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A “ APARIÇÃO ” DA PROMISSIO NA STIPULATIO

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 33-38)

As noções de promissio e promittere (lato sensu) também se inserem no quadro do discurso pré-negocial, nomeadamente na stipulatio75. Sem qualquer

paralelo na História do Direito76, a stipulatio é a concretização do mais puro

formalismo jurídico-negocial77. É através do enunciado oral de uma fórmula

especificamente pré-definida – a “magia das palavras” – que nasce o negócio. Mais do que uma simples teatralização, a stipulatio configurava uma verdadeira

74 ARANGIO-RUIZ, Instituciones, p. 329.

75 Também conhecida como sponsio (ato sacral). Sobre os antecedentes históricos da figura, vide

D’ORS, Derecho privado romano, pp. 477 e ss.; KASER, Direito privado romano, p. 69; BRAVO,

“La Stipulatio”, pp. 139 e ss.

76 Relativamente ao caso particular do direito inglês, vide LAWSON, “Analogues of the Stipulatio in English Law”, pp. 117-27; resumo e comentário por RHEINSTEIN, Gesammelte Schriften, p. 87. 77 KASER, Direito privado romano, pp. 61 e ss.

manifestação do ritualismo jurídico78. A intenção das partes era irrelevante para a

existência e validade do negócio, bastando a mera enunciação da fórmula.

A amplitude funcional da stipulatio era imensa. Apesar de origem nublosa79, era utilizada para diversos propósitos sempre que determinado negócio

carecia de forma solene80 e, sem sombra de dúvidas, era o modo mais comum de

constituição de obrigações no direito romano81 apesar do desenvolvimento

dogmático do sistema jurídico ter promovido o seu desaparecimento82. A figura

compreendia no seu conteúdo uma alusão à ideia de promessa. Simplificadamente, o método oral consistia numa pergunta pré-determinada que alguém (stipulator ou

reus stipulandi) fazia a outra pessoa (promissor ou reus promittendi). As únicas alterações legalmente permitidas à fórmula relacionavam-se com as circunstâncias fáticas concretas. Caso respondesse adequadamente – empregando as palavras mágicas específicas para a perfeição daquele negócio –, o promissor ficava automaticamente obrigado perante o stipulator em realizar algo (faccere), abster- se de o fazer (non faccere), ou entregar uma quantia determinada em dinheiro (pecunia)83. Constituía-se assim uma obrigação jurídica para o promissor

devedor – e uma situação jurídica ativa – actio ex stipulatio – para o stipulator – credor84. Não se proferia uma fórmula fixa para qualquer stipulatio; era um tipo

78 Como escreve KASER, “à recitação solene da fórmula prescrita terá a antiguidade ligado a ideia de uma vinculação mágica (de um sortilégio verbal)” (idem, p. 62).

79 BUCKLAND, Institutions of Roman Private Law, p. 258. Embora o conceito derive etimologicamente da sua forma mais arcaica – a sponsio –, discute-se se a origem é social ou religiosa – através da promessa ara maxima (KASER, Das altrömische Ius, pp. 256 e ss.).

80 SCHULZ, Classical Roman Law, p. 478; ZIMMERMANN, The Law of Obligations, p. 90;KASER,

Direito privado romano, pp. 68-9; WATSON, “The Evolution of Law”, p. 4.

81D’ORS, Derecho privado romano, p. 477; HARRILL, “The Influence of Roman Contract Law on Early Baptismal Formulae”, p. 276.

82 No período pós-clássico, devido à preocupação crescente em documentar certos atos jurídicos para segurança de prova, a stipulatio é substituída quase por completo por promessas incorporadas em documentos (KASER, Direito privado romano, pp. 69-70).

83D’ORS, Derecho privado romano, p. 478.

84 Como identifica SANTOS JUSTO, a stipulatio apresentava cinco características: solenidade, formalidade, oralidade, abstração e unidade. (SANTOS JUSTO, Breviário, p. 191). BRAVO, por outro lado, assentando em elementos não totalmente coincidentes, ainda aponta a congruência

aberto, pois a constituição de cada tipo de negócio solene ou formal (verbis) encontrava-se sujeita a palavras próprias. Sem prejuízo desta volatilidade discursiva, realça-se um denominador comum no diálogo que pode ser expresso da seguinte forma: “Prometes (dar)? – Prometo” [“(Dari) spondes? – Spondeo”].

Visto a intenção das partes não ser uma condição de validade ou de eficácia da stipulatio85, não se pode fazer crer que o discurso possa ser descrito como

“Queres prometer-me (Z)? – Sim, quero”. Por vezes, a causa, aqui entendida no

sentido de – “causa-motivo” – da celebração da stipulatio provinha do pretor que, para assegurar em pleito relações jurídicas não tuteladas pelo ius civile, fazia uso dos poderes jurisdicionais coagindo as partes a, conjuntamente, formalizarem uma

stipulatio. Era totalmente irrelevante este “querer prometer” que poderia ser

expresso ou tácito, bastando o ato comunicativo de resposta por parte do promissor para que a obrigação jurídica se constituísse. Como é de fácil perceção, a estrutura é bilateral quanto ao discurso, mas monocéfala quanto ao elo obrigacional. O

stipulator não se limitava a enunciar as palavras e o promissor a ouvi-las, sem mais: jamais uma stipulatio emergia de um discurso unilateral. À pergunta enunciada pelo stipulator, o promissor tinha de responder, por exemplo, “spondeo”86, para que, em princípio, o negócio produzisse os seus efeitos

obrigacionais87. Do ponto de vista do promitente, a resposta dada pelo destinatário

entre a pergunta e resposta como característica diversa da unitas actus (D. 45, 1, §137) – assim, BRAVO, “La Stipulatio”, pp. 141 e ss.

85 Com foque para os contratos consensuais, ZIMMERMANN, The Law of Obligations, pp. 563-5. 86 “Spondere” era o verbo que normalmente era utilizado na stipulatio e só os cidadãos romanos é que o poderiam utilizar (WATSON, “The Evolution of Law: the Roman System of Contracts”,

p. 4). No período clássico, a utilização de outros verbos, tais como “promittere”, foi permitida – ex.: “Promittis? Promitto”, “Dabis? Dabo” “Facies? Faciam” (cfr. D’ORS, Derecho privado

romano, p. 477; KASER, Derecho privado romano, pp. 68-9; HOGG, Promises and Contract Law, p. 112; LEAGE, Roman Private Law, pp. 333-4) –, tal como o uso da língua grega (cfr. GAIUS 3, 92-4 e ULPIANUS – D. 45, 1, 1, §6). Ver também, BUCKLAND, Elementary Principles of the

Roman Private Law, pp. 244-8. 87 BRAVO“La Stipulatio”, pp. 138-9.

consistia na sua aquiescência. Este elemento da mecânica do diálogo é particular e único na stipulatio88.

Identifico quatro características da estrutura de diálogo negocial que, para o que nos preocupa, importam realçar89. A primeira tem que ver com o

unilateralismo na relação obrigacional (e não unilateralismo formativo) porquanto toda a relação emergente deste ritualismo era unilateral90 – a stipulatio não gerava

obrigações para ambas as partes. Neste sentido, se as partes quisessem celebrar um contrato bilateral (de compra e venda) sob a capa de um contractus verbis teriam de fazer duas estipulações: uma relativamente à obrigação de entrega da res por parte do vendedor e outra respeitante à obrigação do pagamento do preço do lado do comprador91. Nestes casos, ambas as promessas continham uma formulação

condicional espelhando a contraprestação. A premissa da primeira estipulação era a conclusão da segunda e vice-versa. Era, portanto, daqui que se extraía o sinalagma. A segunda característica relaciona-se com a bilateralidade estrutural. Embora a promessa seja unilateral quanto à relação obrigacional92, a bilateralidade

formativa do negócio decorre da simples verificação da exigibilidade do método “pergunta-resposta” como causa constitutiva. Por este motivo, a stipulatio costuma ser catalogada pelos autores como contrato unilateral93. Se houvesse desacordo

entre o promitente e o promissário não existia estipulação94 ainda que o motivo

88 Esta conclusão seria inalterável nas situações em que o pretor ordenasse a declaração de uma

promissio com formulação de stipulatio (stipulationes praetoriae). Cfr. BUCKLAND,MCNAIR,

Roman Law & Common Law, pp. 195-6.

89 HOGG aponta a gratuitidade como uma característica da stipulatio e da insinuatio (acordo escrito, sujeito a registo judiciário, pelo qual se constituía uma doação) – Promises and Contract

Law, p. 111.

90 ZIMMERMANN, The Law of Obligations, p. 91; SANTOS JUSTO, Direito privado romano, II, p. 228; LEAGE, Roman Private Law, p. 335.

91 WATSON, “The Evolution of Law”, pp. 9-11.

92 BUCKLAND,MCNAIR, Roman Law & Common Law, p. 271.

93D’ORS, Derecho privado romano, p. 479; KASER, Direito privado romano, p. 228; SANTOS JUSTO, Direito privado romano, II, p. 228; ZIMMERMANN, The Law of Obligations, p. 91; embora nunca utilizando essa exata expressão, também se deduz tal conclusão em HOGG, Promises and

Contract Law, p. 112. 94 D. 45,1,13,7,1.

fosse unicamente o emprego de uma forma verbal diferente daquela que seria exigível na fórmula. A terceira característica é a abstração. O negócio proveniente da stipulatio aparenta ser desprovido de causa95). Por exemplo, a promessa de dar

(dare centum) era um negócio formal feito através da capa da stipulatio, mas não continha causa: não se indicava se a promessa era para a prestação de uma garantia, pagamento de uma dívida, constituição de um dote ou realização de uma

donatio. Finalmente, à ultima característica denomino por método comunicacional

reflexo. O aspeto mais interessante da ordenação discursiva da stipulatio tem que ver com a construção e estrutura do seu diálogo formativo. A forma como as comunicações tinham de ser feitas compreendia a particularidade de a pergunta ser enunciada como o efeito perlocutório da busca pela força ilocutória de prometer – “prometes dar-me (z)?”. Quem era detentor da iniciativa do discurso era o promissário. O promitente limitava-se simplesmente a responder “prometo” (“spondeo”). À partida, verificados os demais requisitos de existência e validade, desta sua resposta emergia a obrigação unilateral. O consentimento do beneficiário mitigava-se no ato enunciativo da pergunta. Este jogo “pergunta-resposta” é comum no diálogo formativo de negócios plurilaterais independentemente da época histórica, mas a peculiaridade da stipulatio consistia no facto de que a declaração que continha o objeto do contrato unilateral era feita não pelo eventual obrigado, mas pelo promissário, contrariando os padrões normais segundo os quais a iniciativa vinculativa parte do promitente (promessas reflexas).

95 Neste sentido, HECK, Grundriss des Schuldrechts, §129; entre nós, OLIVEIRA ASCENSÃO,

Teoria Geral, II, p. 302. A stipulatio poderia ser causal se as partes inserissem a causa nas estipulações. Embora alguns negócios tenham nascido como negócios causais, sofreram uma mutação para a abstração mantendo, contudo, a forma (SANTOS JUSTO, Direito privado romano,

II, p. 231). Destacam-se como negócios abstratos, a mancipatio, a in iure cessio e a acceptilatio (BETTI, Istituzioni, pp. 122-4). Este último negócio podia extinguir uma obrigação emergente de

uma stipulatio. Discutindo a natureza abstrata da stipulatio, vide ZIMMERMANN, The Law of

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 33-38)