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D E VOLTA À E UROPA CONTINENTAL : O HOLOCAUSTO DA PROMESSA UNILATERAL E A ESCOLA CLÁSSICA DE DIREITO NATURAL

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 82-88)

B F ORMS OF ACTION

3.3. D E VOLTA À E UROPA CONTINENTAL : O HOLOCAUSTO DA PROMESSA UNILATERAL E A ESCOLA CLÁSSICA DE DIREITO NATURAL

O advento da revolução jurídico-filosófica do séc. XIX nos ordenamentos jurídicos europeus deveu-se em grande parte ao contributo de ilustres juristas

ultramontanus. Inter alia, destacarei aqueles que, na minha opinião, mais se dedicaram ao tema da promessa: GROTIUS, PUFENDORF,BARBEYRAR e WOLFF.

311 Até ao início do séc. XIX o amor e o afeto da família eram vistos como consideration (na lei dos trusts) – cfr. IBBETSON, A Historical Introduction to the Law of Obligations, pp. 206-8.

312 Cfr. SWAIN, “Contract as Promise”, p. 10; IBBETSON, “Consideration and the Theory of Contract in the Sixteenth Century Common Law”, p. 67.

Acompanhando filósofos como HOBBES, ROUSSEAU e LOCKE, estes nomes

fizeram parte daquilo a que se veio a chamar da escolástica clássica do direito natural, fundada pelo holandês HUGO DE GROOT (GROTIUS), escola de pensamento

essa que foi beber à doutrina aristotélico-tomista, tendo sido a última geração de juristas com pensamentos ligados à ideia jusnaturalista. GROTIUS rompe com a

tradição e estilo de escrita jurídica dos seus antepassados intelectuais mais próximos. Os seus sucessores, PUFENDORF e BARBEYRAC seguiram-no, criando

uma nova ciência jurídica. Com bases pré-iluministas fundadas na ideia de racionalismo, esta escola entendia que o estado-natureza do ser humano pré-existia a qualquer conceito jurídico ou até à própria sociedade314. O poder normativo jaz

no indivíduo que o transmite a outras pessoas jurídicas ou à sociedade pelos mais variados motivos315. É através do ato de prometer que o indivíduo atribui ao

beneficiário o poder normativo de exigir o cumprimento da prestação debitória316.

Esta transferência de poderes tem o nome de particulae libertatis, porque parte da liberdade do promitente fora transferida com a declaração promissória317.

Na famosa obra De jure belli ac bacis (1625) GROTIUS dedica um capítulo

inteiro do seu Livro II ao tema da promessa318. Como nota HOGG319, é curioso que

GROTIUS tenha tratado da promessa antes do contrato – ao contrário de

PUFENDORF que procurou unificar os conceitos320. Sem mais desenvolvimentos,

314 Vide, por todos, HOCHSTRASSER, Natural Law Theories in the Early Enlightment, passim; AAVV, A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence, pp. 47 e ss.; GORDLEY, The

Jurists: a Critical History, cap. V, pp. 128 e ss.; The Philosophical Origins of Modern Contract

Doctrine, pp. 112 e ss.

315 As noções de poderes normativos instrínsecos ao ser humano são bem visíveis nas obras

Leviathan (THOMAS HOBBES, 1660) e Du contrat sociale ou príncipes du droit politique (JEAN- JACQUES ROUSSEAU, 1762).

316 AAVV, A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence, p. 50. 317 LIVELY,REEVE, Modern Political Theory from Hobbes to Marx, p. 83.

318 GROTIUS, De jure belli ac pacis (On the War of Law and Peace), trad. por A.C. CAMPBELL, Kitchener, Batoche Books, 2001, pp. 107 e ss. As referências serão feitas, todavia, aos livros, capítulos e parágrafos do original. Desenvolvendo, ver a monografia de DIESSELHORST, Die

Lehre des Hugo Grotius vom Versprechen.

319 Promises and Contract Law, p. 128; também ATIYAH, Promises, Morals and Law, pp. 8 e ss. 320 Para uma análise das razões subjacentes, ZIMMERMANN, The Law of Obligations, pp. 567-8.

GROTIUS afirma que as obrigações voluntárias nascem diretamente das promessas

e não de acordos321. Criticou CONNANUS ao referir que a obrigação de

cumprimento de uma promessa não se funda no valor de justiça, mas sim na honra e honestidade: segundo a escola clássica de direito natural, a honestidade é pessoal e independente de efeitos externos. As críticas de PUFENDORF foram ainda mais

duras: afirmou que doutrina de CONNANNUS “destrói toda a possibilidade de

fraternidade e liberalidade322”. Mas GROTIUS estava bem ciente da dicotomia entre

direito e moral, e bem assim, da sua afetação na ideia de promessa. Após tratar do tema das obrigações imperfeitas (condicionais323), afirma que as promessas

juridicamente vinculativas são aquelas nos termos das quais existe uma manifestação externa da intenção de conferir um direito na contraparte, invocando a particulae libertatis (alienatio particulae cuiusdam nostrae libertatis324) quando

equipara o ato de prometer à transferência de propriedade325.

GROTIUS também se posicionou quanto à discussão sobre a necessidade de

aceitação da promessa por parte do beneficiário. Apoiando a sua explicação na doutrina de LESSIUS, admite a aparente efetividade de promessas desprovidas de

aceitação no ius romanum – como é o caso da pollicitatio. Mas rapidamente destrói essa aparência, ao mencionar que qualquer ato gratuito de transferência de propriedade requer sempre aceitação do adquirente (ius proprium alteri non

321 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, I.

322 PUFENDORF, De jure naturae et gentium, III, 9. E pergunta, em seguida: “porque não se pode gostar e confiar em alguém que me promete dar alguma coisa?” (ibid.); ATIYAH considera este

argumento falacioso (Promises, Morals and Law, p. 11). 323 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, III e XV.

324 Para desenvolvimentos, vide BEHRENDS, “Treu und Glauben”, pp. 964 e ss.; SCHMIDLIN, “Die Beiden Vertragsmodelle des europäischen Zivilrechts”, pp. 187 e ss.

dat)326-327. E, na esteira de LESSIUS328, defende que a consequência jurídica da

declaração promissória é apenas a irrevogabilidade do ato329. Esta conclusão

derivaria tão-só do direito positivo e não da lei natural. PUFENDORF330 e

BARBEYRAC (e também, mais tarde na transição pandectística, POTHIER331)

apoiariam estas teses que tornaram aceitação da promessa como um princípio de direito natural332.

PUFENDORF, contudo, discordava do seu mestre no que toca ao argumento

relativo à invocação indireta do instituto da pollicitatio. Era da opinião que a

pollicitatio não era uma promessa unilateral, mas sim uma promessa contida num acordo: o Estado seria a contraparte desse acordo, tendo previamente aceite a promessa333. O jurista alemão leva a ideia de aceitação da promessa à definição de

contrato: se a promessa tem de ser aceite e se todos os contratos são baseados na aceitação mútua, então, um contrato deve ser entendido como uma promessa aceite334. GROTIUS e PUFENDORF são da opinião de que para se saber qual o

momento em que uma promessa se torna eficaz após a aceitação (perfecta

promissio), é relevante distinguir entre promessas unilaterais e promessas tendentes a um contrato. No primeiro caso, se a promessa for gratuita, ela é eficaz sempre que o promissário exteriorizar a sua aceitação independentemente do conhecimento por parte do promitente quanto a esse facto; no segundo caso, ela

326 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, XIII. No mesmo sentido se posicionou mais tarde CHRISTIAN WOLFF (Ius naturae: methodo scientifica pertractatum, §7).

327 Como nota NANZ, GROTIUS é o pioneiro de uma integração orgânica da figura da promessa, estabelecendo fronteiras entre a noção de prometer e o seu efeito perlocutório de aceitar (NANZ,

Die Entstehung des allgemeinen Vertragsbegriffs, p. 146). 328 LESSIUS, De iustitia et iure, livro II, Cap. 18, 6.

329 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, XIV.

330 PUFENDORF, De jure naturae et gentium, III, VI, XV; Elementorum Jurisprudentiae

universalis libri duo, trad. por WILLIAM ABBOT OLDFATHER, 1931 (as referências serão feitas

tendo em conta a estrutura original da obra. 331 POTHIER, Traité des obligations, pp. 9-10.

332 GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 81. 333 PUFENDORF, De jure naturae et gentium, III, VI, XV.

torna-se eficaz apenas após conhecimento desse ato reativo pelo promitente335. É

exatamente a acceptio que atribui o direito à prestação (ius proprium alteri

conferre) e, nesse sentido, a sua revogação antes da aceitação não se torna injusta336.

Um pouco mais tarde, CHRISTIAN WOLFF, embebido pelas ideias

iluministas, vem acrescentar um elemento ao debate ao afirmar que “quando alguém indica que pretende fazer ou dar alguma coisa a outrem, tencionando transferir o direito à prestação para essa pessoa, diz-se que fez uma promessa”337.

Esta definição de promessa comporta um importante corolário: não parece atribuir relevância ao ato de aceitação como causa constitutiva e condição de eficácia da promessa338. Por este motivo, WOLFF introduz no debate que adjetivou de

“confuso” a distinção entre validade e eficácia. Para o jurista, a promessa sem aceitação é válida, porém, ineficaz339. Aqui nasceu um dos fundamentos do Vertragsprinzip.

Alguns autores interpretam a alusão por parte de GROTIUS a “promessas

condicionais”340 no sentido de as ajustar num quadro negocial plurilateral341. A sua

definição de contrato aponta para uma categoria que abrange tanto atos complexos de troca bem como simples atribuições de benefícios, reformulando os conceitos aristotélicos de liberalidade e justiça comutativa, sem nunca abandonar a ideia de reciprocidade. Esta mesma ideia de reciprocidade salvará a vinculatividade jurídica de promessas unilaterais (puramente gratuitas) no quadro de pensamento dos seus sucessores. PUFENDORF, na obra Elementorum jurisprudentiae universalis (definição XII), dá-nos a sua noção de “obrigação” como uma

335 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, XV. 336 GROTIUS, De jure belli ac pacis, II, XI, XVI. 337 WOLFF, Ius naturae, §361.

338 Desenvolvendo, GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, pp. 75- 6.

339 WOLFF, Ius naturae, §361 e §363.

340 Ainda que a condição seja implícita (tacit conditio), idem, II, XVI, XXV, 341 Assim, HOGG, Promises and Contract Law, p. 129.

“qualidade operativa moral através da qual alguém se encontra vinculado a fornecer, permitir, ou a fazer alguma coisa”342.

PUFENDORF descreve três classificações de obrigações entre as quais se

encontra a divisão conceitual entre obrigações mútuas e não-mútuas343. Uma

obrigação mútua é uma obrigação à qual corresponde outra obrigação (synallagma e mutualismo)344. Contrariamente, uma obrigação não-mútua funda-se nas ideias

de unilateralidade e, num certo sentido, de desigualdade, como sucede no dever de absoluta obediência que existe perante DEUS, em que não há um contra-dever

correspondente da parte divina345. PUFENDORF não utilizou este exemplo em vão.

Na verdade, fê-lo com a subtileza necessária para extrair uma outra conclusão: a de que, perante o direito natural não existem num plano estritamente horizontal, obrigações não-mútuas, pois é “repugnante face à igualdade natural entre Homens que um se vincule do outro de tal forma que este último não se vincule também perante aquele”346. Por conseguinte, parece daqui decorrer que o filósofo tomou

posição no sentido da inoperância jurídica de promessas puramente gratuitas. Os jusnaturalistas entendem que o destinatário de declarações promissórias puramente gratuitas tem uma obrigação (recíproca) de gratidão face ao promitente, dever esse que se constitui apenas no plano moral347.

GROTIUS foi o último jusnaturalista a enquadrar a promessa enquanto

partícula atómica geradora de obrigações, passando da justiça para a confiança; da unilateralidade para a plurilateralidade; da individualidade para a reciprocidade;

342 PUFENDORF, Elementorum jurisprudentiae universalis, I, XII.

343 PUFENDORF, idem, 1-6. As outras classificações dicotómicas são (i) obrigações congénitas (emanam da natureza humana; deveres perante DEUS; direito natural) e obrigações adventícias

(derivam da lei do Homem e da vontade do indivíduo; direito positivo); (ii) obrigações igualitárias (existem horizontalmente entre indivíduos do mesmo estrato civil) e obrigações inigualitárias (existem verticalmente entre os indivíduos e o divino ou entre os indivíduos de estratos civis diferentes).

344 PUFENDORF, Elementorum jurisprudentiae universalis, I, XII, 5 e 6. 345 PUFENDORF, Elementorum jurisprudentiae universalis, I, XII, 5. 346 Ibid.

do monólogo para o diálogo. Os seus sucessores vilipendiaram tal conceção, forjando uma nova linha de pensamento que, em pleno advento da revolução jurídico-privada do séc. XIX, se tornou o verdadeiro holocausto das ideias promissórias. Essa mudança paradigmática foi gradativa. PUFENDORF, embora

concordante em muitos aspetos com o seu mestre tomou um caminho diferente quanto ao papel da promessa enquanto elemento constituinte de obrigações. Nas suas obras De jure naturae et gentium e Elementorum jurisprudentiae universalis o jurista alemão deu mais ênfase ao contrato em detrimento da promessa, na medida em que concebia esta figura como um meio analítico daquela, um elemento fundamental na constituição de obrigações: um contrato é uma promessa aceite. Por fim, PUFENDORF aproveitou o conceito de “promessa condicional” do filósofo

holandês de forma a construir uma teoria do contrato assente na já mencionada ideia de mutualismo348.

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 82-88)