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A visão integradora do símbolo da sabedoria mulher, apresentada nos poemas analisados, não é suficiente para compreender a realidade que se oculta e se revela através desses textos (Pr 1-9 e 31). Há, ainda, um outro aspecto desta mesma realidade que expressa a contradição e a exclusão, em vez da integração. O poema da mulher insensata de

402 Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, em Ein Gott allein? p.166.

403 Veja Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen Weisheit von Proverbien 1-9?”, em Ein Gott allein?, p.541.

Pr 9,13-18 chama a atenção para aspectos opostos àqueles que transparecem no símbolo da sabedoria mulher, apresentando uma realidade muito mais complexa. Toda realidade é formada por aspectos que unem, congregam, geram solidariedade e por elementos que excluem, expressando medo, intolerância, divergências e até mesmo a destruição e a morte. Esta contradição transparece no cap.9 de Provérbios. Se o símbolo da “sabedoria mulher” (9,1-6) tem a função de incluir e de integrar, carregando uma memória histórica que contribui para a formação da identidade do povo de Judá, a figura da “mulher insensata” (9,13-18) está colocada no texto como sua antítese. Portanto, faz-se necessário abordar essa figura para não ficar com uma visão muito idealizada da situação que gerou Pr 1-9 e 31. Este é o meu objetivo ao realizar um estudo sobre este tema.

Em Pr 9,13-18, encontramos uma apresentação da “mulher de insensatez”

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’exet kesilut, fazendo um paralelo com a “sabedoria mulher” de 9,1-6.

Percebe-se que há uma intencionalidade neste texto, mas ao fazer a exegese de Pr 9,13-18, no capítulo 2 desta tese, apenas explicitei uma pergunta sobre a intenção do autor ou editor, ao elaborar este paralelo. Naquela etapa da investigação, apresentei um quadro comparativo para visualizar as semelhanças e as diferenças entre as duas personagens: a sabedoria mulher (9,1-6) e a mulher de insensatez (9,13-18).404 Esse quadro comparativo tornou

evidente que a construção literária do cap.9 de Provérbios tem uma intenção pedagógica. Segundo Luís Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, a intenção do texto é preparar os jovens para fazerem escolhas acertadas na vida. Esses autores encontram no convite da mulher insensata para “beber água roubada” e “comer pão escondido” (9,17) uma sedução sexual. Para esses autores, a mulher insensata representa ou é parente da mulher alheia e da prostituta, que perverte o jovem inexperiente com sua sedução. A advertência presente no texto visa impedir que o jovem inexperiente ceda à sua atração.405 Também Judith E.

McKinlay observa que as conotações sexuais estão evidentes neste texto.406 Além disso, essa autora considera que é possível encontrar em Pr 9,13-18 a sugestão de Deusas estrangeiras ligadas ao poder de destruir, como Ixtar e a assíria babilônica Kilili, cuja

404 Veja o referido quadro no capítulo 2 desta tese, item 2.3.2, análise de Pr 9,13-18. 405 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.246. 406 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57.

destruição é atestada na mitologia,407 uma afirmação que Luis Alonso Schökel considera

infundada.408

Este é apenas um exemplo da divergência de opiniões sobre a figura da mulher de insensatez. Já que a linguagem simbólica somente pode ser compreendida quando relacionada aos processos vitais e aos fenômenos culturais que possibilitaram sua criação, farei, neste item, uma aproximação entre o texto de Pr 9,13-18 e seu contexto literário e sócio-econômico, cultural e religioso. Este foi o procedimento que adotei ao buscar uma compreensão do símbolo da sabedoria mulher, nos itens anteriores deste capítulo.

Antes de fazer esta aproximação, olhemos o texto mais de perto para ver como se apresenta a “mulher insensata”409 neste poema. No mesmo verso em que ela é mostrada pela primeira vez (Pr 9,13), encontramos três termos utilizados pelo autor com a intenção de identificá- la. O primeiro é “insensata” ou “néscia”

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kesilut. O segundo é

hY"miho homiyah

, um verbo que se encontra no particípio qal, feminino, singular e que

significa “agitada” ou “barulhenta”410. É interessante observar que em toda a Bíblia Hebraica, este verbo, nesta forma, só aparece aqui e em Pr 7,11.411 Junto a esse termo, em Pr 9,13, aparece, ainda, uma terceira palavra para caracterizar a mulher de insensatez: afirma-se que ela é “ingênua” ou “simplória”

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petaut412. Este verbo, no feminino, só aparece neste verso, em toda a Bíblia Hebraica. Concluindo, em apenas um verso (9,13), o texto nos informa que esta mulher é insensata, agitada e simplória.

No verso seguinte (9,14), a mulher insensata é apresentada nas alturas da cidade, em um ponto bastante estratégico. O curioso é que ela aparece sentada, uma postura que indica autoridade: “e senta-se à porta de sua casa”

Ht'yBe xt;p,l. hb'v.y'w.

ve-yaxbah le-

407 Confira Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57. 408 Veja Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino, p.1433.

409 Literalmente, “mulher de insensatez”

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’exet kesilut. Esta forma feminina unida à palavra mulher aparece somente neste texto, embora o masculino seja muito comum nos escritos sapienciais.

410 Veja Carl Philip Weber, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.361, verbetes 505a e 505b ; Veja também Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico -português, p.181.

411 Mais adiante farei a relação entre os dois versos (9,13 e 7,11).

petah betah. Então, a mulher insensata, agitada e simplória tem sua casa, tem autoridade, e

coloca-se em um lugar estratégico. Mas, por que, com que objetivo, ela se coloca neste ponto estratégico da cidade? Os versos 9,15-16 indicam que é para “chamar os que passam pelo caminho, os que seguem retos em suas sendas”. Então, seu público não é o mesmo da sabedoria mulher, que convida especialmente os néscios e os carentes de entendimento (9,4). A mulher insensata chama os justos, isto é, “aqueles que seguem por caminhos retos” (9,15b). E o que ela oferece aos que aceitam seu convite? Oferece “água roubada” e “pão para ser comido às ocultas” (9,17).

Voltando ao começo, vamos aprofundar os textos citados. A expressão “agitada”

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homiyah ligou a mulher insensata de Pr 9,13 com a mulher de Pr 7,11, de quem se afirmou a mesma coisa. Ora, no verso imediatamente anterior, 7,10, o autor havia informado que esta mulher está vestida de

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zonah, um termo que significa

“prostituta”413 e que aparece em Pr 6,26. Mas, o que liga a mulher insensata com a prostituta? No interior da seção 1-9 de Provérbios, encontram-se afirmações que ligam a “prostituta”

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zonah, com a “mulher de insensatez”

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’exet kesilut, a “mulher estranha”

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’ixah zarah e “estrangeira

hY"rik.n"

nokriyah414. Um elemento comum entre estas mulheres é que todas elas conduzem à morte.

413 Originariamente,

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zonah (znh) designa simplesmente todo tipo de relação sexual irregular e ilegal entre homem e mulher. A linguagem teológica emprega znh em sentido metafórico, referindo-se ao ato de separar-se de Javé para buscar outros Deuses. Veja J. Kühlewein, em znh, Diccionario teológico manual del

Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol. 1, p.725-726. A palavra

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zonah aparece somente duas vezes em Pr 1-9 (6,26; 7,10). É importante lembrar que

hn"Az

carrega, também, o sentido de “mulher autônoma”, aquela que se vira por sua própria conta. Segundo Mercedes de Budallés Diez, “a mulher zonah era uma mulher livre, economicamente autônoma e, por isso, independente”, Raab – Mulher

da vida – Uma proposta de leitura feminista da mulher zo nah no Antigo Testamento a partir da história de Raab (Josué 2), São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2002, (Dissertação de

mestrado), p.129.

414 Segundo R. Martin-Achard, nokri adquiriu importância depois do exílio, quando Israel colocou de maneira especial o problema de suas relações com os países estrangeiros. O termo nokri significa, também, aquilo que pertence a outro (Pr 5,10; 20,16). A nokriah de Pr 2,26; 5,20; 6,24; 7,5; 23,27; 27,13 não significa uma estrangeira pagã, mas a mulher de outro israelita, ou a mulher estranha à vida do clã. Uma visão panorâmica sobre o uso de nekar/nokri no AT está marcada por uma atitude que vai da reserva até à rejeição. Isto se expressa nas passagens de orientação deuteronômica que destacam a função corruptora dos deuses estrangeiros. Veja R. Martin-Achard, nekar, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.97-100.

Recomenda-se insistentemente aos homens que não se deixem seduzir por estas mulheres, “porque sua casa se inclina para a morte” (2,18), “os seus pés levam para a morte” (5,5), “suas escadas levam para os átrios da morte” (7,27b), “em sua casa estão as sombras da morte” (9,18a).

Por que haveria tanta necessidade de recomendar aos homens que não se deixassem seduzir pela mulher estrangeira ou estranha que enleia com suas palavras (2,16-19)? Por que é necessário avisar-lhes que a estrangeira, cujos lábios destilam mel, é mais amarga do que o absinto (5,2-23)? O texto insiste em que é necessário ter cuidado com a mulher estranha, pois tem a língua suave, porém ela é má (6,24-27) e deixa claro que ela é a mulher casada, isto é, “mulher de um homem”

vyai tv,ae

’exet ’ixix (6,26). Usando a metáfora

do fogo, que não se pode carregar sem se queimar e das brasas, sobre as quais não se pode caminhar sem ter como conseqüência os pés queimados, nosso texto continua suas recomendações para que os homens não se envolvam com a mulher casada (6,27-35). Os avisos e admoestações continuam no cap.7 de Provérbios, para que o jovem se guarde da mulher estrangeira, da estranha, cuja palavra é sedutora (7,5). Todo o cap.7 insiste nestas recomendações, detalhando-as, repetindo-as. O que estaria acontecendo na vida real das famílias, nas relações entre homem e mulher, para que tão insistente ensinamento se fizesse necessário?

Ao observar que os termos mais repetidos para identificar a mulher perigosa são “estranha”

hr"z' zarah e “estrangeira” hY"rIk.n" nokriyah

, suponho que este medo da

mulher pode estar ligado à questão da identidade cultural de Israel que, naquele tempo, era apenas um pequeno grupo tentando se reorganizar, dentro de um imenso império. As repetidas recomendações sobre a necessidade de tomar distância das mulheres estrangeiras levam a supor que as relações com elas representavam um perigo para a identidade do povo de Israel. Esta preocupação transparece, especialmente, nos textos de Esdras e Neemias. Para eles, a relação marido/mulher era muito próxima e representava o perigo de cair na “impureza” dos povos das terras (Esd 9,11), tanto através dos costumes da vida diária, como através do culto (Ne 13,23-27). No entanto, há uma grande diferença entre as proibições de casamento com mulheres estrangeiras em Esdras 9-10 e Neemias 13 e as

advertências de Pr 2,16s; 5,2-20; 6,24s; 7,5-27. Os textos de Provérbios não se referem ao casamento, mas às relações extraconjugais. Também não se referem ao perigo da impureza, mas ao risco de perder a vida.

Mas, qual seria a situação existencial que originou esta insistência para não cair nas ciladas e seduções das mulheres estrangeiras? Podemos pensar que esta insistente instrução sobre o perigo da relação sexual com mulheres estrangeiras indica que havia uma prática comum deste tipo de relacionamento, naquela época. Mais explicitamente, qual seria o problema que esta relação significava? Para Tâmara C. Eskenazi, detrás da polêmica contra as mulheres estrangeiras encontra-se uma preocupação fundada mais em interesses sociais e econômicos do que em preocupações étnicas ou religiosas. Segundo esta autora, na ausência da monarquia, a organização familiar volta a adquirir importância econômica na sociedade, o que representa um aumento do poder das mulheres, incluindo a possibilidade de herdarem propriedades familiares e de participarem de transações econômicas.415 Para esta autora, o relacionamento com outras mulheres, fossem elas judias ou estrangeiras, colocava em risco o patrimônio familiar.

Em minha opinião, além dos aspectos econômicos e de poder, estas insistentes recomendações estavam relacionadas às questões culturais e religiosas importantes para a reorganização do judaísmo pós-exílico. Neste sentido, Elisabeth M. Cook Steike comenta que, desde 1Rs 11,1-13, as mulheres estrangeiras deixam de ser sujeitos, assumindo funções especificamente teológicas. Elas são identificadas diretamente com a adoração a outros deuses. Mas, no livro dos Provérbios, a mulher já não aparece mais como uma figura passiva. A mulher estrangeira é ativa; é a maldade e a sedução que saem em busca do homem para fazê- lo cair em suas redes. Ela começa a ser identificada com o mal (Pr 5; 7; 9,13-18).416 Uma visão que será radicalizada por Ben Sirá ao identificar a mulher com a origem do pecado e da morte (Eclo 25,24). Esta visão sobre a mulher encontra-se também no texto de 4Q 184,8, onde se afirma que a mulher é o começo de todos os caminhos de

415 Tâmara C. Eskenazi, “Out from the Shadows: Biblical Women in the Postexilic Era”, em Journal for the

Study of the Old Testament 54, 1992, p.32.

416 Veja Elisabeth M. Cook Steike, La mujer como extranjera en Israel – Estudio exegético de Esdras 9 y 10, San José/Costa Rica: Universidad Bíblica Latino Americana, 2004, (Tesis de maestría en Ciencias Bíblicas), p.25-26.

impiedade, representando não somente um perigo de desvio sexual, mas também a heresia. Na figura da mulher estrangeira se estabelece o limite entre o “próprio” e o do “outro”, ou “estranho”. Podemos concluir, então, que o medo da mulher estranha ou estrangeira é um reflexo da comunidade que está por trás do texto: de seus temores do diferente, do outro, de tudo o que lhe é desconhecido, da angústia frente às guerras e da insegurança em relação ao futuro; com o medo dos grupos da elite de perder privilégios.

Estes textos refletem uma preocupação com o fortalecimento dos espaços de influência da mulher na sociedade, durante o período pós-exílico. Portanto, não é possível desligar estes textos das lutas das mulheres e da sua importante participação na sociedade do seu tempo. O contexto do pós-exílio pode ter proporcionado este crescimento devido às diferentes tendências que encontramos na literatura desta época. Como já foi mencionado, Fokkelien van Dijk-Hemmes indicou que o livro de Rute pode ter se originado em uma cultura de mulheres, justificando que “esta hipótese de uma cultura de mulheres tem sido proposta por antropólogos, sociólogos e historiadores da sociedade, a fim de estabelecer um elo entre as experiências culturais primárias expressas por mulheres”417. Esta é uma realidade que transparece em Pr 31,10-31 e que recebe o seguinte comentário de Elisabeth Schüssler Fiorenza: “ainda que o louvor da perfeita ‘dona’ de casa se faça a partir de um ponto de vista masculino, se evidenciam sua iniciativa econômica e sua perspicácia para os negócios”418.

Na tentativa de fechar este tema, quero lembrar Clifford Geertz, em uma de suas definições provocadoras. Para esse autor, “a religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações... vestindo estas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”419. A religião é uma das estruturas que permite encontrar coerência nesta disposição, extremamente discriminadora, de colocar as mulheres, sobretudo as

417 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute – Produto de uma cultura de mulheres?”, em Rute a partir de uma

leitura de gênero , p.180. Neste texto a autora comenta que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é

predominante o androcentrismo de teorias e estruturas de interpretação.

418 Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los

orígenes del cristianismo , p.150.

estrangeiras, como aquelas que seduzem os homens e os conduzem à morte. O discurso religioso tem o poder de criar justificativas aceitáveis para situações inaceitáveis. Por trás de um discurso religioso, como este que estamos analisando, esconde-se o medo daqueles que o elaboram. Portanto, entendo que esta insistente censura das mulheres estranhas ou estrangeiras representa uma reação dos editores de Provérbios contra a nova mentalidade que se expressa nos poemas da sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e em livros como Jonas, Rute e Cântico dos Cânticos.420 Um dos aspectos desta nova mentalidade é a presença do erótico, do lúdico, da beleza dos corpos e de muitos símbolos da cultura dos povos vizinhos, em textos desta época. Meu parecer é que os belos poemas sobre a sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e a bem elaborada descrição das qualidades da mulher da vida real (Pr 31,1-31) já existiam, antes da edição do livro. Também já estava presente, na realidade do pós-exílio, o medo em relação à nova mentalidade que surgia a partir da casa, onde a mulher participava sem restrições, na dinâmica da vida. Estas situações antagônicas aparecem claramente na primeira seção do livro dos Provérbios, através da antítese entre a sabedoria mulher e a mulher insensata.