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A tradição atribuiu o conjunto das coleções que formam o livro dos Provérbios ao rei Salomão, que segundo 1Rs 5,12 “pronunciou três mil sentenças”. Esta tradição valorizava em alto grau a sabedoria de Salomão, considerando-a “maior que a de todos os sábios do Oriente e maior que toda a sabedoria do Egito” (1Rs 5,10). A referência a

102 Nelson Kilpp, Jonas, p.23.

103 Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.63.

Salomão encontra-se na introdução das duas principais coleções do livro (Pr 10,1 e 25,1). O mesmo fez o editor final, indicando que toda a obra seria de autoria de Salomão (Pr 1,1). No entanto, depois da publicação de um papiro de número 10474 do Museu Britânico, em 1923, foi possível reconhecer a relação de Pr 22,17-24,22 com “As máximas de Amenemope”104. Um dos aspectos que apontou imediatamente para a semelhança foi a menção aos “trinta capítulos”, que se encontra no texto hebraico (Pr 22,20). Uma referência mal compreendida na história da interpretação do livro de Provérbios e que, atualmente, é vista como procedente das Máximas de Amenemope, onde se encontra a expressão: “considera estes trinta capítulos: eles alegram, eles instruem”105.

Luis Alonso Schökel e Gerhard von Rad106 apontam para a diversidade de procedência e de estilos destes materiais colecionados no livro dos Provérbios. Outros autores107 comentam que o livro dos Provérbios possui uma ampla cronologia. Os nomes de

Agur e Lemuel chamam a atenção para a presença da cultura árabe dentro do livro, mesmo que os sábios indicados com estes nomes não tenham sido personagens reais. Como já vimos anteriormente, encontra-se nas diferentes coleções a presença da cultura egípcia108 e o imaginário religioso e social dos povos de Canaã. Como afirma Luis Alonso Schökel, “o trabalho anônimo dos sábios de Israel, como o de quase todos os autores da antiguidade semita, foi criador, transformador e compilador”109 dos textos sapienciais. Uma afirmação que aponta para a diversidade das experiências e dos contextos que geraram a sabedoria dos Provérbios.

O objeto da minha pesquisa limita-se aos capítulos 1-9 e 31 do livro dos Provérbios, no entanto, considero importante situar literariamente estas duas seções dentro do conjunto do livro. Na minha dissertação de mestrado, apresentei uma divisão do livro dos Provérbios

104 Veja Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.49. 105 Veja Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2000, (9ª edição revista), p.1149.

106 Conferir Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.132 e Gerhard Von Rad,

La sabiduría en Israel - Los sapienciales, lo sapiencial, p.23, e também Sabedoria e poesia do povo de Deus,

São Paulo: Loyola, publicações Conferência dos Religiosos do Brasil, 1993, 269p. (Tua Palavra é Vida nº 4). 107 Robert Alter e Frank Kermode, Guia literário da Bíblia, São Paulo: UNESP, p.288-289.

108 Isto não significa que apenas neste texto esteja presente a cultura egípcia. 109 Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.51.

com nove seções110, anotando outras formas de desenhar a estrutura do livro e justificando

minha postura.111 A continuidade na pesquisa literária leva -me a encontrar ligações semânticas e de conteúdo entre as duas últimas seções do livro dos Provérbios (Pr 31,1-9 e 31,10-31), formando desta maneira uma única unidade literária.112 Portanto, encontro, hoje, oito seções no livro.

Depois de um título alongado (1,1-7), inicia-se a primeira seção (1,8-9,18), onde aparece por primeira vez a metáfora ou símbolo da sabedoria mulher na Bíblia Hebraica. A segunda seção (10,1-22,16) é formada de provérbios breves, com gêneros e conteúdos muito variados. A terceira seção (22,17-24,22) talvez seja a mais antiga, pois tem grande semelhança com as ‘máximas de Amenemope’ 113, escritas no Egito entre os séculos 13 e 12 a.C.114 A quarta seção (24,23-34) tem muita semelhança com a anterior, distingüindo-se quase unicamente pelo título. Também existem muitas semelhanças entre a quinta coleção (25-29) e a segunda (10,1-22,16). A sexta seção (30,1-14) é a mais heterogênea e deve ter sido composta de vários apêndices.115 A sétima (30,15-33) se distingue das outras coleções

pelos provérbios numéricos, relacionados com a máxima, o enigma e a comparação. A oitava e última seção é constituída pelos ensinamentos da mulher sábia ao seu filho, o rei de Lemuel, e pelo poema da mulher forte e sábia (31,1-31). A primeira seção (1-9) e a última (31,1-31) formam um inclusio ou moldura para todo o livro dos Provérbios.116

Constato também que há uma diferença entre a maneira como o texto massorético e a versão dos LXX organizaram todo este material. Fiz esta descoberta ao perceber que no

110 Mercedes Lopes, A sabedoria e Yahweh – Um estudo em Provérbios 8, Dissertação de Mestrado, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2004, p.35. Recentemente, Mercedes García Bachmann apresentou a mesma divisão do livro em nove seções. Veja Mercedes García Bachmann, “Livro dos Provérbios”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.52, Escritos, Petrópolis: Vozes, 2005, p.68 [452]. A mesma divisão encontra-se na Bíblia de Jerusalém, p.1117-1164.

111 Luis Alonso Schökel, em seu livro Provérbios y Eclesiástico, Los libros sagrados, p.23, encontra sete coleções ou seções no livro dos Provérbios. Para obter esta divisão, ele reúne a sexta coleção: “As palavras de Agur” (30,1-14) com a sétima: “Provérbios Numéricos” (30,15-33). Também reúne as duas últimas coleções: “Palavras de Lemuel” (31,1-9) com o poema alfabético da “Mulher de poder” (31,10-31).

112 Apresentarei as justificativas para esta afirmação no capítulo 4 desta tese.

113 Veja Diccionario de la Biblia, Serafín de Ausejo (editor), Barcelona: Herder, 1964, p.1596. 114 Conferir Alviero Niccacci, A casa da sabedoria, p.50s.

115 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial, p.102.

116 No cap. 4 desta tese, apresentarei os argumentos que me permitem fazer esta afirmação de que Pr 1-9 e 31 formam uma moldura para o livro dos Provérbios.

TM, o capítulo 31 tem 31 versos, enquanto que na versão dos LXX o mesmo capítulo tem 22 versos. Esta descoberta levou-me a perceber a forma distinta com que ambas as versões organizam as seções do livro dos Provérbios. Se olharmos a partir do texto massorético117, veremos que na versão dos LXX118 o material de Provérbios está organizado da seguinte maneira: a primeira seção (1-9), a segunda (10,1-22,16) e a terceira (22,17-24,22) seguem a mesma ordem do texto massorético. Na LXX, a quarta seção corresponde ao cap.30,1-14 do TM e a quinta ao cap. 24,23-34 do TM. Já a sexta da LXX contém o material que se encontra no cap.30,15-33 do TM e a sétima ao cap. 31,1-9 do TM; na oitava seção da LXX encontram-se os cap. 25-29 e a nona seção da LXX é formada pelo poema da mulher forte (31,10-31 do TM). Isto significa que até o capítulo 23, a Septuaginta possui a mesma ordem do texto massorético, introduzindo depois de 24,22 o cap.30,1-14. Segue com o capítulo 24,23-34 e introduz o cap. 30,15-33, seguido por 31,1-9. Só então apresenta a seção 25-29 e encerra com 31,10-31.

Ao fazer um comentário sobre a forma diferente com que a versão dos LXX organiza o material do livro dos Provérbios, Luis Alonso Schökel se pergunta: “Qual seria a ordem original destas seções? Não sabemos e nunca chegaremos a sabê-lo”, comenta este autor.119 Buscar as causas da diferente organização do livro dos Provérbios pelo TM e pela Septuaginta não é o objeto da minha pesquisa. Apenas constato que existe esta diferença para exemplificar um aspecto da problemática história de interpretação destes materiais que formam o livro dos Provérbios.

Mas, a maneira de organizar o livro pelas duas versões (o texto massorético e a Septuaginta) não é a única dificuldade que o texto apresenta. No interior do livro há muitas repetições e uma grande variedade de gêneros literários: máximas ou ditados populares, discursos e também poemas didáticos muito elaborados, sobretudo na primeira seção (1-9). De um modo geral, falta uma unidade conceitual no livro dos Provérbios não somente pela

117 Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1987, 1574p.

118 Biblia Septuaginta id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, editada por Alfred Ralhlfs, New York: American Bible Society, 1950, vol. 2, 1184p. Para uma comparação entre TM e a versão dos LXX veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic proverbs? - Concerning the

Hellenistic coloring of LXX Proverbs, Leiden: Brill, 1997, 391p. (Supplements to Vetus Testamentum).

119 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.105.

grande liberdade do verso hebraico, mas pela amplitude dos assuntos tratados no gênero

maxal.

A primeira seção do livro dos Provérbios (1-9), junto com a última (31,1-31), ao mesmo tempo em que formam a moldura do livro e lhe dão um novo enfoque, mostram o longo processo da sua redação. Enquanto no interior do livro temos materiais muito antigos, já que as máximas de Amenemope (Pr 22,17-24) datam do século 13 ou 12 a.C. e a coleção reunida pelos funcionários de Ezequias (25-29) data, provavelmente, do ano 700 a.C. A redação final do livro situa-se no final do período persa, conclusão a que se chega através de uma análise cuidadosa da forma e do conteúdo dos poemas destas duas coleções: a primeira (1-9) e a última (31,1-31), relacionando-as com as condições sociológicas, políticas, culturais e religiosas do povo, no pós-exílio.