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Neste capítulo, investigarei sobre a relação entre o símbolo da sabedoria mulher de Pr 1,20-23; 8 e 9 e a mulher da vida real, delineada no capítulo 31 de Provérbios como sábia (v.1-9) e forte (v.10-31). Ao iniciar este capítulo, quero explicitar o que entendo por

símbolo e a perspectiva que tenho ao fazer esta investigação. O termo símbolo tem sua origem no grego su,mbolon e designa um elemento representativo da vida real que passou a ser usado com outro significado, criando novas possibilidades para a linguagem. Segundo Mircea Eliade, “a rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos símbolos que prolongam uma hierofania ou que constituem eles próprios uma “revelação” inexprimível de outra forma mágico-religiosa. No entanto, em sentido amplo tudo pode ser um símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo”365.

A importância do símbolo está na sua capacidade de realizar uma passagem do cotidiano para a língua tornando-se, desta maneira, uma das grandes conquistas da existência humana. A metáfora366 e o símbolo fluem necessariamente da vida humana, tanto na linguagem escrita, como nas comunicações orais cotidianas. Compreendo que símbolos e metáforas estão carregados de sentido e de energia, possuindo uma força capaz de transmitir mensagens e de criar relações. Para Mircea Eliade, uma das características do símbolo é a simultaneidade dos sentidos que revela. Essa simultaneidade verifica-se igualmente à margem da vida religiosa propriamente dita.367 O símbolo possui uma função

unificadora de grande importância, não somente na experiência religiosa do ser humano, mas também para a sua experiência humana como um todo. Um símbolo revela sempre, qualquer que seja o seu contexto, a unidade fundamental de várias zonas do real368. Mircea Eliade afirma que “o símbolo identifica, assimila, unifica planos heterogêneos e realidades aparentemente irredutíveis. Mais ainda: a experiência mágico-religiosa permite a transformação do próprio ser humano em símbolo”369

Esta abordagem das características e funções de um símbolo possibilita uma compreensão mais pertinente dos poemas que estamos analisando. Os textos de Provérbios 1-9 e 31 estão duplamente carregados de sentido simbólico, primeiro, por ser linguagem,

365 Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.365.

366 Metáfora é “o tropo pelo qual se dá a uma pessoa ou coisa uma qualificação que ela não tem e que só por analogia se pode admitir; é também o emprego de uma palavra em um sentido diferente do próprio, por sua semelhança”. Confira em Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo de língua portuguesa, atualizada por Hamilcar de Garcia, Rio de Janeiro: Delta, Vol.3, 1958, p.3240.

367 Confira em Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.367. 368 Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.368.

que em si mesma já é simbólica e que somente pode ser compreendida dentro de processos vitais e fenômenos culturais. Segundo, porque pertencem ao gênero poesia, que é tecida através de recursos literários, símbolos e imagens capazes de gerar um sentido novo. Segundo Paul Ricoeur, “de uma parte, a poesia, em si mesma e por si mesma, dá a pensar o esboço de uma concepção ‘tensional’ de verdade, recapitula todas as formas de ‘tensão’ trazidas à luz pela semântica: tensão entre sujeito e predicado, entre identidade e diferença; depois as reúne na teoria da referência duplicada e, enfim, as faz culminar no paradoxo da cópula, segundo o qual o ser-como significa ser e não ser. Por esse círculo da enunciação, a poesia articula e preserva a experiência de ‘pertencimento’ que inclui o ser humano no discurso e o discurso no ser”370.

Minha hipótese é que os poemas de Pr 1-9 e 31 deixam transparecer uma grande mudança cultural, social e religiosa em relação à mulher, no pós-exílio. A partir da casa interiorana de Judá, a mulher estaria resgatando a solidariedade tribal e transmitindo ensinamentos importantes para a identidade do povo. Embora o poema de Pr 31,10-31 tenha causado certo mal estar em leitoras conscientes da exploração e opressão da mulher, parece- me que o texto é transparente quanto à autonomia com que a “mulher de força”

’exet hayil administra sua casa, expandindo sua atuação até o espaço público. Estaria esta

mudança expressando que na época do pós-exílio surgiu uma nova visão da mulher a partir da sua nova atuação na sociedade do seu tempo? Esta nova visão gerou relações novas entre as pessoas e com a divindade? Teria esta nova visão provocado uma ruptura no sistema simbólico de Israel possibilitado a representação de Deus através do símbolo da sabedoria mulher? Este símbolo teria se originado somente da nova atuação da mulher e da nova visão que esta passou a ter na sociedade do seu tempo ou teria ainda outras raízes na história do povo bíblico?

Na mesma seção de Provérbios onde se encontra o símbolo da sabedoria mulher (Pr 1-9), encontra-se também uma censura contra a mulher “estranha” ou “estrangeira”

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nokriyar (Pr 2,16-19; 5,2-23; 6,24-7,27). Esta censura seria uma reação dos

editores de Provérbios contra a autonomia das mulheres, que transparece tanto em Pr 1-9 como em Pr 31?

Com a finalidade de buscar respostas a estas questões, verificar a pertinência da minha hipótese e buscar os múltiplos sentidos do símbolo da sabedoria mulher, em todos os itens deste quarto capítulo buscarei detectar elementos que fazem a ligação entre Pr 1-9 e 31. Venho indicando, nos capítulos anteriores, que as ligações existentes entre estas duas seções mostram que elas foram elaboradas em conjunto,371 em uma época recente do pós- exílio, e colocadas pelos editores no começo e no final do livro dos Provérbios. Para justificar esta afirmação e buscar novos sentidos que possam surgir das ligações transversais entre os textos, me deterei sobre símbolos e termos que fazem esta ligação entre a primeira e a última seção do livro dos Provérbios.

No item 4.1, apresentarei um estudo sobre a realidade subjacente ao símbolo da sabedoria mulher. No item 4.2, investigarei sobre a situação histórica e social e as possibilidades de participação das mulheres na sociedade do pós-exílio. No item 4.3, buscarei dados que me permitam obter uma visão sobre a religião da casa nesse período. No item 4.4, apresentarei uma síntese do debate sobre a relação entre a sabedoria mulher e a Deusa. No item 4.5, farei uma abordagem da antítese entre a sabedoria mulher (9,1-6) e a mulher insensata (Pr 9,13-18). No item 4.6, apresentarei a função social dos textos sobre a sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e a mulher sábia e forte (Pr 31), na sociedade e na religião do seu tempo.