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A A TRIPLA RELEVÂNCIA JURISDICIONAL DA PROMESSA

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 66-71)

No que diz respeito ao direito privado, o sistema jurídico de common law floresceu na altura do perecimento do ius romanum227. Como atenta SMITH, a

influência do direito romano no direito inglês não se fez através da receção de normas jurídicas positivas, mas efetuou-se através “da maneira de entender o Direito, do case law e da forma de produção literária228”.

As figuras contractus e pactum e a divisão concetual quanto ao nomem eram conhecidas nas ilhas birtânicas nos séc. XII e XIII. A prática judiciária nas regiões feudais baseada numa “teoria contratual comum”229 foi paulatinamente

esquecendo as bases romanísticas230. A noção de promise foi retida infra-

225 HANS WOLFF, Roman Law, pp. 79 e ss. 226 MOURA VICENTE, Direito Comparado, p. 237.

227 RE, “The Roman Contribution to the Common Law”, pp. 447 e ss. 228 SMITH, “Elements of Law”, pp. 341 e ss.

229 Summo rigore, nunca chegou a ser uma verdadeira “teoria dos contratos” até meados do séc. XIX.

230 Assim, FARNSWORTH, “The Past of Promise”, p. 591. Para desenvolvimentos, SCRUTTON, The

sistemicamente, redescoberta e redesenhada no período medieval231, até atingir, a

partir do séc. XIX, o papel crucial que tem atualmente na teoria dos contratos232.

Ainda que muito sombria e remotamente, também se manifestavam pequenas influências da stipulatio romana no período medieval233. Segundo FARNSWORTH

“o common law começou a desenhar o seu próprio percurso na direção de uma teoria geral da vinculatividade da promessa”234. Este percurso foi esboçado através

de várias frentes – common law, equity e direito canónico – mas iniciou-se através da das forms of action. De qualquer forma, em paralelo ao que sucedia no mesmo período na Europa continental, a Igreja teve uma enorme ascendência na maturidade dogmática do direito privado inglês, em especial através do aprofundamento concetual das promessas feitas a ou perante DEUS (oaths e vows)235. Esta influência do direito canónico trouxe pequenos elementos de civil law, retendo alguma doutrina romana236.

Deixando de parte por agora a matéria dos writs, de um ponto de vista externo e atual, é perfeitamente possível afirmar que o direito medieval inglês concebia a eficácia obrigacional a promessas unilaterais feitas no altar perante DEUS237. A partir do séc. XII, os cristãos podiam assegurar a sua salvação através

da celebração de uma promessa de fé (baseada na crença divina) cujo incumprimento era visto como pecado. Mais tarde, os canonistas discutiram a questão de saber se se poderia estender tal vinculatividade a qualquer tipo de promessa, independentemente do fim e da causa de fé porquanto se entendia que

231 POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, pp. 184-5.

232 Nas palavras de ARNOLD, “o direito moderno dos contratos é suposto ser sobre promessas” (“Transcending Covenant and Debt”, p. 990).

233 POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, pp. 186 e 192-3. 234 FARNSWORTH, “The Past of Promise”, p. 591.

235 Havia tribunais eclesiásticos que tinham competência para julgar incumprimentos de tais promessas (W. R. JONES, “The Two Laws in England: The Later Middle Ages”, p. 125;

THOMSON, The Early Tudor Church and Society, p. 85).

236 POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, p. 116; RE, “The Roman Contribution to the Common Law”, p. 486.

237 JOHN OF SALISBURY, Letters of John of Salisbury, p. 224; para mais, O’CONNOR, An Annotated

todas as promessas são, por definição, sagradas. De forma geral, a eficácia destas promessas estava condicionada à verificação de uma garantia (surety) dada por terceiro que, na maior parte dos casos, assumia a forma divina: DEUS não era

apenas uma testemunha, mas também adquiria a qualidade garante do cumprimento da promessa238 através da afetação da honra do promitente e da sua

palavra dada239.

No reino não predominava este princípio geral da vinculatividade unilateral da promessa240. As forms of action demonstravam que havia feudos onde a norma

era a de que todas as promessas eram vinculativas, mas havia outros locais em que o oposto constituía a regra. A jurisdição eclesiástica, a equity e o direito mercantil, permitiam a vinculação unilateral. A visão canónica da promessa já foi abordada. A posição da equity aproximou o direito canónico do direito positivo, ao afirmar que a lei dos Homens deveria ser coerente com a lei divina. Finalmente, quanto ao direito mercantil, os tribunais de comércio ingleses, com fundamento no ius

gentium, admitiram a eficácia obrigacional de promessas unilaterais feitas pelos comerciantes por motivos de eficiência das transações – não necessitavam de documentação, pois o negócio era baseado na oralidade e no velho formalismo da

stipulatio241.

O tema da causa não foi abordado diretamente pelos juristas ingleses que, conforme procurarei descrever, construíram um modelo paralelo baseado na doutrina da consideration. Todas as questões inerentes à eficácia obrigacional das promessas que surgiam antes da elaboração desta doutrina de forjamento enigmático242 não tinham como ponto de partida a busca pela causa civilis obligandi. Até ao séc. XII os tribunais ingleses que julgavam matéria civil nunca

238 Cfr. POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, pp. 191-2.

239 Desenvolvendo o papel da promessa no direito canónico, ESMEIN, “Le serment promissoire dans le droit canonique”, pp. 248 e ss.

240 FARNSWORTH, “The Past of Promise”, p. 591.

241 POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, pp. 192-3. 242 Cfr. HOGG, Promises and Contract Law, pp. 125-7.

tiveram, ex officio, de abordar a dogmática da emergência obrigacional de forma plena e concisa. A este propósito, RANULF DE GLANVILL escreveu que “não é

costume o tribunal do Rei proteger acordos privados”243. Por isso, a matéria da

vinculatividade de promessas efetuadas entre privados não estava sujeita a apreciação judiciária pelo tribunal régio. Quanto a esta clivagem, a História desenrolou-se no sentido favorável ao common law que foi, a pouco e pouco, afastando o grau de amplitude jurisdicional efetiva aos seus concorrentes diretos. Primeiramente, embora a equity tenha prevalecido em comunhão com o common

law, a visão do Chancellor era a de que a equity só deveria intervir caso a jurisdição do common law assim o decretasse. Nas palavras de FARNSWORTH: “é um tributo

à ingenuidade e flexibilidade dos juízes de common law a forma como foram bem sucedidos no sentido de permanecerem na mão do Chancellor, de forma a que o mérito pelo desenvolvimento da doutrina da vinculatividade da promessa que conhecemos hoje fossem da sua inteira responsabilidade244”. Só a partir do séc.

XV, como resultado da mudança de paragidma (de promise para contract245), é

que se começa a construir uma teoria geral do contrato. Por outro lado, de forma a evitar a ideia vinda do direito canónico segundo a qual (todas) as promessas eram sagradas, as Constitutions of Clarendon (1164) retiraram poder jurisdicional aos tribunais eclesiásticos sobre matérias de incumprimento de promessas (de fé)246.

Por último, quanto ao direito mercantil, a partir do séc. XVI os tribunais do

common law chamaram a si essa jurisdição. Uma das consequências deste chamamento resultou no terminus da visão segundo a qual as simple (bare)

promises efetuadas no âmbito de uma relação comercial fossem dotadas de

243 GLANVILL,Treatise, 10, cap. 18.

244 FARNSWORTH, “The Past of Promise”, p. 592. 245 HOGG, Promises and Contract Law, p. 120.

246 Sobre o tema, vide BERMAN, Law and Revolution, pp. 256 e ss.; HUME, The History of

England, pp. 350 e ss.; WALTER, A History of England, pp. 383 e ss.; LISTER, Life and

Administration of Edward, pp. 192 e ss.; JONES, Ecclesiastical History, pp. 75 e ss.; STAUNTON,

The Lives of Thomas Becket, pp. 91 e ss.; COXE, An Essay on Judicial Power and Unconstitutional

Legislation, pp. 137 e ss. Para um estudo sobre a relação entre as duas jurisdições, W. R. JONES,

vinculatividade. Como escreveu mais tarde MANSFIELD no caso Pillans v. Van Mierop247, “um pactum nudum não existe nos costumes e na lei mercantil”. Porém,

sensivelmente um século depois, a House of Lords veio defender a posição contrária248.

O papel e o lugar da promise no direito inglês desviou-se dos caminhos continentais europeus, talvez por culpa da insularização, talvez devido à orgânica particular das instituições judiciais inglesas. Este desvio foi profundamente dogmático, não tendo sido apenas derivação do percurso evolutivo. Alguns académicos ingleses tinham plena consciência de toda a discussão romanística e medieval sobre matérias promissórias: GLANVILL familiarizou-se com o direito

romano249 e BRACTON estudou os textos de AZO250. Chegou inclusivamente

espalhar-se o seguinte ditado popular entre os candidatos a magistrados judiciais: “unless on Azo you prepare / Judicial robes you’ll never wear!”251. Mas é notório

na obra The Treatise on the Laws and Customs of the Realm of England, que GLANVILL evita abordar o problema, propondo uma lei da dívida252 (perspetiva do

incumprimento) em detrimento de uma lei da promessa (perspetiva da constituição do vínculo).

As influências romanísticas e jusnaturalistas são notórias em certos institutos e doutrinas que consagram manifestações da relevância jurídica da

promise no direito inglês frutos da sua evolução histórico-jurídica. Tratarei desses institutos e doutrinas utilizando a perspetiva inglesa, i. e., pegando na amplitude da eficácia e do enforcement do conceito perante o direito adjetivo através das

247 (1765) 3 Burr 1663, 1670.

248 Vide caso Rann v. Hughes, 4 Brown 27, 31, 2, Eng. Rep 18, 21 (1778). 249 HOGG, Promises and Contract Law, p. 121.

250 POLLOCK,MAITLAND, The History of English Law, p. 207. 251 WIGMORE, A Panorama of the World’s Legal Systems, p. 1008.

252A expressão “law of debt” é utilizada em alguns manuais de história do direito inglês quando se reportam ao direito privado vigente na Inglaterra pré-moderna (cfr., por ex., BAKER, Sources

forms of action que, na verdade, não deixam de constituir corolários do pequeno legado do ius romanum em solo jurisdicional medieval inglês.

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 66-71)