Nelson Kilpp. Em seu livro sobre Jonas, este autor apresenta três tendências que coexistiram em Judá, nessa época. Uma primeira tendência estava centrada no templo de Jerusalém e era formada pelos que voltaram do exílio. Estes são considerados pela obra do cronista como o verdadeiro povo de Deus e formam uma comunidade cúltica. Suas características princip ais são: a) uma celebração correta das festas e dos ritos sagrados; b) o cumprimento da Lei; c) o combate às influências estrangeiras; d) a promoção da pureza teológica e racial. Esta tendência conta com o apoio de sacerdotes e do profeta Malaquias. Uma segunda tendência é profética e encontra-se, sobretudo, na profecia de Joel, um crítico do templo de Jerusalém e do culto como centro da vida do povo. Joel critica a expectativa pelo “dia de Javé” e apela à penitência (Jl 2). Esta tendência considera que somente depois da destruição das nações vizinhas, Israel (Jl 3,4) conhecerá a paz e a felicidade. A terceira tendência é representada pelos livros de Rute e de Jonas.101 Um dos objetivos dessa tendência é incorporar estrangeiros/as no povo de Deus, baseando-se em uma antiga convicção israelita: “em ti serão abençoados todos os clãs da terra” (Gn 12,3).

101 Segundo Nelson Kilpp, Jonas, p.22, outros livros fazem parte desta tendência. Além de Rute e Jonas, existe uma clara conexão com Jó, Cântico dos Cânticos e Isaías, entre outros. Minha hipótese é que Pr 1-9 faça parte desta tendência.

Esta proposta foi reforçada por alguns círculos proféticos anônimos que conseguiram exprimir-se, por exemplo, em Is 19,16-24 e em Is 56,1-7.102

Alguns autores, entre eles Hans G. Kippenberg, afirmam que o clã é uma unidade aberta diferente de linhagem, pois esta “une os membros exclusivamente pela comprovável descendência genealógica e limita seu acesso aos recursos”103. Sendo assim, uma casa aberta, pronta a incluir e a partilhar, como aquela construída pela sabedoria mulher (Pr 9,1- 6), seria característica dos pobres e não das classes altas já hierarquizadas da Judéia. O convite proclamado sobre os montes da cidade, pelas criadas da sabedoria mulher, seria uma proposta de inclusão, elaborada a partir deste símbolo.

Concluindo, vimos que há poucas vozes contrárias à opinião de que Provérbios 1-9 seja um texto relativamente recente, provavelmente elaborado no final do período persa e, certamente, anterior a Ben Sira. Uma caracterização das tendências que havia dentro do povo de Judá, nesta época, não significa que já estou me definindo por alguma delas. Estas caracterizações ajudam a ver o contexto e visibiliza a situação do povo de Judá, no período pós-exílico. Mas uma definição pessoal sobre a tendência que deu origem a Pr 1-9 somente será possível depois de uma análise formal do texto.