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Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica, como foi argumentado no primeiro capítulo desta tese. Para compreender melhor o contexto desse período, retomo uma citação de Antonius H. J. Gunneweg. Segundo esse autor, na época persa “não existia um judaísmo como grandeza uniforme, assim como tampouco existiu um Israel uniforme em tempos anteriores”248. Parece que a situação de enfraquecimento do império persa, ocasionado pelas prolongadas guerras contra egípcios e gregos, assim como as diferentes tendências internas ao judaísmo, criaram um espaço que permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente na imagem da sabedoria mulher, sobretudo no poema de 8,22-31.

Neste contexto, podemos identificar a casa ou o clã como a fonte principal da sabedoria, que surge da experiência, iluminada pela tradição religiosa e a reflexão. Não há dúvida de que o intercâmbio com outros povos, através das diásporas, do comércio e dos casamentos foi enriquecendo a sabedoria de Israel, que na sua evolução histórica desenvolveu dois tipos de sabedoria: a sabedoria popular que vinha do chão da vida das famílias, a partir da observação e da luta pela sobrevivê ncia; e a sabedoria da corte, durante a monarquia, que teve sua continuidade nas escolas dos sábios, no pós-exílio. Estes buscavam um sentido para o desastre que representou o exílio da Babilônia para a vida e a teologia de Israel. Ao mesmo tempo, as escolas de sábios buscavam elaborar um conhecimento que pudesse dar assessoria e legitimidade aos governantes. Tanto a sabedoria da casa, como a palaciana, ou oficial, sempre foram influenciadas pela sabedoria dos povos vizinhos.

248 Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel – Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até

A ausência de um governo que centralizasse a economia, a política e a religião possibilitou um maior espaço na organização e administração da casa, espaço onde as mulheres tinham liderança e autoridade. É esta liderança que aparece refletida nos símbolos da mulher sábia (Pr 31) e da sabedoria mulher (Pr 1; 8 e 9) que se esclarecem e se iluminam mutuamente. Por trás dos símbolos está a vida concreta de mulheres profetisas, sábias, administradoras de suas casas. Também há, segundo Judith E. McKinlay, um substrato de memória da Deusa Aserá.249 É no ambiente da casa, onde com sabedoria se enfrentam as

situações cotidianas ou inesperadas que ameaçam a vida, que se redefine a realidade e os conceitos religiosos. Na casa se realizam ritos que garantem a colheita, a saúde, a vida. É neste contexto que foi surgindo a figura da sabedoria mulher, carregada de história e apontando para um horizonte novo.

É dentro desta perspectiva que situamos a redação de Pr 1-9 nas últimas décadas do período persa, no contexto das grandes vitórias alcançadas pelo império grego no Oriente e pela decadência do império persa. Talvez tenha existido nessa época um período de maior liberdade, quando a Judéia chegou a ser um estado teocrático, com moeda própria.250

Parto da convicção de que um texto bíblico brota da vida, descrevendo uma realidade e apontando caminhos de superação. É o que indica Silvia Schroer quando afirma que “para fazer uma exegese feminista é necessário que nos perguntemos sobre a história das mulheres judias, como se situavam naquele momento, o que estavam exigindo e quais as suas buscas concretas de libertação”251. Esta é minha postura ao buscar identificar a

trama religiosa e social que se revela e se oculta por trás do texto de Pr 1-9. Concentro a atenção na vida das mulheres do período pós-exílico, sobretudo nas relações de poder subjacentes ao texto e projetadas nas relações com a divindade.

249 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.39.

250 Encontraram-se dracmas com a inscrição YHD, por volta de 350 a.C. Conferir Bíblia de Jerusalém, p.2338.

Pr 1-9 nasce como uma reação frente ao centralismo e às exclusões.252 É

interessante observar que em Pr 1-9 não há qualquer alusão à circuncisão, ao sábado, ao templo e ao sacerdócio. É uma reflexão que nasce da vida, buscando caminhos de superação. Diante de problemas concretos da vida das famílias, no pós-exílio, a reflexão foi crescendo. Uma tradição carregada de mito e de história foi iluminando o processo, até desembocarem na composição dos poemas que hoje fazem parte da moldura do livro dos Provérbios (1-9 e 31,1-31). Esta reflexão está relacionada ao processo histórico vivenciado pelas mulheres de Judá, desde a revisão teológica feita durante o exílio da Babilônia; o projeto centralizador do grupo de sacerdotes zadoquitas em torno ao templo de Jerusalém; os esforços de reconstrução de Neemias (443) e Esdras (398), com suas exigências de pureza ritual em relação ao corpo da mulher visto como impuro e às tentativas de exclusão da mulher estrangeira, culpabilizada pela situação de empobrecimento e desorientação do povo no pós-exílio.

Se, por um lado, Esdras culpabiliza as mulheres estrangeiras da extrema situação de pobreza na qual se encontra o povo no pós-exílio, insistindo também na realização de um culto estritamente monoteísta, por outro lado, há uma reação que se expressa em uma riqueza de vivências e símbolos, criando no pós-exílio um espaço subterrâneo para a formação de reflexões que partem da vida e das experiências das mulheres no cotidiano das suas lutas e de suas expressões religiosas. “O mundo das mulheres, depois do exílio, mostra-se de forma extraordinária no livro de Rute e até certo ponto também em Ester”253. Alguns aspectos desta nova mentalidade expressam-se também no livro de Jonas, que apresenta uma imagem de Deus muito bem humorado e aberto aos povos estrangeiros.254 O

livro do Cântico dos Cânticos, com sua visão deslumbrante e integradora dos corpos e do amor e a novela do livro de Jó, com seus questionamentos sobre teologia da retribuição, também fazem parte deste movimento contestatório, frente à tendência de fechamento da elite sacerdotal que estava no poder, durante o período persa.

252 Muitos outros textos foram escritos nesta época para expressar uma reação a posturas e políticas excludentes. Cito Rute, Jonas, Cântico dos Cânticos e Jó, entre outros.

253 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche

Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen,p.27.

Recentemente, Fokkelien van Dijk-Hemmes indicou que o livro de Rute pode ter se originado em uma cultura de mulheres, justificando que “esta hipótese de uma cultura de mulheres tem sido proposta por antropólogos, sociólogos e historiadores da sociedade, a fim de estabelecer um elo entre as experiências culturais primárias como expressas por mulheres”255. Baseando-se em Showalter, Fokkelien estabelece alguns critérios para reconhecer a voz feminina que fala em determinados textos,256 chamando a atenção para a substituição do termo “casa do pai” por “casa da mãe” como uma indicação de que o texto, no caso Ct 3,4; 8,2, provém de uma “cultura de mulheres”. É significativo encontrar esta expressão “casa da mãe” em Pr 31,21 que pode indicar um substrato da cultura de mulheres na moldura colocada pelo editor às coleções que fo rmam o livro dos Provérbios. Segundo Fokkelien van Dijk -Hemmes uma cultura de mulheres significa uma “cultura feminina subterrânea, na qual as mulheres ‘redefinem’ a realidade baseadas em suas próprias perspectivas”257. Uma realidade que transparece em Pr 31,10-31 e que recebe o seguinte comentário de Elisabeth Schüssler Fiorenza: “ainda que o louvor da perfeita “dona” de casa se faça a partir de um ponto de vista masculino, se evidenciam sua iniciativa econômica e sua perspicácia para os negócios”258.

Citando Campbell, Fokkelien lembra, também, que uma tradição de sábias mulheres contadoras de histórias foi se formando a partir da participação de sua audiência predominantemente feminina e ativamente engajada.259 Se isto é assim, podemos afirmar que a metáfora da sabedoria mulher surge como expressão de uma nova visão da mulher e do homem em suas relações diárias, em sua visão do trabalho e como expressão da sua experiência religiosa. A uma antiga visão da mulher dominada pelo marido (Gn 3,16b) é superada, porque a situação sócio-econômica e religiosa possibilitou que as mulheres do interior de Judá desenvolvessem sua perpicácia para os negócios e tomassem as iniciativas

255 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, Rute a partir de uma leitura

de gênero, Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2002, p.180. Neste texto a autora comenta

entre parêntesis que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é predominante o androcentrismo de teorias e estruturas de interpretação.

256 Para um maior conhecimento destes critérios leia Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, p.181-183.

257 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: P roduto de uma cultura de mulheres?”, p.183.

258 Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los

orígenes del cristianismo , Bilbao: Desclée de Brouwe, 1989, p.150.

necessárias para levar a bom termo a realização das atividades necessárias para garantir a vida da casa. Esta nova visão das mulheres tem suas raízes em uma tradição de mulheres sábias e contadoras de história e de mães que orientam seus filhos para a vida. Embora nova, esta visão é fiel às tradições do povo israelita, com sua experiência libertadora de Deus e sua religião baseada na justiça e no direito. Ao mesmo tempo, esta nova visão traz um eco do antigo culto às Deusas e, no capítulo 8, faz reminiscências de Javé com sua consorte.260

Esta nova visão das mulheres confronta-se com a contradição do sistema patriarcal no dia-a-dia de suas lutas e de suas buscas. É muito difícil conviver com uma realidade marcada pela dominação, quando se tem os olhos e a mente despertos e críticos em relação a esta realidade. Uma amostra da insatisfação das mulheres, neste sentido, aparece no livro dos Provérbios, onde há um ditado muito repetido: “melhor é morar numa região deserta do que com uma mulher queixosa e iracunda” (Pr 21,19; 21,13; 19,13; 25,24). De que se queixaria a mulher? Uma queixa pode conter algo da reivindicação e luta das mulheres e supõe uma consciência do próprio valor e dignidade. Segundo a cultura da época, transmitida pelo sistema familiar e sustentado pelo sistema religioso, a mulher era obrigada a se submeter às ordens do pai, do marido, ou de um filho mais velho, quando ela mesma tinha consciência de sua capacidade de pensar e de agir. Este fato, certamente, deveria produzir muita raiva e tristeza.

Desta maneira, uma cultura de mulheres, vivenciada e tecida a partir da casa, através da qual elas e eles redefinem sua realidade, enfrenta-se com o sistema social e religioso da época, nas pequenas situações do seu cotidiano. No livro de Rute, encontramos uma novidade em relação aos papéis que ela e Noemi exercem e aqueles que fazem parte dos padrões vigentes na sociedade patriarcal em que vivem. Apesar de representar Deus, o

go’el ou libertador do povo, “Booz não lidera nada, não impõe nada, não tem proposta nem

260 Judith Hadley ao fazer um estudo sobre as reminiscências do culto a Aserá no antigo Israel, afirma: “Pode ser que o culto a Asherah tenha sido uma parte legítima do culto a Yahweh”. Veja Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, p.240.

projeto. Ele apenas executa as sugestões das duas viúvas (3,11)”261. Aparece aqui,

claramente, uma grande mudança nas relações de poder.

Esta cultura de mulheres ao mesmo tempo em que representa uma reação à expropriação de seus bens (Lv 12,8; 15,29-30) e ao fato de serem culpabilizadas pelas desgraças e misérias do povo no pós-exílio (Esd 10,44; Ne 10,31; 13,26), manifesta também o crescimento e a descoberta que surge da partilha e reflexão das mulheres. Mostra ainda que a “cultura de mulheres” não foi um círculo restrito a um grupo de vizinhas, mas um movimento que contou com o apoio de se us companheiros e amigos, de filhos, genros e irmãos. Somente uma grande solidariedade no sentir e no pensar poderia gerar uma visão tão bonita e esperançosa.

Mas, no contexto de Pr 1-9, não se encontra somente um movimento cultural subterrâneo que discute e elabora uma sabedoria que nasce da vida das mulheres e da casa. Há uma participação muito concreta das mulheres do pós-exílio na luta pela reconstrução da cidade e no empenho pela realização da justiça. Sylvia Schroer ressalta o fato de haver “mulheres que após o retorno do exílio tiveram uma participação importante na reconstrução de casas e cidades. Em Ne 3,12 é mencionado expressamente que as filhas de Selum estavam participando da construção do muro em Jerusalém. Conforme Ne 5,1-5 foram mulheres do povo pobre que se empenharam na manutenção da posse da casa e protestaram contra a escravidão dos seus filhos e filhas por causa de dívidas e se sentiram responsáveis, tanto quanto seus maridos”262. Esta atuação decidida das mulheres nos remete

ao capítulo 31 dos Provérbios, onde se encontra o louvor da mulher israelita forte e valente que dirige sua casa (Pr 31,15. 21. 27). Fazer aqui esta relação é muito importante, pois um mesmo contexto está por trás de Pr 1-9 e 31. Um contexto que gera uma experiência no va e que se expressa através de poemas muito elaborados.

No começo do século 2 a.C., um grupo conservador faz uma revisão dos poemas sobre a sabedoria mulher de Pr 1, 8 e 9. Esta revisão se manifesta no livro de Ben Sira,

261 Carlos Mesters, Como ler o livro de Rute – Pão, família terra, São Paulo: Paulus, 1991, p.39.

262 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die

revelando uma grande discriminação da mulher (Eclo 42,9-11; 22,3), que é considerada perigosa e culpada de todos os males que sobrevinham ao povo, inclusive a morte (Eclo 42,13-14; 25,13; 25,24). Ben Sira busca corrigir não somente a visão da mulher, mas também a revelação da sabedoria como artífice do universo ao lado de Javé (Pr 8,30-31), como parceira em total e cósmica harmonia, apresentando-a como uma hipóstase, uma personificação da torah. Para Ben Sira, a sabedoria é um atributo de Javé (Eclo 24). No entanto, a cultura de mulheres resiste e surge, com força, no último livro da Bíblia, através do mesmo símbolo da sabedoria mulher, que partilha com Deus o seu trono (Sb 9,4).

Portanto, nas suas lidas e relações diárias, lugar principal da origem sabedoria, a mulher israelita encontra espaço para expressar suas “experiências culturais primárias” e participar da elaboração de um caminho que leva à vida, oferecendo elementos para a elaboração de uma revisão do discurso sobre Deus, uma nova visão do trabalho e um relacionamento integrador e prazeroso com o universo. Supõe-se que os poemas de Pr 1,20- 23; 8 e 9 não sejam uma obra exclusivamente das mulheres, mas o grupo que os elaborou conta com a participação de mulheres “sábias” e representantes da cultura das mulheres, que ajudam a abrir novos horizontes para o futuro a partir da experiência de enfrentamento com as contradições de sua época.

Conclusão

Apresentarei, agora, os resultados do estudo realizado no cap. 2. Ao iniciá-lo, perguntava- me se o símbolo da sabedoria mulher seria um reflexo da mulher israelita contemporânea ao texto ou se apresentaria, sobretudo, um discurso sobre Deus. Se este símbolo veiculava um discurso teológico em linguagem feminina, por que razão foi aceito nos círculos sampienciais de sua época? Ou seja, que situações concretas permitiram a elaboração deste símbolo e sua aceitação? Para responder a estas perguntas, necessitaria fazer uma exegese de cada um dos poemas para verificar os múltiplos sentidos do símbolo

da sabedoria mulher e também fazer uma investigação sobre o contexto sócio-econômico, político, religioso e cultural em que foi elaborado. Suspeitava que este símbolo estivesse ligado à religião da casa, com seus ritos familiares relacionados à semeadura e à colheita; aos nescimentos, casamentos e funerais, enfim, à própria sobrevivência das famílias e às questões mais importantes do seu cotidiano.

O caminho percorrido me permite, agora, formular certas afirmações sobre os diferentes sentidos do símbolo da sabedoria mulher em cada um dos poemas estudados. Em Pr 1,20-23, ela aparece como profetisa, dirigindo-se com autoridade aos seus interlocutores. Em meio ao burburinho da cidade, interpela e questiona os ingênuos, zombadores e insensatos, exortando-os a voltar-se para ela e a escutarem suas palavras.

Ao apresentá- la como profetisa, o texto de Pr 1,20-23 faz memória de mulheres profetisas do Primeiro Testamento, como Miriam (Ex 15,20-21), Débora (Jz 4-5), Hulda (2 Rs 22), Noadias (Ne 6,14). Partindo da memória de mulheres profetisas, sábias e fortes, elabora-se a metáfora da sabedoria mulher, com um significado mais complexo e mais amplo. A própria metáfora impede que vejamos apenas os traços de profetisa, sábia ou guerreira no rosto da sabedoria mulher, pois, ela promete “derramar seu espírito” a quem se converterem à sua exortação (1,23). Aos que se voltarem para ela e a escutarem, ela promete “vida tranqüila e segura, sem temer nenhum mal” (1,33). Se ela tem o espírito e pode derramá-lo aos seus ouvintes; se ela pode indicar os caminhos da vida e até mesmo oferecê- la aos seus seguidores, então ela também representa Deus, neste texto.

Em Pr 8,1-3, o aspecto da profecia é também acentuado, pois a sabedoria mulher é apresentada em lugares públicos com força e autoridade, chamando as pessoas para que venham ao seu encontro. Em seguida, ela faz sua auto-apresentação e mostra a importância dos seus dons, que valem mais que ouro, pérolas e jóias (v.11.19). Sua postura está relacionada ao comportamento ético da casa. Pois a sabedoria mulher anda pelos caminhos da justiça (v.20) e promove o direito (v.15-16). Além de expressar uma opção clara pela justiça e pelo direito, os v.4-21 do cap. 8 expressam de um sonho de paz, usando termos da esperança messiânica de Is 11,1-9.

No poema de Pr 8,22-31, a figura da sabedoria mulher vai crescendo até alcançar aspectos de uma Deusa. Ela se revela como pré-existente a toda a criação (v.23.24.25.27). Sua auto-revelação chega ao ponto máximo nos v.30-31, quando se apresenta como artífice e parceira de Deus, na artística obra criadora do universo. Nos versos finais deste poema, a sabedoria mulher proclama bem aventurados àqueles que guardam os seus caminhos (v.32) e a procuram cada dia, velando à sua porta (v.34), pois quem a procura a encontra e, encontrando-a, recebe a vida (v.35). Nesta conclusão do poema, está claramente expresso que a sabedoria é dadora de vida e que há uma oposição entre ela e a morte. Podemos afirmar, então, que a sabedoria mulher representa o próprio Javé, que derrama seu espírito sobre todas as pessoas, como em Jl 3,1-5, e é criador do universo e fonte de vida para todos.

Em Pr 9,1-6, a sabedoria mulher é apresentada como hokmot, um plural de majestade que também foi usado em nosso primeiro texto (Pr 1,20). Mas, os traços do seu rosto mostram, em primeiro lugar, uma mulher competente que constrói sua casa e prepara com perfeição um banquete, para que seus convidados se sintam bem. Não é apenas o número sete, repetido no texto ao referir-se às características da casa que construiu (9,1) e sutilmente mencionado nos sete verbos que descrevem sua ação e revelam sua grandeza. Há algo de inusitado em toda a sua intencionalidade. Ela prepara com todo o cuidado um banquete e envia solenes convites para simples e carentes. Os seus convidados especiais são aqueles que não têm conhecimento (petayim) e, também, aqueles que estão sem um sentido para a vida (hasar leb). Isto é realmente algo de inusitado, de inédito! Neste inédito, que nasce de uma postura ética da mulher israelita no seu dia-a-dia, transparece um discurso sobre Deus. Pois o poema do cap. 9 de Provérbios continua mostrando outros traços do rosto da sabedoria mulher. Os três imperativos usados por ela ao dirigir-se aos destinatários do seu convite ajudam a perceber o sentido simbólico do texto: “venham!”, “comam!” e “bebam!” (v.5). O poema deixa bem claro que o convite da sabedoria mulher é, em primeiro lugar, para que venham em direção a ela. Além disso, a participação em sua