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O objeto da minha pesquisa é o símbolo da sabedoria mulher que se apresenta nos poemas didáticos de Pr 1,20-23; 8 e 9. Investigarei sobre os sentidos de tão instigante figura literária, buscando encontrar a mulher da vida real que se reflete no símbolo da sabedoria mulher. É um exercício que supõe a comparação dos poemas que a ela se referem na seção 1-9, com os poemas da mulher sábia e forte da seção 31. Reconheço que uma grande dificuldade da pesquisa feminista sobre os poemas da sabedoria mulher de Pr 1-9, relaciona-se à suspeita de que ela seja uma imagem de domesticação das Deusas fortes do Antigo Oriente. Tal suspeita se estende aos textos androcêntricos da Bíb lia porque não dizem toda a verdade sobre esta figura. “Uma suspeita que tem suas razões”, comenta Silvia Schroer.120

Estas suspeitas não se limitam, portanto, ao sentido do símbolo da sabedoria mulher, mas se estendem a outros textos bíblicos. Muitas são as mulheres que criticam o poema sobre a mulher forte de Pr 31,10-31, por ver neste poema uma expressão da exigência do modelo patriarcal para a vida das mulheres, no período pós-exílico. Para Mercedes Navarro Puerto, em Pr 31 aparece o “ideal da esposa dedicada ao trabalho e à economia doméstica, fechada em sua casa, devota do marido, aos filhos e a toda a família patriarcal, não se permitindo um momento para o prazer, porque o tempo deve ser ocupado em tarefas úteis e produtivas”121. A mesma autora continua sua critica afirmando que “segundo Pr 31, o corpo

da mulher vai se associando a valores como o trabalho, o esforço e a dedicação à casa patriarcal, enquanto o resto das possibilidades corporais das mulheres, que evocam a sedução, vai ficando do lado da negatividade moral”122.

Mercedes Navarro Puerto faz também uma relação antitética entre a mulher de Pr 31 e a mulher estrangeira de Pr 7, chamando a atenção para o julgamento desvalorizador da graça como “enganadora” e da formosura como “vã”, opondo-as à mulher que teme o Senhor que é elevada pelo êxito do seu trabalho e louvada por suas obras.123

Estas observações sobre a mulher forte de Pr 31,10-31 são muito comuns, na atualidade. Elas demonstram, por um lado, a sensibilidade das mulheres para a questão da dominação e exploração do sistema patriarcal em relação ao corpo das mulheres. Por outro lado, demonstram a dificuldade de se fazer uma aproximação ao texto, dentro do seu contexto histórico e cultural, para descobrir se ele expressa uma realidade de opressão ou uma novidade em relação à autonomia econômica das mulheres do seu tempo.

Mas, além da indignação que estes textos de Provérbios causam às mulheres sensibilizadas pelo problema da dominação e exploração dos corpos e do trabalho feminino, encontramos também comentários de biblistas que expressam uma visão

121 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, em Para comprender el cuerpo de la mujer – Una perspectiva bíblica y ética, Estella: Verbo Divino, 1996, p.167.

122 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, p.167.

123 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, p.168.

contaminada por velhos preconceitos em relação às mulheres. Um exemplo desta visão encontra-se no texto de Ernesto Lussier, que comenta a antítese entre o banquete da sabedoria mulher (9,1-6) e o banquete da mulher insensata (9,13-18). Segundo esse autor, a figura da mulher insensata “tem suas raízes no caráter clandestino dos pecados sexuais que predominam no contexto, ainda que não de forma exclusiva. Ela sugere com falsidade algo especial e misterioso (9,17). Mais uma vez, volta-se a repetir que seus atrativos são mortais (v.18)”124. O autor se refere a uma repetição sobre os atrativos da mulher estranha ou estrangeira no interior da primeira seção do livro dos Provérbios (1-9). É interessante observar que este autor não se pergunta se este texto seria uma reação do escritor ou da comunidade contra a conquista de novos espaços de autonomia e de atuação pelas mulheres do pós-exílio.

Uma investigação mais profunda sobre esta mulher de Pr 9,13-18 teria que ser feita a partir de perguntas que levem a uma comparação entre os diferentes termos usados para referir-se à mulher da sombra – a estranha ou estrangeira. Este é o caminho percorrido por Judith McKinlay. Ela observa que “a contraparte da sabedoria, a mulher mortal que é apresentada no duplo poema de Provérbios 9, parece ser evitada também em outros poemas e instruções”125 e se pergunta se esta figura é sempre única e a mesma, já que existem variações quanto à terminologia utilizada, em Pr 1-9, para refe rir-se à mulher que conduz à morte.

Embora este tema da mulher insensata não seja diretamente o objeto da minha pesquisa, ele tem a ver com a mulher da vida real e com o contexto de Pr 1-9. Portanto, estarei atenta a este tema durante meu estudo e anotarei as observações que considerar importantes para uma compreensão mais aproximada da situação da mulher que está por trás destes textos.

Continuando com as dificuldades encontradas na interpretação de Pr 1-9 e as questões levantadas sobre o símbolo da sabedoria mulher, recolho outra pergunta de Judith

124 Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico – Introducción y comentario, p.28. 125 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996, p.71, (Journal for the Study of the Old Testament 4).

McKinlay: “O ponto aqui é que a metáfora da Sabedoria encontra seu lugar ao lado de muitas outras metáforas antropomórficas usadas para falar sobre Deus. A questão de interesse para este estudo não é tanto por que os escritos bíblicos falam metaforicamente da sabedoria de Javé em termos humanos, mas por que eles deveriam falar em termos da mulher, especialmente tendo em conta o fato de que a maioria das imagens bíblicas antropomórficas para a divindade é masculina ou de orientação masculina. A questão associada é como a mulher é entendida. Qual foi a associação com a mulher que trouxe tal construção semântica, na cultura israelita, e que visão representava?”126.

Ao formular uma pergunta já estamos avançando na perspectiva da solução e, certamente, vão aparecer novas perguntas que levam a avançar sempre mais na busca das respostas. As críticas e questões formuladas por Silvia Schroer oferecem pistas para uma investigação séria sobre o sentido da sabedoria mulher em Provérbios. Ela afirma que “é insuficiente explicar a feminilidade de uma figura tão central com o simples fato de que

hokmah na língua hebraica é feminina e que a língua hebraica tem preferência por

personificações femininas. É insuficiente também desvelar a herança das Deusas que tem a

hokmah, sem responder à pergunta: o que afinal ela significava para as pessoas, em Israel,

ou por que era possível que um símbolo tão semelhante com as Deusas e, símbolo feminino, pudesse aparecer em proximidade imediata deJavé?”127.

“O significado de mulher na personificação da sabedoria é uma chave importante para uma compreensão certa. Somente neste caminho vamos encontrar uma explicação sobre porque somente no tempo do pós-exílio a herança das Deusas do Antigo Oriente tiveram uma recepção sem polêmica, enquanto essas Deusas, em grande parte, na literatura bíblica foram demonizadas e substituídas até o exílio.”128

Ao iniciar este item, defini claramente o objeto da minha pesquisa e a decisão de buscar a situação concreta das mulheres que se reflete no símbolo da sabedoria mulher de

126 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.42. 127 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.154 128 Silvia Schroer. “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.155.

Pr 1-9. A observação de alguns enfoques, contaminados por visões prefixadas sobre a realidade que se oculta por trás deste texto, contribuiu para que me colocasse de sobreaviso em relação às ciladas que podem impedir minha aproximação do contexto de Pr 1-9 e 31. Da mesma maneira, as perguntas formuladas por algumas autoras despertam meu sentido crítico e desafiam- me a fazer outras perguntas que possam conduzir-me a uma análise mais profunda a respeito do símbolo da sabedoria mulher no livro dos Provérbios. Esta busca não pode ser realizada sem uma indagação séria sobre a situação da mulher neste período e os significados que a mulher apresenta nestes textos. Além disso, ao examinar as ligações existentes entre as imagens das mulheres e as imagens de Deus em textos de Provérbios, estarei desvelando aspectos importantes do imaginário simbólico do período persa e possibilitando uma visão mais ampla da religião, em Judá, naquela época.

Conclusão

Ao iniciar este capítulo, retomei o objeto, a opção metodológica e a perspectiva da minha pesquisa, ainda que de forma resumida. Em seguida, recolhi diferentes opiniões sobre o símbolo da sabedoria mulher no livro dos Provérbios e em outros textos bíblicos, citando autores e autoras. Para alguns, este símbolo inspira-se em Maat, Deusa egípcia da justiça, da verdade e do amor. Para outros, o símbolo da sabedoria mulher lembra Aserá, uma Deusa que chegou a ser cultuada em Israel como parceira de Javé. Há autores que interpretam a sabedoria mulher como uma hipóstase, uma terminologia teológica que significa pessoa, concluindo que ela é o plano mestre que Deus idealizara ao criar o mundo; a força divina e criativa que origina e continua a permear o cosmos. Outros autores rejeitam a idéia de hipóstase e interpretam o símbolo da sabedoria mulher como personificação, isto é, como simples figura literária, embora reconhecendo sua contínua capacidade de atração. A sabedoria mulher é vista também como símbolos da definição dos limites dentro dos quais os homens têm que fazer suas escolhas. Esta definição está diretamente relacionada

ao texto de Pr 9, onde ela é apresentada como uma antítese da mulher insensata. Finalmente, o símbolo da sabedoria mulher é compreendid o como uma expressão do fortalecimento da casa, da família e da mulher, no período pós-exílico. A elaboração deste símbolo foi mediatizada pela linguagem das Deusas que provém de antigas tradições e práticas religiosas, em Israel. Porém, os editores de Pro vérbios confrontaram estes poemas, que apresentam o símbolo da sabedoria mulher, com a situação histórica e religiosa de Judá e realizaram um cuidadoso trabalho literário que possibilitou sua aceitação e manteve escondida a identidade deste símbolo.

O debate entre diferentes autores evidenciou que a fonte principal da sabedoria bíblica é a casa ou o clã. Ela nasce da luta diária pela vida, da observação e reflexão sobre os acontecimentos, apresentando uma visão unificada do mundo, sem fazer distinção entre sagrado e profano. No processo de desenvolvimento da sabedoria de Israel, esta foi sendo enriquecida através do diálogo com outros povos. As diásporas, o comércio e os casamentos possibilitaram este intercâmbio. Com a monarquia, organiza-se a sabedoria da corte que, além de oferecer assessoria aos reis, compilou muitos materiais que provinham da vida das famílias e comunidades. Ao mesmo tempo, busca elaborar conhecimentos importantes para a formação dos jovens e a organização política e social do povo bíb lico. Este processo continua depois do exílio, através das escolas de sábios.

É importante ressaltar, aqui, o aspecto de interculturalidade da Bíblia, que se evidencia através dessa leitura comparativa dos estudos sobre as fontes da sabedoria bíblica, da qual é uma especial testemunha. A rica e variada tradição sapiencial foi sendo tecida pelas experiências vividas e transmitidas na casa, nas comunidades, na corte e nas escolas de sábios. Um processo longo, que gerou uma variedade de materiais e possibilitou a criação de novos símbolos. É, desta maneira, que no final do período persa surge o atraente símbolo da sabedoria mulher.

Quanto à época da elaboração das seções de Pr 1-9 e 31 e da edição do livro, o debate entre autores e autoras apresentou um grande consenso. De um modo geral, há consenso sobre o final do império persa como a época mais provável para a elaboração da

primeira (Pr 1-9) e da última (Pr 31) seções do livro. Os argumentos para esta datação são de cunho literário e histórico social. Um argumento literário está relacionado ao livro de Ben Sira (190 a.C.). Este autor devia ter em mãos o livro dos Provérbios, pois a ele se referiu (Eclo 47,17) e também procurou corrigir aspectos que este livro apresentava sobre a sabedoria mulher (Eclo 24). Portanto, no início do século 2 a.C., o livro dos Provérbios já deveria ter uma difusão suficiente para poder causar esta reação de Ben Sira. Um argumento histórico social para a datação da primeira e última seções do livro e sua edição no final do período persa, relaciona-se à sua situação de enfraquecimento, ocasionada pelas prolongadas guerras contra os gregos e as sublevações de algumas satrapias. Este enfraquecimento do império, somado às divisões internas em Judá, possibilitaram uma nova forma de organização social, onde a mulher passa a ter um papel mais relevante. Desde a queda da monarquia e a destruição do templo (587 a.C.), houve uma grande mudança nos padrões sociais e sistemas de fé, em Judá. A casa passa a ser o verdadeiro espaço de organização e decisão sobre os caminhos para o futuro do povo. Neste espaço, as mulheres passam a exercer um papel muito importante na re-organização da vida e do tecido social. Uma cultura subterrânea de mulheres, associada a alguns círculos de profetas anônimos, passa a produzir materiais inéditos, entre eles, os belos poemas da sabedoria mulher.

Uma referência constante ao livro dos Provérbios e às diferentes seções que o compõem, levou- me a fazer uma resumida apresentação deste. No próprio texto de Provérbios, encontra-se repetida a referência de Salomão como seu autor. No entanto, a diversidade de procedência e de estilos dos materiais colecionados em Provérbios, demonstra que houve uma variedade de autores e uma ampla cronologia na elaboração desta obra. O livro está formado por oito seções provenientes de diferentes lugares e épocas. Inclui materiais egípcios129 e árabes130, além de símbolos cananitas. Estes materiais foram organizados de maneira diferente pelo texto massorético e pela Septuaginta, deixando uma pergunta sobre qual teria sido a forma original da sua organização. O longo

129 Como as “máximas de Amenemope”.

130 As citações de Agur (Pr 30,1) e Lemuel (Pr 31,1) podem indicar esta relação com a cultura árabe, embora estes nomes não se refiram a personagens reais. Há uma dificuldade de compreensão desses nomes na história de interpretação do livro dos Provérbios, sobretudo nas traduções para a Septuaginta e a Vulgata. Veja Bíblia

processo de elaboração do livro dos Provérbios demonstra o esforço e a persistência daqueles que compilaram este material rico e diversificado.

É, justamente, esta diversidade e riqueza de materiais que exige um cuidadoso trabalho interpretativo. As suspeitas e questões formuladas, sobretudo pelas intérpretes feministas, abrem perspectivas interessantes para minha pesquisa. Elas indicam que, para realizar uma séria investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios, é necessário perguntar sobre a associação desse símbolo com a mulher da vida real e observar qual a visão de mulher que este símbolo está representando. Supõe, ainda, uma indagação sobre o que este símbolo da sabedoria mulher significava para as pessoas, em Israel. Por que um símbolo tão semelhante às Deusas obteve aceitação na sua época? Estas perguntas apontam para o significado de mulher, em Judá, durante o período persa e também sobre a memória histórica das mulheres que o símbolo da sabedoria mulher evoca.

Capítulo 2