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D ECLARAÇÃO PROMISSÓRIA , AUTO CONSTATATIVIDADE E PERFORMATIVIDADE

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 119-125)

P ARA UMA TEORIA DA PROMESSA

2. D ECOMPOSIÇÃO E ANÁLISE

2.2. D ECLARAÇÃO PROMISSÓRIA , AUTO CONSTATATIVIDADE E PERFORMATIVIDADE

A existência de uma declaração promissória constitui um pressuposto essencial à emergência de uma promessa. É a causa linguística da constituição das situações jurídicas ativas e passivas a ela associadas. Na promessa unilateral, a emergência obrigacional depende da eficácia (da perfeição) da declaração negocial, por isso, embora conceptualmente diferentes, a declaração promissória sobrepõe-se à declaração negocial do negócio jurídico previsto. Nos contratos obrigacionais, por seu turno, tal declaração pode assumir uma multiplicidade de formas: proposta, convite a contratar469 (invitatio ad offerendum470) ou simples

declaração negocial. Cada uma destas modalidades compreende um discurso promissório específico.

É através da magia das palavras que se criam promessas. A utilização do verbo “prometer” não é pressuposto essencial da declaração promissória, podendo ser substituído por outros verbos, tais como “garantir” ou “jurar” 471. O recurso a

469 O convite a contratar é entendido pelo ordenamento jurídico como modelo subsidiário de atribuição de significado jurídico a uma declaração negocial que não é completa, firme, ou formalmente adequada (vide, por exemplo, o artigo 32.º/1 do RJCE).

470 A expressão alemã “Aufforderung zur Abgabe eines Angebots invitation ad offerendum” encontra paralelo direto no direito inglês no termo letter of intent e, no direito italiano, lettere di

intenti. Sobre a temática, no direito alemão, FLUME, Allgemeiner Teil, II, §35, p. 635; no direito

italiano, CANEPA, “Dichiarazione di intenti”, pp. 329 e ss.; GERI, “L’interpretazione del contrato”

pp. 122 e ss.

471 O juramento é um conceito ligeiramente mais amplo do que a promessa. HOGG apresenta outros verbos semanticamente equivalentes ao verbo “prometer,”: “accept”, “dedicate”,

este tipo de verbos não é fundamental, mas ajuda o intérprete – maxime o alocutário – a apreciar o (eventual) caráter promissório da declaração. Consequentemente, declarações como “eu irei praticar o ato (z)” podem tornar-se manifestamente ambíguas.

Na esteira de AUSTIN, a promessa compreende um enunciado

performativo472 porquanto é através da declaração promissória que se constitui

alguma coisa (hic: situação jurídica), tendo um efeito ex novo. AUSTIN estabelece

uma distinção entre enunciados constatativos e enunciados performativos473. A

primeira categoria compreende aqueles em que “se diz algo” (“to say something”), cujo conteúdo semântico se reporta a realidades pré-existentes independentemente do ato declarativo (“está a chover”, “são sete horas”, “o negócio foi assinado”, “ordenei a transferência bancária”). Este tipo de enunciados está impreterivelmente sujeito a uma averiguação de veracidade (v/f) pois o que está em causa são realidades mensuráveis e concretas aferíveis a todo o tempo474. Não

há outra alteração do status quo (sq) para além daquela decorrente da própria inserção da declaração constatativa no mundo dos factos. É possível saber se está realmente a chover ou se o negócio foi efetivamente assinado. Sendo uma declaração de ciência, o teste (v/f) é feito em função do resultado obtido através da

“undertake”, guarantee”, “give (my word)”, “commit”, “pledge” (Promises and Contract Law, p. 8).

472 O substantivo “performativo” provém do inglês “to perform” que significa, à letra, “realizar” (“fazer alguma coisa”).

473 Cfr. AUSTIN, How to do things with words; “Performative utterances”, pp. 220-39; “Performative-constatative”, pp. 13 e ss. Rigorosamente, já JOHN RAWLS, em 1955, tinha

“neologicamente” construído a ideia de enunciado performativo, maxime no que respeita à ideia de “prometer” – cfr. RAWLS, “Two Concepts of Rules”, p. 30. Ver também CONDORAVDI,LAUER, “Performative Verbs and Performative Acts”, pp. 1 e ss.

474 Uma forma fácil de entender este tipo de enunciados é verificar a existência de verbos como “ser” ou “estar” que constituem verbos expressivos de estados e/ou de realidades. Atente-se para a língua hebraica que é bem ilustrativa da questão em análise. O verbo “hayah” – que, por sua vez, originou o substantivo “Yahweh” (JAVÉ – DEUS) – tem um múltiplo significado de “ser,

existir, estar, acontecer”. Estes verbos são expressivos de enunciados constatativos. Como curiosidade, e a título de exemplo – apresentando até uma tautologia, por um lado, e a concretização do paradoxo/teorema de BANACH-TARSKI, por outro – veja-se a forma como DEUS

acareação fática da declaração com (sq) num determinado momento. Já a segunda categoria, onde se inclui a promessa, compreende enunciados não-descritivos nos termos dos quais se “produz algo” (“to do something”), ou seja, são constitutivos de novas realidades (no caso da promessa unilateral, a constituição de um elo obrigacional)475. O conteúdo destes enunciados não deverá ser analisado sobre a

égide do teste (v/f), mas sim, segundo AUSTIN, sobre critérios de felicidade

(“happy, unhappy”)476. Os enunciados performativos, porque são constitutivos,

provocam alterações em (sq). Neste sentido, num certo momento temporal, (t1),

verifica-se (sq1); a mera enunciação de (dp), em (t2) provoca alterações em (sq);

em (t2), “(sq2)=(sq1)+(dp)”. Na minha opinião, esta simples equação lógica

consagra, de forma implícita, um corolário relevante: na medida em que (dp)⊂(sq2), isto significa que, a partir de (t2), (dp) estará também sujeita ao teste

(v/f). Tal ilação é uma consequência inata ao efeito performativo, consequência essa que denomino por auto-constatatividade (ou performatividade imprópria)477.

Não é paradoxal afirmar-se que a promessa tem natureza performativa e auto- constatativa, ressalvando-se que a natureza performativa se encontra no negócio jurídico e a natureza auto-constatativa, na declaração promissória.

Desenvolvamos melhor este problema através da análise do enunciado paradigmático da promessa descrito na terceira pessoa:

(α): “(A), através de (dp), promete (p) a (B) fazer (z)”478

475 Para uma análise profunda do negócio jurídico como ato performativo, vide, por todos, FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, pp. 121 e ss.

476 AUSTIN, How to do things with words, pp. 14, 133.

477 Em oposição a hétero-constatividade (que é o caso comum das declarações de ciência). Esta problemática será retomada aquando da análise à promessa de cumprimento (cfr., infra, III, 2.1.3). 478 Nesta fórmula (α), (A) e (B) representam, respetivamente, o promitente e o promissário; (dp), a declaração promissória; e (z) o ato prometido. Note-se que todos os exemplos que, no seguimento do presente Capítulo tenham por base uma promessa de (A) a (B), salvo disposição

expressa em contrário, (B) pode encontrar-se determinado ou por determinar (neste último caso, se estivermos perante o quadro de uma promessa pública). Por outro lado, a expressão “através de” é indicadora da ação de professar o enunciado; a forma verbal “prometer” (p) permite atribuir a força ilocutória inerente à promessa (cfr. AUSTIN, How to do things with words, passim) e SEARLE (Speech acts, passim; Expression and Meaning, pp. 1-29); finalmente, o verbo “fazer”,

Enquanto enunciado performativo, a promessa (α) tem temporalmente um momento constitutivo: o momento da entrada da declaração no plano dos factos (t). Em momento anterior a (t), ou seja (t0-x)479 ela é inexistente tal como as

possíveis situações jurídicas ativas e passivas a ela acopladas e funcionalmente dependentes. É exatamente por este motivo que, na teoria da promessa unilateral, o ato declarativo (dp) é o ato performativo e, ao mesmo tempo, a causa constitutiva daqueles fenómenos jurídicos480. A diferença concetual entre a declaração

promissória (dp) e a promessa (P) só se torna evidente quando acareadas à dualidade discursiva na formação e na composição do negócio jurídico481. Assim,

nos negócios jurídicos unilaterais obrigacionais, a perfeição de (dp) gera automaticamente os efeitos nela previstos. Isto significa, em termos lógicos que

(dp) tem uma ligação simbiótica com (P), mas (dp)⇎(P). Nos contratos obrigacionais, por sua vez, os efeitos das declarações promissórias (dp) não produzem, tout court, efeitos obrigacionais – efeito essencial de (P). Por exemplo, no caso da proposta negocial, os efeitos de (P) só se verificam depois da acceptio que provoca o presumível consensus (artigo 232.º do CC).

Como se nota, promessa é um conceito amplo e ambíguo: tanto pode significar o negócio jurídico unilateral de natureza obrigacional como declaração promissória como outrossim, a função eficiente na estrutura textual do negócio jurídico482. Na terminologia jurídica, a referência a (dp) representará, para um

para além de estar perifrasticamente conjugado com o verbo “prometer”, evidencia ação de praticar o ato prometido, ou seja, o ato de prestar.

479 Em que x é sempre um número negativo.

480 Neste âmbito, causa tem o sentido de “causa da obrigação”, ou seja, a fonte obrigacional – tal como sucede no caso da promessa de cumprimento (artigo 458.º do CC) – assim também, MENEZES CORDEIRO, Tratado, VII, pp. 614-5.

481 Nas palavras deMENEZES CORDEIRO, “o negócio não se confunde com a declaração: esta é um pressuposto, dependente de uma opção humana comunicada para o exterior; aquele é a eficácia resultante da declaração, desde que esta seja reconhecida, pelo sistema, como apta para modificar o universo jurídico” (Tratado, II, p. 123).

482 Assim, FERREIRADE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, pp. 449 e ss. Segundo o autor, “a função eficiente (Fef) é portanto o elemento predicativo do texto negocial com aptidão para gerar a performatividade do acto negocial quanto aos seus efeitos jurídicos directos, isto é, quanto à mutação das situações sob um ponto de vista estritamente jurídico”. Para FERREIRADE ALMEIDA,

jurista de civil law, a ideia de declaração de intenção (déclaration de volonté,

dichiarazione di volontà, Willenserklärung) tendente à constituição de um negócio jurídico obrigacional, independentemente do modelo discursivo: declaração

negocial. Para o common lawyer, promise é a causa das actions, a estrutura do

contract e pode ser, inclusivamente, o próprio contrato (contract as promise483).

A qualificação de (α) como constituindo uma promessa implica inexoravelmente que (dp) tem força ilocutória de prometer (p)484. Segundo a teoria

dos atos de fala, ela é um ato de linguagem performativo com força ilocutória485.

Enquadrar a noção de promessa enquanto ato de força ilocutória, envolvendo-a num mero ato jurídico-declarativo não passa, porém, de uma verdadeira sinédoque. O núcleo dos efeitos eficientes da promessa vive na força ilocutória do ato

a promessa é “o paradigma da função eficiente dos negócios jurídicos obrigacionais” (idem, p. 457) o que vem, de resto resolver o problema de VON WRIGHTem “On Promises”, p. 227, quanto

à sua ontologia.

483A ideia de “contrato como promessa” foi sedimentada no contexto das famílias de common

law pelos contributos das doutrinas de FRIED, do Restatement (2nd) on the Law of Contracts, e

mais tarde de SHEINMAN (“Are Normal Contracts Normal Promises?”, pp. 517 e ss.), doutrina

essa que perdura até ao presente milénio. Como aponta SCANLON, “a similitude entre a promise

e o contract é tão óbvia que é natural presumir que muito há para se aprender sobre uma destas noções através do estudo da outra, ou mesmo que a noção jurídica de contract pode ser compreendida como a enquadrando na ideia moral de promise” (“Promises and Contracts”, p. 87). No mesmo sentido, SHEINMAN, “Agreement as Joint Promise”, pp. 365 e ss. A ideia do

“contract as promise” foi criticada por muitos common lawyers que procuraram aproximar a ideia de contract do conceito de agreement (com consideration) retirando a promise do seu eixo estrutural. A este propósito WHITTAKER entende que contract é um “acordo (agreement) no qual

emergem obrigações que são exigíveis ou reconhecidas pela lei” (WHITTAKER, “Introductory”, §

1-001. Também contra aquele paradigma, LIGHTSEY, “A Critique of the Promise Model of

Contract”, pp. 45 e ss.; e, mais moderadamente, ÁRDAL, “Ought we Keep Contracts Because

They Are Promises”, pp. 655 e ss. Ver igualmente, DE MOOR, “Are Contracts Promises?”, pp.

103 e ss.

484 O símbolo normalmente utilizado para expressar a força ilocutória de um ato é, quanto ao género, “F(p)”, e “F(pr)”, no que toca particularmente à promessa. Outros casos como pedidos, avisos e perguntas “sim e não” terão, respetivamente, o seguintes símbolos “!(p)”, “W (p)” e “?(p)” (cfr. SEARLE, Speech acts, p. 31.)

485 AUSTIN categoriza três diferentes atos de fala: (i) os atos locutórios (“the saying”), (ii) os atos ilocutórios (“in saying”) e (iii) os atos perlocutórios (“by saying”) – How to do things with words, p. 109. Contra a posição de AUSTIN quanto à qualificação da promessa enquanto ato ilocutório de

linguagem, HICKEY, “A Promise is a Promise”, que a coloca o quadro dos atos perlocutórios de

linguagem (pp. 69-70). É importante relembrar que a minha análise parte do ponto de vista do observador e não da perspetiva subjetiva do promitente.

declarativo (promising) 486-487. Esta força ilocutória (de prometer) não deve ser

confundida com o negócio jurídico que lhe acolhe, por exemplo, com a promessa unilateral (Pu). Neste sentido, a correlação entre estes três elementos (promessa unilateral, declaração promissória e força ilocutória de prometer) pode ser descrita da seguinte forma: (Pu) ⊃(dp)∧(dp) ⊃ (p).

Com este pano de fundo, ainda se torna mister distinguir entre (i) o ato declarativo e (ii) o enunciado. O ato declarativo pode ser fonético ou simbólico, mas enquadrar-se-á, em qualquer caso, na realidade concreta: ele está sujeito à aferição do teste (v/f), porquanto é um “ato” que se torna “facto” (auto-

constatatividade). Já no que toca ao enunciado, este consagra, para além da sintaxe e da morfologia das palavras, a semântica da declaração. O enunciado é o conteúdo do ato declarativo: pode estar sujeito à apreciação das condições de veracidade se for constatativo (hétero-constatatividade) ou, no caso de ser (também) performativo, ele é causa constitutiva da(s) nova(s) realidade(s). A semântica do enunciado enquadra-se num plano meta-factual, numa realidade abstrata, na realidade do significado. A maneira que o declarante tem de enunciar a promessa – ou seja, de lhe atribuir eficácia performativa através da força ilocutória – é sempre através de um ato declarativo, o que torna a relação destes dois conceitos numa relação funcional: este serve para dar corpo ao conteúdo semântico daquele. É precisamente esta diferença de patamares – realidade fáctica dos atos, por um

486 Nesta sede existe alguma confusão no quadro da filosofia da linguagem no que toca à oscilação por parte de SEARLE entre a qualificação da promessa como atos de linguagem ou atos ilocutórios

e o ato de prometer. Como bem escreve FERREIRA DE ALMEIDA, “(e)m termos da teoria do

negócio jurídico, acto é o negócio, como é também a enunciação do seu texto ou de parte dele; a promessa é um elemento funcional, ou uma categoria definida pela função de um negócio jurídico; o acto de prometer confunde-se com a enunciação em que se integre o paradigma funcional chamado promessa” (FERREIRADE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, p. 455, nota de

rodapé 28).

487 A forma verbal “prometer” é um mero exemplo, mas talvez configure o exemplo mais expressivo da força ilocutória associada à declaração. Mesmo através do discurso indireto

(indirect speech) encontram-se enunciados ilocutórios sem recurso ao verbo “prometer” (em geral, sobre o discurso indireto, SEARLE, “Indirect Speech Acts”, pp. 225 e ss.).

lado, e realidade semântica dos enunciados, por outro lado, que confere uma multiplicidade de funções linguístico-jurídicas à figura da promessa488.

2.3.CONDICIONALIDADE FORMATIVO-ESTRUTURAL; DISCURSOS: MONÓLOGOS

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