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Neste item, buscarei visualizar, com maior clareza, algo que já está emergindo nesta pesquisa, desde o capítulo 2: a função social de Pr 1-9 e 31. Se estes textos brotam das experiências cotidianas das famílias de Judá, no pós-exílio, reagindo às situações e expressando suas vivências cotidianas e suas crenças religiosas, certamente teria uma função nesta sociedade. Já foi explicitado que estes poemas reagem a situações desafiadoras para as famílias de Judá. Hans G. Kippenberg busca encontrar os motivos econômicos que geram a crise descrita em Ne 5, levantando hipóteses sobre questões relacionadas à posse e à capacidade produtiva da terra. Segundo esse autor, outro motivo de

420 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische

empobrecimento e endividamento das famílias de Judá está relacionado às exigências estatais para o pagamento dos impostos sobre o terreno. A situação torna-se mais grave porque esses impostos tinham que ser pagos em moedas. E se uma família camponesa já havia hipotecado sua propriedade, para fazer este pagamento, não lhe restava outra opção que vender filhos e filhas como escravos.421

Além disso, segundo a descrição de Ne 5, havia o interesse dos nobres e governantes de levar seus conterrâneos ao endividamento. Esta foi uma das causas da extrema pobreza que levou “os homens do povo e suas mulheres a levantar uma grande queixa contra seus irmãos, os judeus” (Ne 5,1). Estas eram algumas das contradições causadas pela exploração e as injustiças sociais dentro do povo judaíta, na época da reconstrução das muralhas. Já que a descrição da realidade feita em Ne 5 parece ser posterior à reconstrução mencionada, ela se torna muito importante para ajudar a compreender o contexto que levou Is 58,6.7.12 a proclamar em nome de Deus a necessidade de realizar a justiça social.

Como já foi mencionado, os textos de Pr 1-9 e 31 foram elaborados no final do período persa. A missão de Neemias situa-se por volta do ano 445 a.C. Portanto, podemos inferir que houve cerca de 100 anos de espaço temporal entre os dois livros. Mas, a problemática que levo u os homens do povo e suas mulheres a protestar contra a fome (Ne 5,1-2), as dívidas e hipotecas adquiridas para enfrentar a dolorosa situação (Ne 5,3-4), a escravidão e violações das suas filhas e dos seus filhos (Ne 5,5) parece ter continuado, embora com outras nuances. Esta dolorosa situação de pobreza transparece também no livro de Rute: falta de pão (Rt 1,1), de terra (Rt 2,7a) e de filho que possa dar continuidade à família e garantir o futuro do povo (Rt 4,17). Assim como Rute, Pr 1-9 e 31 busca encontrar saídas para a complicada situação das famílias e o faz insistindo no tema da justiça. Um dos objetivos principais dos ensinamentos do livro dos Provérbios é sensibilizar para a prática da “justiça”, do “direito” e da “retidão” (Pr 1,3). Os ensinamentos do pai e da mãe visam preparar os filhos para “entender os caminhos da justiça e do direito” (Pr 1,8; 2,8-9; 6,20; 8,20; 31,8-9).

Na sua auto-revelação, a sabedoria mulher sublinha uma característica básica da sua identidade: ela caminha pelas “sendas da justiça e do direito” (Pr 8,20) e somente através dela os governantes podem ditar sentenças justas (Pr 8,15.16). A mãe do rei Lemuel instrui seu filho para que “abra a boca com justiça e defenda o oprimido e o pobre ” (Pr 31,9). A partilha solidária com os pobres é a saída encontrada pela mulher forte e sábia de Pr 31,10- 31. Ao “abrir a mão aos oprimidos e pobres”, esta mulher indica que no cotidiano da vida da casa a prática da justiça é a realização do que Deus quer (Dt 10,12-22; 15,11). Guardar o ensinamento de Javé é realizar a justiça e o direito (Dt 18,19). Mas, o texto de Pr 31,20 não está somente indicando que o mandamento de “abrir a mão ao pobre” (Dt 15,11) é fielmente praticado na casa. Este texto resgata a memória da torah, através da prática de uma mulher, fazendo uma proposta de solidariedade como saída concreta para a situação do povo naquele complicado contexto do final do império persa.

Na recomendação que a mãe de Lemuel faz ao seu filho rei, para que “abra sua boca em favor do mudo, em defesa dos abandonados, julgando com justiça e defendendo o pobre e o indigente” (31,7-8), encontra-se um eco do discurso da sabedoria mulher de 8,15-16.20. Este tema é um dos elos que ligam a primeira e a última seções do livro dos Provérbios, ao mesmo tempo em que realiza a função de mostrar uma saída para a difícil situação social que se revela através de termos como “mudos”

~Leaii

’ilem, “todos os filhos de

abandono”

@Alx] yneB.-lK'

kol bene halop, “oprimido”

yni[

' ‘ani e “pobre”

!AyIb.a, ’ebion.

Entendo que o poema de Pr 31,1-9 foi escrito em uma época anterior ao final do império persa. Ele já era conhecido quando se realizou a edição do livro, tendo sido inserido na coletânea de Provérbios como uma conclusão para a obra, junto com Pr 31,10- 31. Pelos termos utilizados no poema de Pr 31,1-9 e pela temática que esse poema desenvolve, podemos inferir que no contexto que gerou o texto havia uma terrível situação de marginalidade social e de carência. Uma situação que se encontrava tanto na época da sua elaboração, quanto na época em que o texto foi editado. Estes conflitos sociais

deveriam ser enfrentados pelos governantes, responsáveis diretos pelo bem estar do povo. Mas, os governantes tinham outros interesses. Estavam preocupados em manter seus privilégios e em realizar a reorganização religiosa do povo de Judá, criando coesão interna através da insistência no monoteísmo e a partir de normas que estabelecem traços de identidade.

Por tudo isso, a questão social teve que ser enfrentada pela casa, que busca pequenas saídas para os problemas da marginalização, fome, insegurança e angústia. Na vida da casa, a busca de uma saída para a difícil situação é concretizada tanto através dos ensinamentos teóricos sobre a importância da justiça e do direito, como na prática da solidariedade. Justamente quando os governantes colocam a lei (Ne 8; Esd 7,26; 10,3), o templo (Ne 10,33.39-40; Esd 6,3s) e a raça (Ne 9,2; Esd 9,1-2; 10,11) como bases principais para a reorganização do povo, as famílias de Judá reagem, buscando aquilo que realmente importa: as relações de justiça e de solidariedade que sustentam a vida nas pequenas e desafiadoras situações do dia-a-dia das famílias e comunidades.

Uma outra função importante que transparece em Pr 1-9 e 31 é a busca da inclusão. No templo e na vida diária, as leis da pureza ritual excluíam pessoas do acesso a Deus (Lv 11-16). Sobretudo, as leis sobre parto, menstruação, hemorragias (Lv 12,1-8; 15,19-30) e lepra (13-14), que tornavam as pessoas contaminadoras de impureza. Estas leis acrescentam ainda mais dor ao sofrimento. Em vez de apontar saídas para as situações difíceis da vida, sobrecarregam as situações dolorosas com a exclusão e a solidão, que geram também sentimentos de inferioridade. Ferida pela dor da exclusão, a comunidade busca a inclusão.

Em Pr 1-9 e 31, encontramos uma proposta clara de participação de todas as pessoas. Mais que isso, todos são convidadas a participar (Pr 9,4-5), sem nenhuma condição de rito purificatório, mas somente lhes é pedido que deixem a ingenuidade (Pr 9,6) e que escutem (8,32). Estas são condições necessárias para adquirir sabedoria. Portanto, os sábios não serão mais uma elite privilegiada, mas o povo dos pobres que está sendo convidado a entrar no caminho da sabedoria. Esta proposta de inclusão aparece claramente na abrangência dos destinatários dos poemas revelatórios da sabedoria mulher.

Ela se dirige “aos filhos de Adão”

~d"a' yneB.-la,

’el-bene ’adam (Pr 8,4): uma

expressão genérica e inclusiva. Outra proposta de inclusão aparece na transmissão do convite da sabedoria mulher para o seu banquete. Ela envia suas criadas para anunciar nos pontos altos da cidade (Pr 9,4). Ainda que esta expressão (pontos altos) possa sugerir ritos religiosos cananeus, a prática de transmitir mensagens em lugares elevados é conhecida em Israel (Is 13,12; 40,20). Esta prática tem a finalidade de fazer com que a mensagem que está sendo transmitida seja recebida por todas as pessoas. Portanto, o convite que faz a sabedoria não é seletivo, mas aberto e inclusivo.

Depois de dirigir-se a todas as pessoas, ela menciona especialmente os “simples”

~yIåat'p.

peta‘yim e os “néscios”

~yliysik.

kesilim (Pr 8,5). Ao convidar o néscio para que seja sábio, a sabedoria mulher introduz uma proposta de relação nova com estas pessoas, geralmente desprezadas e excluídas por causa de seu comportamento. No interior do livro dos Provérbios, encontramos a afirmação de que é inútil ensinar alguma coisa ao néscio, pois este é incapaz de aprender e mudar (14,24; 17,10.16; 23,9; 26,11).422 Há, claramente, um preconceito em relação a estas pessoas. Inclusive, recomenda-se não falar com elas (23,9), usando comparações muito repugnantes (26,11). Certamente, os néscios e insensatos eram excluídos dos círculos sapienciais, já que estes termos se opõem aos sábios e prudentes. Mas, no banquete da sabedoria mulher, eles são os principais convidados.

Segundo Hans G. Kippenberg, “se um grupo de parentesco se encontra em transição para sociedade hierárquica, então haverá na aristocracia inclinação a excluir e no povo pobre a de incluir”423. Se isto é comprovado, podemos situar o grupo que elaborou estes poemas entre os pobres de Judá, já que fica muito patente a sua postura inclusiva. Desta maneira, a religião da casa apropria-se de um símbolo religioso que motiva para uma função social importante no contexto de empobrecimento e endividamento das famílias de Judá.

422 Confira M. Sæ bø, kesil, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.1, col.1144-1147.

Se, nesta época, a casa e a família são o referencial básico de reflexão e de ação, fica ainda mais clara a participação da mulher nestes textos. Uma participação que tem suas raízes na vida diária. Não é um padrão, um ideal de mulher que se propõe no poema de Pr 31,10-31. É uma realidade que se descreve, sendo aqui apresentada como um horizonte que se abre, uma pequena saída para situações desafiadoras, aparentemente sem saídas. Como já foi mencionado, houve participação concreta de mulheres na reconstrução dos muros da cidade de Jerusalém (Ne 3,12) e na história do povo (Rute). Tanto em Pr 9,1-6, como em Pr 31,10-31 a mulher sábia constrói sua casa, organizando-a de maneira inclusiva e solidária. Nestes textos, a atuação das mulheres não se limita ao espaço das relações familiares e aos trabalhos próprios de uma dona de casa. Sua atuação se estende ao espaço público, chegando a ser reconhecid a e louvada na porta da cidade.

Como já foi mencionado, esta posição inédita das mulheres no período pós-exílico reflete-se na elaboração dos textos da época, através do esforço para incluir homens e mulheres, filhos e filhas, etc. A repetição de termos, como “casa dela”, “casa da mãe” e o uso de verbos e seus complementos em feminino (Rute, Pr 1-9 e 31; Cântico dos Cânticos), além das belíssimas imagens femininas usadas por Is 40-66 para falar sobre o Deus de Israel desvelam uma realidade nova. E uma característica principal desta novidade é o reconhecimento e a visibilização da efetiva participação das mulheres na defesa da vida do povo e na reconstrução das relações feridas. Algo que, certamente, esteve sempre presente na história do povo de Israel, mas que a maioria dos textos oficiais deixam na invisibilidade.

Depois da destruição de Jerusalém, em 587 a.C., a casa passou a assumir as funções de monarquia e de templo. Segundo Silvia Schroer, “isto teve conseqüências radicais”424 na mudança da visão que o povo tinha de Deus. Se o esforço da reforma deuteronomista foi centralizar o culto de Javé no templo de Jerusalém, a não existência do templo esvaziou de certa forma o seu discurso. Tanto para os remanescentes de Judá, como para alguns grupos que se uniram a estes remanescentes, sobretudo no campo, a relação com Deus passa a ser muito mais próxima. Esta relação nova transparece nas imagens femininas que são

utilizadas para falar sobre Deus neste período.425 Elas indicam que houve uma aproximação

muito grande nas relações das pessoas com seu Deus, já que estas imagens apresentam traços de ternura, carinho e prazerosa convivência (Pr 8,30-31). São imagens tão simples e próximas que surpreendem.

É neste contexto que os poemas de Pr 1-9 e 31 contêm uma proposta de organização social, através da partilha. Essa proposta transparece tanto no convite da sabedoria mulher para a participação gratuita em seu banquete (Pr 9,1-6) como na partilha da ’exet hayil com pobres e necessitados (Pr 31,20). Outra evidência desta proposta encontra-se na antítese entre a sabedoria mulher (9,1-6) e a mulher insensata (9,13-18). Enquanto a sabedoria mulher convida a todos para que venham participar gratuitamente do alimento que preparou (9,5), a mulher insensata convida para “beber água roubada e comer pão escondido” (Pr 9,17-18). Embora o sentido deste convite tenha seu aspecto moral, a imagem utilizada chama a atenção para a realidade social. Mesmo que o convite contenha um lembrete sobre o perigo de relações sexuais clandestinas com a mulher alheia, pois estas fatalmente conduzem à morte, a metáfora utilizada para representar o convite é tirada da vida, desvelando uma situação social bastante conhecida de roubo e de não partilha.

Desta maneira, os poemas de Pr 1,20-23; 8; 9 e 31 desvelam a liderança e autoridade das mulheres, numa época em que o governo sacerdotal não conseguiu centralizar a organização do povo, sobretudo no interior de Judá. A ausência da liderança estatal possibilitou um crescimento da organização da casa, onde naturalmente as mulheres tinham um papel muito importante. E não somente mostram que há uma liderança que se move, que conquista espaços, que transmite ensinamentos importantes para a vida. Estes textos propõem, a partir da casa, a superação de posturas disc riminadoras e propõem a inclusão e a solidariedade que fortalece o povo, recriando as relações básicas para a construção da comunidade. Relações novas, baseadas no respeito às diferenças e na luta pela justiça.

Conclusão

Comunicar algo através de um símbolo é como abrir uma janela e convidar outras pessoas para que venham contemplar a paisagem através deste novo ângulo. O símbolo da sabedoria mulher é, antes de tudo, um convite para descobrir a nova visão da vida, de Deus, da mulher e da história que se desvela em um momento tão conturbado da história de Israel. É a partir das experiências da casa, e especialmente da mulher, que este instigante símbolo é elaborado, no período do pós-exílio. A aproximação entre o símbolo da sabedoria mulher de Pr 1,20-23; 8 e 9 e a mulher da vida real de Pr 31 mostrou as raízes de onde brotou este símbolo e evidenciou a ligação entre os dois textos (Pr 1-9 e 31). A pesquisa feita me permite afirmar que a primeira e a última seções de Provérbios formam uma moldura, possib ilitando ao leitor e à leitora obter uma nova visão sobre a mulher em todo o livro.

Os estudos apresentados nesse capítulo mostram, ainda, que há em Pr 1-9 e 31 um duplo movimento entre símbolo e realidade, que se inspiram mutuamente e conspiram para uma transformação religiosa e social, no âmbito da casa interiorana de Judá, no período persa. Por um lado, a mulher sábia e competente da vida real inspira o poeta e leva-o a formular de maneira totalmente nova seu discurso sobre Deus, a criação, a mulher. Por outro lado, este novo discurso, esta visão nova, tem poder para inspirar e transformar as relações excludentes que existem na realidade, abrindo novas possibilidades de intercâmbio entre as pessoas nas relações cotidianas da casa. Se o símbolo se inspira na luta e no trabalho competente das mulheres no pós-exílio, ele também dirige o olhar de quem o apreende para a nova visão que está sendo apresentada através dele.

As ligações textuais entre a primeira e a última seções do livro dos Provérbios desvelam uma grande valorização da mulher e sua proximidade com Deus, ao apresentá-la com o poder de oferecer a vida (8,35; 9,6a) e de cuidá- la (31). Um poder próprio da divindade. Além de oferecer vida, a mulher tem a função de transmitir os valores éticos fundamentais para as relações cotidianas (1,8; 6,20; 31,2-9.26). Este aspecto transparece, de

modo especial, na apresentação da sabedoria mulher como promotora da justiça (8, 8.15- 16.20) e na visão da mulher sensível ao sofrimento dos outros (31,6) e solidária com as pessoas carentes (31,7-9.20). Esta postura da mulher “que abre sua mão ao pobre e ajuda o indigente” (Pr 31,20; Dt 15,11) revela sua fidelidade a torah e atesta sua capacidade para transmiti-la (1,8; 6,20; 31,26).

Os poemas sobre a sabedoria mulher (1,20-23; 8 e 9) surpreendem porque apresentam algo de inédito na literatura bíblica. Esta inédita apresentação da mulher que tem suas raízes tanto na mulher do presente, que participa corajosamente na reconstrução da vida e das relações da comunidade, no conturbado período persa, quanto na memória histórica das mulheres sábias (1Sm 25,23-31; 2Sm 14,16-22; 2Sm 20,16-22) e profetisas (Ne 6,14) que enfrentaram com decisão e coragem situações difíceis da vida do povo bíblico e que participaram ativamente na reconstrução das muralhas da cidade de Jerusalém (Ne 3,12). A origem desta inédita visão também pode ser procurada na época do cativeiro, quando grande parte do povo de Jerusalém foi levada para a Babilônia. Em terra estrangeira, tomaram consciência de que tinham perdido tudo, sobrando-lhes apenas como único espaço autônomo as relações familiares de mãe, pai, irmão e irmã. Embora este fosse um pequenino espaço, os discípulos e discípulas de Isaías descobriram que a partir daí poderiam reconstruir a vida e a história do povo (Is 40-66). Mais tarde, na época da dominação do templo, da raça e da observância da lei imposta pela liderança sacerdotal e pelos doutores, o movimento da sabedoria mulher vai situar-se nesse pequeno espaço. Não é um espaço oficial, nem é um espaço reconhecido, mas tem uma influência direta nas relações imediatas familiares e clânicas.

A função dinâmica da linguagem simbólica, que coloca em movimento a imaginação, permite-nos acompanhar o movimento das mulheres nos espaços privados e públicos de sua época. Assim como a sabedoria mulher anuncia sua mensagem nas ruas, praças, mercados e porta da cidade (Pr 1,20-22; 8,1-3), as mulheres da vida real influenciam nestes espaços diretamente, através de suas ações e, indiretamente, através dos seus ensinamentos e das suas obras (31,2-9.20). É por suas ações que a “mulher de força” recebe o reconhecimento dos seus filhos e seu marido (31,28-29) e a louvação do povo nas

portas da cidade (31,31). Esta é uma forma de ocupação dos espaços públicos e privados. Ela é uma demonstração da grande mudança cultural e religiosa que aconteceu em Judá, no período pós-exílico. Um exemplo concreto desta mudança é a participação das mulheres na reconstrução das muralhas de Jerusalém (Ne 3,12). Outro exemplo importante, encontra-se no livro de Rute, que narra a participação efetiva de mulheres (Rute e Noemi) na defesa dos direitos dos pobres. Mulheres que se unem para lutar pelo seu próprio futuro, da sua família e do seu povo. A postura corajosa de Noadias (Ne 6,14), que se opõe ao projeto de excludente de reconstrução realizado por Neemias, é outro exemplo da ocupação de espaços públicos pelas mulheres de Judá, na época persa. Estes são apenas alguns dos exemplos que o texto registra. Eles nos permitem vislumbrar a mudança cultural e religiosa que está acontecendo em Judá, nesta época. Mudança cultural que transparece também na preocupação de dar visibilidade às mulheres nos relatos do pós-exílio (Rt 2 e 3; Is 43,6; Ne 5,1-2; 8,3). Uma mudança que se inicia quando a casa começa a exercer as funções que eram próprias do palácio e do templo, na época da monarquia. Com a destruição do estado, a organização da vida e da religião passa a ser função principal da casa, em Judá. É na casa que se realizam os ritos mais importantes que mantêm a memória histórica e a identidade do povo judaíta; é na casa que se re-elaboram os símbolos e os discursos religiosos com a finalidade de obter a inspiração e a força necessárias para garantir o futuro do povo.

Uma das características mais importantes da religião da casa é a sua visão de Deus. Através de imagens tiradas da vida real, sobretudo, da imagem da mãe cheia de ternura (Is 49,15; 66,12b-13), a religião da casa elabora um novo discurso sobre Deus, apresentando-o próximo, presente nas relações cotidianas e, ao mesmo tempo, princípio de vida e criador do universo, como transparece em Pr 8,22-31. O símbolo da sabedoria mulher que é usado para formular este novo discurso teológico carrega a memória de Deusas cultuadas em ritos