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A raiz desta mudança cultural e religiosa encontra-se no pós-exílio remoto, quando a casa - a família estendida - torna-se não somente uma unidade social fundamental que assegura a sobrevivência, mas transforma-se, também, em espaço cultual. O culto que, no tempo da monarquia, estava centralizado no palácio e no templo do Deus nacional foi

transferido, nesta época, para a esfera caseira. A discussão do profeta Jeremias com as mulheres e os homens no exílio do Egito (Jr 44) mostra uma resistência ao fato de Javé ter ocupado o espaço da religião da casa. Na discussão com Jeremias, as mulheres tomam a palavra para dizer que o culto à Rainha do Céu não é clandestino e sim assumido por toda a família, inclusive por seus maridos (Jr 44,19).385 Este texto torna visível uma prática que não era somente realizada entre os exilados do Egito. Na reação da assembléia à palavra de Jeremias em nome de Javé, homens e mulheres afirmam que continuarão a oferecer incenso à Rainha do Céu e a fazer- lhe libações como o faziam seus antepassados nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém (Jr 44,17). Isto indica que durante a monarquia este culto à Rainha do Céu foi praticado em Jerusalém. A motivação para esta prática encontra-se no final do texto citado: “tínhamos, então, fartura de pão, éramos felizes e não víamos a desgraça” (Jr 44,17c).

Mas, no contexto de Pr 1-9, cerca de 250 anos depois, não se encontra somente um movimento que re-elabora símbolos religiosos a partir da casa, com a mesma motivação de obter a força necessária para garantir a vida. Há uma participação muito concreta das mulheres na luta pela vida, no final do período persa. Elas se inspiram na memória das mulheres que contribuíram para a reconstrução da cidade e se empenharam pela realização da justiça, como aquelas mulheres que em Ne 5,1-5 lutaram pela manutenção da posse da terra e protestaram contra a escravidão dos seus filhos e filhas por causa de dívidas. Elas se sentiram responsáveis, tanto quanto seus maridos, pela integridade e dignidade de suas filhas e filhos. Outro motivo de inspiração para estas mulheres era a memória daquela que após o retorno do exílio tiveram uma participação importante na reconstrução de casas e cidades, como já foi mencionado anteriormente (Ne 3,12). Como assinalamos no item anterior, esse texto mencio na claramente que as filhas de Selum estavam participando da construção do muro em Jerusalém. Mas, os motivos de inspiração para a luta das mulheres, no pós-exílio tardio, não se encontrava apenas na memória mais recente de mulheres que enfrentaram o exílio e a etapa de reconstrução da cidade e da muralha de Jerusalém. Elas se inspiravam ainda na memória de mulheres fortes que construíram a história do povo

385 Sabemos que houve várias comunidades judaítas no Egito. Uma das mais conhecidas era a comunidade de Elefantina, uma das ilhas do rio Nilo, em frente de Assuã. Esta comunidade remonta-se ao começo do século 6 a.C. Nela foi construído um templo semelhante ao de Jerusalém, no século 2 a.C. (1Mc 10,20).

bíblico, como Lia e Raquel (Gn 35,23-26; Rt 4,11), Miriam (Nm 26,59; Ex 15,20-21), Tamar (Gn 38), Débora (Jz 4-5) e tantas outras mulheres cujas histórias eram contadas com emoção nos momentos em que elas se reuniam para descansar e inspirar-se mutuamente.

Essa atuação decidida das mulheres está por trás do capítulo 31 dos Provérbios, onde se encontra o louvor da mulher israelita forte e valente que dirige sua casa (Pr 31,15.21.27). É muito importante perceber esta relação, pois um mesmo contexto está por trás de Pr 1-9 e 31. Um desafiador contexto que gera uma experiência nova de Deus e da vida. Esta experiência nova se expressa através de uma linguagem simbólica muito elaborada, de maneira especial nos poemas sobre a sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9). Considero importante ressaltar mais uma vez que este símbolo nasce da vida concreta e da luta das mulheres sábias e valentes do pós-exílio. Tanto daquelas que se levantaram para exigir o reconhecimento dos seus direitos e da dignidade de seus filhos e filhas (Ne 5,1-5), como das que conquistaram respeito e autonomia pela sua competência na administração da sua casa e dos seus negócios. Assim, mulheres da vida real transparecem nos dois poemas do cap.31 de Provérbios e inspiram a elaboração simbólica e teológica dos poemas da sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9.

Para obter uma visão mais aproximada da mulher da vida real no período pós- exílico, interessa- me ampliar a relação intertextual para alcançar uma compreensão maior sobre a religião da casa, ou sobre as novas experiências religiosas expressas em textos do pós-exílio. Neste contexto de caos, gerado pelas contínuas guerras, dominação estrangeira e divisões internas, as imagens de Deus apresentadas em Is 40-66 estão relacionadas a uma nova criação (Is 42,5-9) e um novo êxodo (Is 43,16-21; 46,3-4; 63,9), ainda mais surpreendente que o primeiro. Essas comunidades proféticas demonstram uma experiência de Deus a partir das vivências cotidianas na casa, de onde retiram as metáforas para seus discursos teológicos. Assim, em Is 49,15, Deus é como a mãe que não se esquece nunca do fruto do seu ventre. A imagem da mãe para falar sobre Deus no contexto do pós-exílio é carregada de ternura em Is 66,12b. Além dos sentimentos de ternura que comunica, esse texto apresenta aspectos de costumes cotidianos da mulher em sua relação com a criança, apresentando o Deus de Israel como “a mãe que amamenta o filho, carrega-o sobre suas

ancas e o acaricia em seu colo”. Esta imagem de Deus como mãe desvela tanto uma relação pessoal mais próxima e cotidiana com a divindade, como uma relação nova entre as pessoas da comunidade. Parece que as experiências pessoais de sofrimento e abandono tornam as pessoas mais sensíveis e humanas. Estou consciente de que essa observação pode conter uma ambigüidade, já que valorizaria o sofrimento. Mas, sem generalizar a descoberta de que há situações em que a sabedoria nasce da dor, suponho que as situações refletidas pela comunidade de discípulos e discípulas de Isaías proporcionam- lhes um grande amadurecimento que se expressa na simplicidade e profundidade da sua linguagem simbólica. O processo de aprofundamento que realizam leva -os a experimentar Deus muito perto, consolando carinhosamente seu povo (Is 40,1-2). A experiência cresce, aprofunda-se a partir da observação das relações que sustentam a vida na casa. No final do livro, a comunidade assegura que o Deus de Israel é como mãe que consola o povo no seu sofrimento (Is 66,13).386

Essas não são as únicas imagens femininas de Deus na Bíblia. Mas, elas chamam a atenção para experiências cotidianas, vivenciadas nas relações significativas que acontecem na família. Também chama a atenção o uso destas imagens femininas para falar de Javé em um discurso profético que exclui a existência de outros Deuses (Is 41, 24.29; 43,11-13; 44,6-20; 57,3-9). Parece contraditório! Silvia Schroer comenta que “o monoteísmo destes movimentos é patriarcal, mas não no sentido de fazer confronto contra as mulheres ou contra as imagens femininas de Deus”387.

Mas, os discípulos e discípulas de Isaías vão muito além de usar metáforas da mulher para falar sobre Deus. Essa comunidade profética elabora uma teologia que nada tem a ver com o templo e o culto sacerdotal a ele ligado. O lugar teológico mais importante para esta comunidade é junto aos abatidos e humildes, para animá-los e reconfortá- los (Is 57,15). Isso significa que a comunidade geradora deste texto aprofundou a visão de um

386 Para um aprofundamento sobre o contexto sócio-econômico da comunidade dos discípulos de Isaías, leia Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita – Sua história e ideologia, Macapá: S. Gallazzi, 2002, p.34-36. Para avaliar a contribuição do Dêutero-Isaías na formação de uma nova espiritualidade inclusiva e aberta, leia Carlos Mesters, A missão do povo que sofre – Os cânticos de servo de Deus no livro de Isaías, Petrópolis/Angra dos Reis: Vozes/CEBI, 1981, 194p.

Deus próximo dos pobres e compreende que seu culto consiste, sobretudo, na prática da justiça (Is 58). Se houver necessidade de sacerdotes, os humilhados e sofridos é que “serão chamados sacerdotes de Javé” (Is 61,6-7).

Certamente, esta não foi exatamente a comunidade que gerou Pr 1-9 e 31. Mas, como já mencionamos no capítulo 2 desta tese, há uma proximidade teológica entre a profecia e a sabedoria destes textos. Sobretudo na linguagem profética de Pr 1,20-23 e na insistência destes textos quanto à prática da justiça (Pr 8,15-16.20; 31,5-9.20). Além disso, a descrição feita pela comunidade de discípulos de Isaías sobre a situação da sua época tem uma linguagem bastante similar à da sabedoria de Provérbios (Is 57; Pr 1,10-19): “reinam a injustiça e a exploração; um tira do outro a existência; na mesma família existem ricos e pobres”. Observo, ainda, que Pr 1,16 repete literalmente uma frase que se encontra em Is 59,7: “os seus pés correm para o mal; eles se apressam a derramar sangue inocente”388.

Portanto, embora os textos de Is 40-66 sejam de uma época anterior à de Pr 1-9 e 31, eles descrevem aspectos teológicos e contextuais que mostram para nós algumas características da religião da casa, no pós-exílio. A visão que estes textos nos transmitem sobre Deus e sobre as relações na casa indicam que esta não era uma religião opressora, usada para manter o controle e para dar sustentação aos interesses de um grupo da elite. Além disso, o poema de Pr 8,22-31 deixa entrever uma religião lúdica e alegre que cultuava a hokmah artista do universo. No entanto, nos textos de Pr 1-9 não transparece nenhuma dificuldade em relação ao culto da hokmah e nem apresenta uma rivalidade entre este culto e o de Javé. Isto indica que a religião da casa era fiel às tradições sobre as experiências de Deus que congregaram o povo bíblico, criando coesão entre diferentes grupos de oprimidos. Além de manter-se fiel às tradições de Israel, a religião da casa tinha uma visão bem humorada da divindade, experimentando-a muito próxima, pois afirma que “ela se deliciava na sua relação com a humanidade” (Pr 8,31).

Assim, com os pés firmes no chão da vida diária, a casa e as comunidades de Judá mantinham a consciência serena frente à legislação monárquica (Deuteronômio e

388 Cito este verso, embora não se encontre nos melhores manuscritos gregos e geralmente seja considerado uma glosa tirada de Is 59,7. Veja Bíblia de Jerusalém, p.1118, nota b.

Crônicas) e sacerdotal (Levítico). Segundo Elisabeth Schüssler Fiorenza, “os cânones formais da lei patriarcal codificada são, geralmente, mais restritivos que a interação e a relação real das mulheres e dos homens com a realidade social, regulada por estes cânones. Ainda que no judaísmo rabínico as mulheres tenham sido associadas com as crianças e os escravos nas questões religiosas e legais, os relatos bíblicos que fazem referência às mulheres, mostram que na vida cotidiana elas não eram consideradas como de menoridade ou como escravas.”389 Pelo contrário, elas conquistam espaços de participação a partir da casa, onde se reelaboram símbolos religiosos que congregam e inspiram o povo de Judá no período pós-exílico. Além disso, a atuação das mulheres supera os limites da casa, interferindo com decisão no âmbito social (Ne 5,1-5), político (Ne 6,14) e religioso (Pr 8,30-31).

Os textos de Is 40-66 e de Pr 1-9 e 31 demonstram que a religião da casa estava fundada nas tradições antigas de Israel, pois insistia na prática da justiça (Pr 8,20) e na defesa do direito dos pobres (31,7-9). Diante de uma situação de depressão, caos e miséria, ela apresentava uma visão bem humorada e relacional da divindade ao realizar a obra da criação (8,30-31). Desta maneira, a religião da casa inspirava confiança em relação ao futuro, resgatando aspectos importantes da história de Israel, sobretudo a memória da participação corajosa e criativa das mulheres, estabelecendo, no presente, relações novas entre as pessoas e com a divindade.