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No título desta tese, encontra-se a afirmação de que a sabedoria mulher de Pr 1-9 e a mulher sábia de Pr 31 se iluminam mutuamente, tornando-se motivos de co- inspiração.

371 Esta elaboração supõe a existência de materiais anteriores a esta data, seja em forma de hinos para rituais da casa ou em forma de provérbios.

Para que os sentidos destes textos sejam liberados e se possa perceber a mútua inspiração que suscitam, é necessário que se observe as relações literárias entre os dois. A atividade exegética realizada nos dois capítulos anteriores permite- me, agora, adentrar- me mais a este exercício para tornar mais evidente esta relação entre o símbolo da sabedoria mulher e a mulher da vida real. Esta atividade permitirá também que a realidade que subjace aos referidos textos torne -se mais transparente.

Inicialmente, quero relacionar estas duas figuras de mulheres através de comparações que indicam sua importância e também sua relação com a realidade. Em Pr 8,10, a sabedoria mulher afirma que o conhecimento oferecido por ela vale é valioso: “e conhecimento mais que o ouro puro”

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ve-da‘at meharoz nibehar.Melhor e mais valioso que o ouro puro é tamb ém o seu fruto, isto é, aquilo que ela realiza (8,19). Esta repetição de frases que mostram o valor da sabedoria mulher através de comparações com ouro e pedras preciosas aparece também em Pr 3,15 e 8,11, onde a sabedoria hokmah vale “mais que pérolas” ou “mais que pedras preciosas”

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mipeninim. Uma comparação idêntica encontra-se em Pr 31,10b, indicando o valor da

mulher da vida real, a mulher forte (31,10a) e sábia (31,26).

Um termo instigante é o plural majestático hokmot, que aparece duas vezes na primeira seção do livro (1,20 e 9,1). Usado com verbos e complementos em feminino singular, este termo em plural refere-se à sabedoria mulher e indica sua importância, colocando ao mesmo tempo uma pergunta sobre sua identidade. Para descobri- la, temos que observar as relações entre a hokmah/hokmot e a mulher da vida real de Pr 31. Algumas comparações utilizadas na descrição da mulher forte e sábia de Pr 31,10-31 buscam mostrar a sua importância e comunicar aspectos significativos sobre sua identidade: em 31,14, a

’exet hayil é comparada a uma “nave mercante”. Desde os tempos de Salomão, a nave

mercante tornou-se um símbolo de majestade e de abundância no imaginário simbólico de Israel (1Rs 9,26-28; 10,22). Mas, o poeta ultrapassa a simbologia que aponta para riqueza e poder. Em 31,25, esta mulher da vida real é descrita com uma expressão poética usada também para falar de Javé: “ela está vestida de força e dignidade” (Pr 31,25). A mesma expressão é usada pelo salmista ao referir-se a Javé, no Sl 104,1b: “meu Deus, te mostraste

grande, de poder e dignidade estás vestido”. Observa-se que, através dos termos e comparações citadas, transparece uma grande valorização da mulher e também se comunica uma visão da sua proximidade com Deus, nas duas seções de Provérbios (8,10.11.19 e 31,10.25.26). Mas, qual seria o motivo desta valorização?

Em Pr 8,35, encontramos a afirmação de que a sabedoria mulher é capaz de dar vida a quem a busca e a encontra. Ela mesma afirma: “quem me encontra, encontra a vida”. Vida é, também, o presente que ela oferece a quem aceitar o convite para seu banquete, deixando a ingenuidade e seguindo o caminho do conhecimento que conduz à sabedoria (9,4-6). Esta capacidade ou poder de dar vida e de ensinar o caminho da vida é atribuição da divindade (Gn 2,7; Dt 6,24b; 30,20; Esd 9,8; Sl 16,11). Mas, não haverá também na mulher da vida real uma participação neste poder? A ’exet hayil de Pr 31 promove a vida e o bem estar de todas as pessoas de sua casa (31,11-12.15.21). Na descrição desta mulher também transparece um poder que se manifesta na sua capacidade de organizar a economia (31,13.14.16) e a administração (31,21.24) da sua casa, sem descuidar da solidariedade para com as pessoas pobres e necessitadas (31,20).

Mas, a valorização da mulher pela sua capacidade de dar vida é um aspecto ambivalente do texto. Por um lado, a função de dar vida está encaixada na visão que o patriarcado tem sobre a mulher, muito ligada ao seu papel de mãe e esposa. Por outro, a coloca em uma situação de empoderame nto e de proximidade com Deus. É na sua ligação direta com a vida cotidiana, no cuidado para curá- la e reconstruí- la que está o seu poder. Ela é tão preciosa como a própria vida. Desta ligação diária da mulher com as situações vitais mais delicadas e, ao mesmo tempo fundamentais para a existência humana, extrai-se as comparações e os símbolos que permitem falar sobre a sabedoria mulher e sua proximidade com Deus.

Um outro aspecto que demonstra a importância da mulher em Pr 31 é sua função de instruir e de preparar para a vida. Esse papel de ensinar realiza mais um enlace entre os capítulos 1-9 e 31 de Provérbios. Na primeira e na última seções de Provérbios, encontra-se a mulher com a função de “instruir”. Segundo Alviero Nicacci, o gênero literário

dominante no livro dos Provérbios é a instrução, que se compõe de uma exortação ou admoestação. Para este autor, o sujeito da instrução era o mestre da sabedoria.372 Em Pr 1,8 encontramos a menção da mãe como aquela que instrui o seu filho: “não rejeites a instrução de tua mãe”. Uma frase literalmente repetida em Pr 6,20. Nestas duas citações, a função de instruir se realiza também na casa e não somente na escola de sábios. Os sábios tomam como base para seus ensinamentos a instrução feita na casa, recomendando aos jovens que acolham os ensinamentos recebidos do pai e da mãe. É interessante encontrar nestes textos a afirmação de que a mãe compartilha com o pai a função de ensinar e de instruir. Isto pode ser evidente na vida real, mas raramente é expresso em textos bíblicos. Porém, nos dois textos citados (Pr 1,8 e 6,20), nomeia-se o pai e a mãe como sujeitos da ação de ensinar, acrescentando que seu preceito e sua instrução devem ser guardados.

Na última seção (Pr 31), encontra-se a memória de uma correção que a mãe do rei Lemuel lhe fez, apresentando também o conteúdo desta correção (31,2-9). Chama a atenção que tal correção não seja moralizante, mesmo quando trata o tema da bebida. Seu enfoque é que cabe ao rei defender o direito dos fracos e realizar a justiça com pobres e necessitados. Em 31,26, há uma reiteração de que a mulher forte realiza a função de instruir e o faz com bondade. No entanto, não especifica os destinatários de sua instrução. Pode ser que, além dos filhos, os criados estejam também incluídos como receptores dos ensinamentos desta mulher. Desta forma, fica patente que o tema da instrução feita por mulheres é transversal aos dois poemas, entrelaçando-os através da visibilização da mãe como sábia formadora dos filhos (1,8; 6,20), do símbolo da sabedoria mulher que convida a todas as pessoas para que escutem seus ensinamentos (1,20-23; 8 e 9), da mulher sábia que instrui seu filho rei na prática da justiça (31,1-9) e da mulher forte, que além de administrar com muita competência sua casa (31,10-31), está capacitada para transmitir a torah (31,26).

Uma observação sobre os termos hebraicos utilizados para indicar a sabedoria da mulher pode ajudar- nos a ler estes textos com mais clareza e a perceber melhor a ligação entre Pr 1-9 e 31. Em 1,8; 6,20 e 31,26, encontramos o nome

hr''AT

torahque faz parte de uma série de conceitos empregados em relação à “sabedoria” em Provérbios, como:

mizvah em 3,1; 4,4; 6,20; 7,2, hokmah em 4,11; 31,26, musar em 1,8; 4,1; 6,23, binah em

4,1, dabar em 4,4, etc.373 A grande novidade não é somente a relação entre estes termos que formam um dos aspectos mais importantes do campo semântico de Pr 1-9 e 31, mas o que realmente chama a atenção é o uso de torah como atividade da mulher, tanto na primeira seção do livro dos Provérbios (1,8; 6,20), como na última (31,26). Além disso, o registro da “correção” feita pela mãe do rei Lemuel (31,1-9) é inédito. O verbo que indica a sua ação é “corrigir”

rsy

ysre o substantivo correspondente a este verbo é “correção” musar.374 Nos textos bíblicos, os sujeitos desta ação de corrigir são os pais, os mestres da sabedoria e também Deus (Dt 8,15), mas nosso texto torna visível uma realidade que normalmente uma cultura androcêntrica mantém oculta: a importante função da mãe na instrução e formação dos seus filhos, na transmissão das tradições religiosas e culturais e dos valores éticos fundamentais para a vida e as relações.

Por trás da apresentação da mulher sábia em Pr 1-9 e 31, encontra-se uma tradição de mulheres sábias que tiveram uma importante participação na história de Israel. Faz-se o resgate da memória de Abigail, que vai decididamente ao encontro de Davi, entrando em diálogo com ele e impedindo o massacre de sua casa (1Sm 25,23-31). Recorda-se a mulher habilidosa e sábia de Técua, que se apresenta diante de Davi para interceder pela vida de Absalão (2Sm 14,16-22). Lembra, também, a mulher anônima, cheia de coragem e sabedoria, que confronta o general Joab e impede o massacre da cidade de Abel- Bet-Maaca (2Sm 20,16-22). Mesmo sem mencionar seus nomes, o símbolo da sabedoria mulher resgata a memória histórica dessas e de outras mulheres, cuja sabedoria foi colocada a serviço da vida do povo. É esta participação bem concreta das mulheres na histórica do povo que leva o símbolo da sabedoria mulher a encontrar aceitação e poder realizar sua função no período pós-exílio.

Vale a pena ressaltar que estes registros da historiografia bíblica são como a ponta de um iceberg que indica uma realidade muito mais ampla e profunda, escondida dentro do

373 Veja mais dados sobre este tema em G. Liedke e C. Petersen, em torah, Diccionario teológico manual del

Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.1292 -1306.

374 Veja M. Sæ bø, em ysr, Diccionario teológico Manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.1, col.1016-1021.

mundo familiar e comunitário. Uma realidade escondida não somente pelos textos, mas pelos preconceitos que nos levam a ler e interpretar um texto sem buscar relacioná- lo com a situação que o gerou, ou dando por supostas outras interpretações já consagradas, sem questioná- las. É por esta razão que buscamos desvelar a situação da vida cotidiana que está por trás do símbolo da sabedoria mulher. Uma possibilidade de aproximação desta realidade se oferece no confronto do símbolo da sabedoria mulher com a mulher sábia e forte de Pr 31. Através deste confronto e de estudos sobre a época do texto, pode ser desvelada uma situação das famílias no período pós-exílico, quando a casa teve que se organizar para sustentar e defender a vida, tanto na área econômica e social, co mo na área religiosa.375

Outro elo de ligação entre a primeira e a última seções de Provérbios é formado pelo tema da justiça376 e da solidariedade. Em Pr 8,8, a sabedoria mulher afirma, em primeira pessoa, que todas as suas sentenças são justas. Em 8,15-16, ela assegura que através dela “os reis e governantes ditarão sentenças justas”. Em 8,20, a sabedoria mulher repete que “caminha pelas sendas da justiça e pelos caminhos do direito”. Esta repetição pode ter sido usada como recurso poético para indicar a definida postura ética da sabedoria mulher, pautada pela justiça.

Em continuidade com o tema da justiça, está o da solidariedade. Neste sentido, aparece claramente a predileção da sabedoria mulher pelos mais desprezados da sociedade (Pr 9,4). Os convidados para o seu banquete são os néscios e os carentes. Esta opção é inédita, pois o néscio kesìl é convidado para o banquete da sabedoria com a finalidade de que aprenda o caminho da vida (8,4; 9,6). Ora, no interior do livro dos Provérbios encontram-se várias afirmações sobre a inutilidade de ensinar ao néscio, pois a sua obtusidade é permanente (Pr 14,24b; 17,10-16; 23,9; 26,11). Mas, a tradição que está por trás de Pr 1-9 apresenta uma perspectiva de inclusão de pessoas consideradas ignorantes ou

375 Farei uma análise mais detalhada sobre esta questão nos itens seguintes, sobretudo, em 4.4.

376 O verbo

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zrq, que no qal tem o sentido de “ser honrado/justo/inocente”, etc., no hifil tem o sentido de “fazer justiça”, “proteger” e “defender”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.555-556.

indolentes.377 Ao convidar especialmente estas pessoas para seu banquete, preparado com

tanto cuidado, a sabedoria mulher está fazendo uma proposta não somente de inclusão social, mas também de uma relação nova com os marginalizados da época. Suponho que esta tenha sido uma função da mulher da vida real que, no espaço da casa, buscava incluir pessoas marginalizadas pela sociedade da sua época, dando-lhes oportunidade de aprender algo que lhes servisse para a vida.

Esta mesma sensibilidade em relação às pessoas marginalizadas, sobretudo aos pobres e aos sofredores, aparece na instrução da sábia mãe do rei Lemuel (31,5-7), que exorta o filho rei sobre a abstenção da bebida alcoólica para que não faça como aqueles que “bebendo torcem o julgamento dos sofredores” (31,5). Segundo ela, a bebida deve ser dada aos sofredores, para diminuir seu sofrimento (31,6-7), uma afirmação que pode conter uma ironia ou carregar a memória de um costume cultural em relação aos moribundos e condenados à morte. Mas, a sábia mãe do rei Lemuel vai além dos costumes e também dos preconceitos. Ela propõe que o filho se comprometa na luta pelos direitos dos pobres, fazendo-lhes justiça: “abre tua boca em favor do mudo, em defesa dos abandonados; abre tua boca e julga com justiça, defende o pobre e o indigente” (31,8-9). Esta postura sensível e solidária com os mais carentes encontra-se também na mulher sábia, competente e forte, que comparte com os pobres e necessitados o fruto do seu trabalho: “ela abre a mão ao pobre e ajuda o indigente” (31,20).

Deste modo, as ligações principais entre Pr 1-9 e 31 são feitas pelo símbolo da sabedoria mulher (1,20-23; 8 e 9), que têm suas raízes na sabedoria da mulher da vida real (31,1-9.26). Sua capacidade para transmitir a torah, sua postura ética fundada na justiça e sua capacidade de cuidar da vida e de gerar solidariedade fazem a ligação entre as duas seções de Provérbios: a primeira (1-9) e a última (31).

377 Nestes textos, o significado de “néscios”

~yliysik.

kesilim e de “simplórios”

~yIat'P..

peta’im é pejorativo, indicando que aquelas pessoas são desprezadas pela sociedade por não terem nenhuma capacidade de pensar ou de aprender.

Estas não são as únicas ligações entre as duas seções, mas elas evidenciam a continuidade entre Pr 1-9 e 31, e mostram que o símbolo da sabedoria mulher está enraizado na vida cotidiana das mulheres sábias que preparam seus filhos para a vida, transmitindo- lhes tradições culturais carregadas de valores éticos. Um ensinamento que não se restringe à vida familiar, mas desperta para questões sociais e gera solidariedade. Ao mesmo tempo em que estas ligações mostram a relação entre o símbolo da sabedoria mulher e a mulher da vida real, elas provêm justificativas para a afirmação de que a primeira seção do livro dos Provérbios (1-9) está diretamente ligada com a última (31), formando uma moldura para todo o livro e contribuindo para a criação de um sentido novo sobre a questão das mulheres.