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O espaço é outro aspecto que liga as duas figuras: a sabedoria mulher e a mulher da vida real, ao mesmo tempo em que relaciona símbolo e realidade. Em Pr 1-9, encontramos a sabedoria mulher ocupando os espaços das ruas, praças, encruzilhadas e portas da cidade (Pr 1,20-21; 8,1-3), onde anuncia em alta voz e com total liberdade sua mensagem. Ela convida os ingênuos e carentes de discernimento para que venham ao seu encontro. Este convite que é feito nos pontos altos da cidade (9,3-6), sem nenhuma interdição. Nestes espaços, ela anuncia sua palavra com dignidade e autoridade divina, já que promete derramar seu espírito (1,23), uma expressão que aparece somente neste verso, em todo o livro dos Provérbios e que, na profecia, é referente a Javé. Só Javé tem o espírito para dá-lo ao profeta ou a todo o povo (Is 30,1; 38,16; 42,1; 44,3; 59,21; Ez 36,27; 37,14; 39,29; Jl 3,1-2).

Do espaço público a sabedoria mulher se lança ao espaço cósmico e se auto-revela como pré-existente à criação (Pr 8,22-31), através de uma representação poética extremamente bela e ousada, já que há um estilo de auto-revelação da divindade em seu

discurso. Em uma época de caos total, quando a profecia apresenta o tema de uma nova criação (Is 51,6; 44,24; 65,17; 66,22), esta auto-revelação da sabedoria mulher como artífice do universo, realizando de maneira alegre, relacional e harmoniosa a criação do universo (Pr 8,30-31), tem uma função de inspirar esperança e confiança em seus ouvintes. Ao mesmo tempo, desvela uma realidade que está acontecendo: a participação da mulher na reconstrução de Judá a partir das relações cotidianas, na casa. Isso é o que indica o poeta ao terminar a primeira seção do livro dos Provérbios (9,1-6), quando apresenta a sabedoria mulher na casa, realizando tarefas próprias de mulher, de dona de casa.

Talvez seja exatamente este movimento da hokmah na primeira seção do livro dos Provérbios, indo do espaço público para a casa, que tenha recebido a crítica de Judith McKinlay. Segundo esta autora, a sabedoria mulher foi enquadrada na casa, já que o movimento que ela faz vai do espaço público em direção à confinação no lar, dentro do contexto do livro como um todo. Além disso, ela se pergunta se as mulheres da vida real tinham esta liberdade da hokmah para transitar livremente pelo espaço público das ruas, praças, encruzilhadas e portas da cidade. 378

Sem pretender esvaziar a questão levantada por Judith McKinlay, buscarei apresentar aspectos que podem ajudar a esclarecer este tema do uso do espaço público pela mulher em Provérbios 1-9 e 31. Primeiro, vejo no movimento da mulher sábia do cap.31 uma direção exatamente inversa daquela que foi assinalada pela autora. O primeiro espaço ocupado pela mulher da vida real em Pr 31 é o da casa, tanto no poema da sábia mãe do rei Lemuel (31,1-9), como no poema da ’exet hayil (31,10-31). Mas, embora tenha sido iniciada na casa, a atuação de ambas se estende para além deste espaço, chegando a deixar registrado o sábio discurso da mulher sábia nas memórias palacianas (31,1-9) e a provocar uma louvação pública da mulher forte por suas obras, nas portas da cidade (31,31). Se na primeira seção do livro (Pr 1,20-23; 8 e 9) a mulher vai do espaço público para o privado da casa, na última seção ela vai da casa para o espaço público. Ao ser louvada na porta da cidade, a ’exet hayil dirige a atenção do leitor ou leitora para a sabedoria mulher, que na porta da cidade iniciou sua apresentação e transmitiu seus ensinamentos (Pr 1,20-23; 8,1-3).

Desta maneira, o livro não se encerra com a mulher confinada na casa, mas louvada e reconhecida publicamente nas portas da cidade (31,31). Esta observação sobre os espaços ocupados pela mulher nas duas seções de Provérbios (1-9 e 31) confirma, mais uma vez, a ligação entre a primeira e a última seção de Provérbios e a tese de que formam uma moldura para todo o livro. Podemos encontrar nesta moldura a formação de um quiasmo que coloca todo o livro dos Provérbios dentro de um inclusio formado pela mulher que se movimenta do espaço público para a casa (1-9) e da casa para o espaço público (31).

Quanto à pergunta se as mulheres da vida real tinham liberdade para transitar livremente pelo espaço público, no pós-exílio, ou se ficavam confinadas ao espaço privado da casa, recolho um estudo de Silvia Schroer379 que observa uma grande mudança no mundo das mulheres, com a destruição do sistema simbólico de Israel, no pós-exílio. Esta autora faz um comentário sobre as múltiplas e variadas reações teológicas ao choque do exílio. Segundo Silvia Schroer, neste contexto, mudou o mundo das mulheres e a imagem da mulher.380 Essa mudança se evidencia, por exemplo, na participação ativa das mulheres na reconstrução da muralha da cidade de Jerusalém (Ne 3,12). Esta presença das mulheres no trabalho comunitário para a reconstrução das muralhas ficou escondida durante muito tempo pela tradução conjetural381 do texto, que traduziu para o masculino uma expressão feminina. Ao registrar a lista das famílias que participaram voluntariamente na reconstrução das muralhas de Jerusalém, o texto massorético refere-se a Selum, filho de Aloés, afirmando que “ele e suas filhas”

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hu’ ubenotav participaram desses trabalhos. Mas, grande parte das traduções ao português trazem “filhos”, em vez de filhas.382 Os tradutores não podem suportar a mudança de visão sobre as mulheres que o

texto apresenta. Em vez de assumi- la, preferem corrigir o texto.

379 Confira Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170-176. 380 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170.

381 A expressão “conjetural” está colocada no pé de página da Bíblia de Jerusalém, p.703. Este tipo de conjectura manifesta uma postura misógina dos tradutores.

382 Conferir Bíblia de Jerusalém, p.703; Bíblia Sagrada - Edição Pastoral, São Paulo: Paulus, 18ª impressão, 1996, p.513. Também a tradução ao espanhol La Biblia, Madri: Ediciones Paulinas/Verbo Divino, 75ª edição, 1988, p.392, traduziu

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hu’ubenotav como “filhos”. No entanto, a Bíblia Sagrada,

Outra grande mudança relacionada à visão da mulher e à sua participação na história do povo de Israel no período pós-exílico, encontra-se no livro de Rute. Esta bonita narração está relacionada ao processo histórico vivenciado pelas mulheres de Judá. Sua participação efetiva no resgate de leis que defendem o direito dos pobres e suas denúncias às leis que excluem e enfraquecem o povo se evidenciam na história de Rute e Noemi. Estas mulheres se unem e lutam para conseguir aquilo que necessitam, isto é, casa, terra, como meio de sobrevivência e descendência que garanta seu futuro e o do seu povo.

Em Ne 6,14, encontramos a profetisa Noadias intrometendo-se com coragem e decisão nos assuntos político-religiosos de Judá. Também o livro de Jó apresenta uma nova visão das mulheres quando narra a ação que Javé realiza em seu favor, no final do livro. Embora houvesse em Israel o costume de que somente os filhos recebessem a herança e que as mulheres só a receberiam no caso de não haver filhos homens (Nm 27,1-11), as filhas de Jó recebem herança como os seus irmãos (Jó 42,23-25). Este pode ser um exemplo de cidadania alcançada pelas mulheres no contexto do pós-exílio.

Nesta época, há também um esforço lingüístico para tornar visíveis as mulheres, pois, aparecem nos textos bíblicos deste período mais formas femininas de substantivos e de verbos. Por exemplo, nos cap.2 e 3 do livro de Rute há uma alteração constante de gênero, em Is 43,6 e Ne 8,3 repete-se “homens e mulheres”, “filhos e filhas”, sendo estes apenas alguns exemplos entre outros textos da época. Silvia Schroer comenta que esta preocupação de nomear ações de homens e mulheres “lembra os esforços contemporâneos por uma linguagem inclusiva”383.

Mas, a novidade em relação à participação das mulheres na sociedade judaíta não se limita ao âmbito social. Elas assumiram uma participação muito mais efetiva, também no campo religioso. Segundo Silvia Schroer, “não se pode ignorar que as mulheres assumem importância nas coisas religiosas e que aparecem como sujeitos religiosos não somente no espaço privado das casas, mas também no espaço público e no nível da religião

nacional”384. Esta realidade transparece nos textos citados acima (Pr 1,8 e 6,20), onde o

ensinamento do pai e a instrução da mãe são nomeados conjuntamente. Textos que desvelam a atuação das mulheres como transmissoras da tradição religiosa e da torah.

Desta maneira, a atuação da mulher nos espaços públicos e privados, participando não somente do resgate da história e das leis que defendem o direito dos pobres (Rute), mas também da reconstrução das muralhas da cidade (Ne 3,12) e na transmissão da torah (1,8; 6,20; 31,26) inspira o escritor dos poemas sobre a sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9. A partir deste enfoque, faz-se necessário percorrer com atenção os poemas de Pr 1-9, para observar melhor os movimentos e ações da sabedoria mulher e suas conseqüências. No primeiro poema (1,20-23), a sabedoria mulher tem características de profetisa que anuncia sua mensagem nos espaços públicos e movimentados dos caminhos, encruzilhadas, praças, mercados e porta da cidade. Mas, sua descrição supera a memória histórica das mulheres profetisas e até mesmo das grandes tradições proféticas. Em Pr 1,23 a sabedoria mulher tem autoridade divina, já que promete derramar seu espírito sobre quem se voltar para ela e escutar seus ensinamentos. Este aspecto liga a sabedoria mulher diretamente com Javé, que tem o espírito e promete derramá-lo sobre o profeta (confira Is 30,1; 38,16) e sobre todo o povo (Jl 3,1-5).

Depois de ocupar o espaço público, a sabedoria mulher ocupa também o espaço cósmico, onde sua identidade divina fica ainda mais evidente (Pr 8,22-31). No poema de Pr 8, ela se auto-revela como pré-existente a toda criação, quando exerce a função de artífice do universo ao lado de Javé (8,30-31). Ocupando o espaço cósmico, ela inspira alegria e confiança em seus ouvintes, comunicando uma visão bem humorada e esperançosa da criação e da dinâmica da história, das relações com a Divindade e da participação da mulher na vida do povo bíblico. Esta visão contribui para o resgate da auto-estima de um povo dominado e empobrecido, gerando uma consciência nova e apontando uma saída no futuro, ainda que pequena e limitada ao âmbito das relações.

O último poema da primeira seção apresenta a sabedoria mulher na casa, construindo-a, preparando um banquete e congregando convidados (Pr 9,1-6). É neste espaço da casa que a sabedoria mulher se encontra, quando a primeira seção do livro dos Provérbios se encerra. Mas, quando ligamos Pr 1-9 com Pr 31, vemos que a ocupação dos espaços pela mulher sábia (31,1-9) e forte (31,10-31) tem uma dinâmica exatamente inversa à dos cap.1-9. No cap.31 as duas personagens femininas iniciam a sua atuação na casa, mas suas obras chegam a influenciar o espaço público, provocando o louvor da mulher forte nas portas da cidade (31,31). No espaço público mais importante, onde se realiza a justiça e são tomadas as decisões relevantes para a vida da comunidade, a mulher é aclamada pelo seu valor. Não um valor moral, nem um reconhecimento público por suas virtudes, mas uma aclamação pelas obras que realiza.

No cap.1 do livro dos Provérbios (v.20-23) a sabedoria mulher foi apresentada publicamente, pela primeira vez. Nos capítulos seguintes ela percorreu o espaço cósmico, criando o universo e animando a esperança (8,22-31). Sua atuação, na primeira seção de Provérbios, termina na construção da sua casa, onde prepara um banquete e o oferece aos seus surpreendentes convidados (9,1-6). Já a mulher sábia inicia sua atuação na casa, ensinando e administrando, mas sua apresentação é concluída nas portas da cidade, onde é reconhecida e louvada por todo o povo (Pr 31,31). O movimento que a sabedoria realiza é uma continuação do movimento da mulher sábia. Elas se inspiram e co- inspiram, mostrando a grande mudança cultural e religiosa que aconteceu no período pós-exílico.