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P ENSAMENTO ANGLO AMERICANO : CONSOLIDAÇÃO DA MORTE DA PROMESSA UNILATERAL ; RESSUSCITAMENTO E RECONSTRUÇÃO CONCETUAL

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 92-98)

B F ORMS OF ACTION

4. A REVOLUÇÃO DOS SÉCULOS XVIII E

4.1. P ENSAMENTO ANGLO AMERICANO : CONSOLIDAÇÃO DA MORTE DA PROMESSA UNILATERAL ; RESSUSCITAMENTO E RECONSTRUÇÃO CONCETUAL

Antes de mais, é importante referir que a escolástica jusnaturalista continental encabeçada por GROTIUS e PUFENDORF conheceu parceiros

anglófonos. JOHN LOCKE e THOMAS HOBBES são exemplo disso367. Este último,

em Leviathan, distinguiu os conceitos de contract, covenant e promise368. O

primeiro implica uma transferência mútua de direitos ou uma troca de benefícios imediatos. Pese embora com uma terminologia nem sempre precisa369, prosseguiu

referindo que covenant ou pact são figuras que apenas existem quando, perante um acordo, uma das partes, sob a égide da confiança, adia o cumprimento da sua promessa. Finalmente, HOBBES abordou a temática das promessas simples ou puras. Em contraste com o contract, sempre que o ato prometido seja de dar e sempre que o ato não seja mútuo, há uma promessa de doação (gratuita). Segundo o autor, regra geral, de modo a que uma promessa (de dar) seja válida ela não

365 Contra, HOGG, Promises and Contract Law, pp. 141-2.

366 CAIRNS, Critical Legal Studies in Ancient Law, Comparative Law and Legal History, p. 246. 367 ATIYAH, Promises, Morals and Law, p. 12.

368 Cfr. HOBBES, Leviathan, Parte I, XIV.

poderá ser baseada apenas num simples ato de vontade subjetivo. Têm de existir outros sinais, internos ou externos, pessoais ou de terceiro, de vontade na transferência de um direito370. Uma análise cuidada ao texto permite concluir que

HOBBES utiliza o (seu) conceito de causa – aqui manifestado sombriamente através

da doutrina da reliance.

Esta tripartição conceitual teve influência na doutrina inglesa (em especial, nos tribunais de common law): após o período de ascensão e queda da promessa enquanto partícula geradora de obrigações, até ao final do século XIX, houve poucos desenvolvimentos dogmáticos371. Em Commentaries on the Laws of England (1765-9) e An Analysis of the Laws of England (1766), verifica-se alguma (porém, pouca) dedicação de BLACKSTONE à teoria geral do contrato. Na primeira

obra, o jurista explorou uma definição de contrato como “acordo sujeito a suficiente consideration de fazer ou não uma determinada coisa” 372, definindo, por

seu turno, consideration como “a razão que move uma das partes a contratar”, e que deve ser “algo mútuo, recíproco – algo a dar em troca de, ou, por troca de alguma coisa”373. Esta noção de consideration de BLACKSTONE traz consigo

implicações ao nível de determinados atos jurídicos. A título exemplificativo, BLACKSTONE distingue “gift” de “grant”, afirmando que a razão da clivagem tem

que ver precisamente com a consideration que não há naquela, existe – sempre – nesta374.

As raízes filosóficas da consideration reconduzem-se à escolástica utilitarista que contaminou o pensamento britânico no séc. XVIII. Refiro-me principalmente a autores como HUME,SMITH,BENTHAM,GODWIN,STUART MILL,

cuja filosofia foi relevante no plano jurídico-filosófico. A abordagem que o

370 HOBBES toma como exemplo uma promessa de pagamento de uma quantia pecuniária ao vencedor de uma corrida (HOBBES, Leviathan, Parte I, XIV).

371 SIMPSON, “Innovation in Nineteenth Century Contract Law”, pp. 250-1;Legal Theory and

Legal History, pp. 171 e ss.

372 BLACKSTONE, Commentaries on the Laws of England, p. 442. 373 BLACKSTONE, Commentaries on the Laws of England, pp. 443-4. 374 Ibid.

utilitarismo fez quanto ao tema da vinculação promissória é naturalmente pragmática, limitando a capacidade do promitente em criar inputs na sua própria esfera. É através da comunicação com outros que o improvement se realiza375: para

os utilitaristas, a promessa gera confiança ou fidúcia (reliance) na contraparte que adquire uma legítima expectativa (expectation). Até ao início do séc. XVIII a doutrina da consideration encontrava-se num estado embrionário como nos demonstrou aquela definição de BLACKSTONE. O florescimento da teoria da

vontade nos sistemas jurídicos anglo-americanos proveniente dos textos de SAVIGNY, fez com que a doutrina da consideration se adaptasse àquela, ainda que

tivesse trazido consigo dificuldades no case law376. Se a vontade das partes se

afigurava determinante, os juristas questionavam-se por que motivo é que ainda se requeria a demonstração da consideration, maxime em litígios baseados em negócios cartulares, puramente abstratos377.

MANSFIELD foi um dos juristas que mais contribuiu para acalmar a receção

descontrolada da teoria da vontade nos tribunais ingleses, principalmente no que toca aos seus efeitos quanto à exigibilidade de determinados negócios jurídicos de natureza comercial, matrimonial e de “caridade”. Primeiramente, no supracitado caso Pillans v. van Mierop, MANSFIELD – enquanto juiz –restringiu o escopo da consideration ditando que a mesma não se aplicaria a negócios celebrados no âmbito de transações comerciais – nomeadamente, as letras378. São notórias

invocações a ideias provenientes do ius romanum e do direito natural nas quais MANSFIELD se apoia para fundamentar a tese segundo a qual a stipulatio era

vinculativa independentemente de consideration. No lugar da exigibilidade

375 Assim nota DI MAJO, Le promesse unilaterali, p. 20. Ver também ATIYAH, Promises, Morals

and Law, pp. 45 e ss.

376 SWAIN, “The Changing Nature of the Doctrine of Consideration: 1750-1850”, pp. 55-72. 377 Ver casos Potter v. Pearson (1703) 2 Ld Raym 759, 92 ER 7; Jones v. Ashburnham (1804) 4 East 455, 102 ER 905; Mitchinson v. Hewson (1799) 7 TR 348.

378 Os motivos relacionam-se com a natureza das transações comerciais e com os usos e costumes presentes em tais negócios. Para um aprofundamento, SWAIN, “The Changing Nature of the

peremtória da verificação deste elemento, previam-se algumas formalidades essenciais que, nas palavras do juiz, existiam para “alertar e permitir a reflexão das partes, e para prevenir obscuridade e incerteza”379. Relembro que esta posição foi

posteriormente refutada pela House of Lords. Em segundo lugar, os donativos feitos a instituições de caridade ou obrigações contraídas pelos cônjuges ou por terceiros por motivos de celebração do casamento – no âmbito pré-nupcial – não estavam sujeitos às regras rígidas da consideration, caindo na égide da lei dos

trusts380.

Se é verdade que estes factos ainda configuravam (os últimos) suspiros esperançosos de um eventual renascimento da vinculatividade genérica da promessa unilateral nos sistemas jurídicos de common law, não deixa de ser menos verdade que no final do séc. XVIII assistimos ao seu golpe de misericórdia. É na última década deste século, poucos anos após a independência norte-americana, e com o tratado de POWELL381, que os sistemas jurídicos da família de common law

conhecem a primeira teoria do contrato. Nos seus tratados, os autores dos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, influenciados pela escola jusnaturalista382, maxime pelos iluministas continentais, e embalados pelo discurso jurisprudencial das – agora caducas – forms of action, definem contrato como acordo (agreement), que significava “consentimento inter-partes”383 ou aggregatio mentium384. Mas

como chama a atenção GORDLEY, os common lawyers “não foram buscar [aos

379 HENRY COLEBROOKE entende que, nestes casos, a consideration consiste na própria reflexão prévia à celebração do contrato, distinguindo causa (da obrigação) de consideration (do contrato) – Treatise, p. 38.

380 Sem prejuízo, até ao início do século XIX, o amor e o afeto familiar eram vistos como fundamentos de consideration (na lei dos trusts) – assim, IBBETSON, A Historical Introduction to

the Law of Obligations, pp. 206-8.

381 Através da obra Essay Upon the Law of Contracts and Agreements (1796). 382 GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 134.

383 Cfr. inter alia, COMYN, Treatise of the Law relative to Contracts and Agreements Not Under

Seal; NEWLAND, A Treatise on Contracts; CHITTY, A Practical Treatise on the Law of Contracts; STORY, A Treatise on the Law of Contracts Not Under Seal; PARSONS, The Law of Contract.

384 Esta expressão emana do caso Reniger v. Fogossa 75 Eng. Rep. 1 (1551) – cfr. PLOWDEN,

jusnaturalistas] a ideia de que o consentimento era vinculativo devido à virtude da ‘promise-keeping’, ou que através do consentimento, as partes exercem virtudes de liberalidade ou justiça comutativa”385. Esta “inovadora”386 teoria do contrato

deixou para um segundo patamar muito dos precedentes produzidos nas forms of

action, maxime action of assumpsit, quanto à formulação da ideia abstrata de contrato e de todos os seus elementos constituintes387. A mudança paradigmática

é simples: enquanto que na assumpsit se discutia a promessa, agora discute-se o

consensus388.

Incrivelmente, nesta fase, o direito privado anglo-americano cedeu à doutrina francesa, em particular, ao Treatise de ROBERT POTHIER389. Esta cedência

não fora desmesurada. O filtro que o direito de common law fez às doutrinas de POTHIER assentou em dois pilares dogmáticos: (i) a assimilação da teoria da

vontade e (ii) a consolidação do modelo de formação negocial “proposta- aceitação”. A teoria da vontade “foi imposta no common law a partir de fora, não tendo sido gerada internamente”390. Por conseguinte, esta teoria veio reforçar a

ideia do consentimento do beneficiário da promessa como requisito de constituição de obrigações, rematando, de uma vez por todas, a discussão sobre a vinculatividade de promessas unilaterais. Mas ao contrário do que sucedeu na família romano-germânica – que criou o conceito abstrato de declaração negocial

385 GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 135. Devido a uma impraticabilidade semântica, opto por não traduzir a expressão “promise-keeping”.

386 SIMPSON, “Innovation in Nineteenth Century Contract Law”, pp. 247 e ss.; Legal Theory and

Legal History, pp. 172 e ss.

387 Foram tomadas algumas iniciativas pouco sucedidas no sentido da construção de uma teoria geral do contrato (HOGG, Promise and Contract Law, pp. 142 e 144); vide, a título exemplificativo, o caso Reniger v. Fosossa 1 Plowd. 1, 75 Eng. Rep. 1 (KB 1550).

388 HAMBURGER, “The Development of the Nineteenth-Century Consensus Theory of Contract”, pp. 241 e ss., em especial, p. 241.

389 Principalmente devido à tradução para inglês do Traité des Obligations de WILLIAM EVANS, em 1806. Esta influência verificou-se no direito insular através do caso Hadley v. Baxendale, (1874) EWHC Exch J70, bem como nos Estados Unidos, em especial, nas marcas por si deixadas no Código Civil de 1825 do Estado do Louisiana. Para mais, IBBETSON, A Historical Introduction

to the Law of Obligations, pp. 229-32.

–, o direito inglês manteve fiel no seu discurso infra-sistémico, o termo promise. A reconstrução do conceito foi executada com respeito pelos dois pressupostos teóricos acima mencionados. Por este motivo é que os juristas começaram a descrever o contrato como uma promessa ou um acordo sujeito a uma válida

consideration. Em paralelo, o direito inglês foi admitindo a gratuitidade de contratos, baseando a sua validade e eficácia jurídica nas exceções da doutrina da

consideration que, a pouco e pouco, foi ganhando uma linha dogmática consistente e adequada aos princípios da teoria da vontade. COLEBROOKE, de forma muito

clara – e na esteira de GILBERT – esforçou-se em reconciliar estas duas teorias: “a

vontade de negociar por parte de alguém, a sua intenção de se auto-vincular, é a essência de um negócio voluntário. A consideration é requerida apenas enquanto prova da sua vontade, corroborativa no caso de um acordo verbal, ficcionada no caso de um contrato implícito: mas em ambos os casos, indispensável”391. Numa

linha mais radical, houve também quem procurasse impedir a constituição de vínculos obrigacionais em contratos unilaterais com o fundamento na ideia de justiça equitativa conforme se pode constatar no caso Routledge v. Grant, de onde se extrai a seguinte passagem: “não é justo que uma das partes se encontre vinculada à prática de um ato e a outra não” 392.

Todo este background fez emergir imediatamente duas questões. Primeiro, tornava-se necessário perceber se – e sem prejuízo de essa ser a vontade do promitente – se podia atribuir um direito à prestação a um terceiro beneficiário estranho a um acordo feito entre o promitente e o promissário, considerando que as promessas unilaterais seriam inválidas por falta de consideration. Em segundo lugar, estas teses não respondiam à existência e exigibilidade jurídica das promessas feitas “under seal” (documentos autênticos) que dispensavam o ato de

391 COLEBROOKE, Treatise, p. 38.

392 Cfr. caso Routledge v. Grant (1828) 3 C & P 269, 172 ER 415. Mais tarde, nos contratos unilaterais (gratuitos) começou a entender-se que a consideration jaz na execução (“performance”) de um ato do beneficiário previsto pelo promitente (Carlill v. Carbolic Smoke Ball Company (1893) 1 QB 256).

aceitação. As respostas dadas pelos common lawyers não foram satisfatórias. Quanto à primeira pergunta, o caso Tweddle v. Atkinson reafirmou e consolidou a regra que prevalecia no ordenamento jurídico segundo o qual princípio da relatividade dos contratos era imperativo e, por conseguinte, não conhecia exceções393. No que toca à segunda questão, a busca por uma justificação teórica

baseada nos conceitos de vontade foi – muito envergonhadamente – substituída por uma formulação jurídica ficcional – os implied agreements (acordos implícitos) de construção jurisprudencial394. Tais acordos resumem-se a negócios

jurídicos bilaterais nos termos dos quais a aceitação do beneficiário do ato prometido se encontra implícita. É a manifestação da teoria da vontade no seu expoente máximo.

4.2.PENSAMENTO JURÍDICO DE CIVIL LAW: UMA NOVA CAUSA PARA A CAUSA NO

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 92-98)