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A UTO PROMESSAS

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 158-164)

P ARA UMA TEORIA DA PROMESSA

2. D ECOMPOSIÇÃO E ANÁLISE

2.4. E XPRESSIVIDADE , IMPLICITUDE E NEGATIVIDADE APARENTE

2.5.5. A UTO PROMESSAS

Quando alguém diz “eu prometo-me (z)” está, rigorosa e efetivamente, a efetuar uma promessa? Estar-se-á perante esta figura sempre que o promitente e o promissário forem a mesma pessoa?

No dia-a-dia, as auto-promessas ocorrem com muita frequência: é habitual as pessoas prometerem (a si próprias) que tentarão ganhar uma determinada competição, prometerem serem mais responsáveis ou terminarem um projeto. No plano estritamente jurídico, a questão pode ser ligeiramente mais complexa dada a panóplia de possibilidades que o sistema concede às partes da relação promissória no que respeita à mobilidade inter-subjetiva das situações ativas e passivas contidas no elo obrigacional.

594 No direito alemão, o §181 do BGB (Insichgeschäft) indica que o representante não pode (a menos que tal seja consentido) celebrar em nome do representado consigo mesmo ou em representação de terceiro, a menos que o negócio jurídico consista exclusivamente no cumprimento de uma obrigação – cfr. WOLF,NEUER, Allgemeiner Teil, pp. 604 e ss.

595 Neste sentido, FRENSCH, in PRÜTTING et al., BGB Kommentar, p. 279.

596Também se utiliza a expressão “auto-negócio” ou, pese embora estruturalmente redutor, “auto- contrato” – cfr. STJ, proc. n.º532/2001.L1.S1, de 25-06-2013 (FONSECA RAMOS) – para definir

Os filósofos, linguistas e juristas encontram-se divididos. Quando são apresentadas as noves condições na teoria dos atos de fala de SEARLE não há

qualquer referência a este problema, podendo deduzir-se do seu texto que a hipótese da self-promise é, de um ponto de vista lógico-comunicativo, manifestamente absurda597. No mesmo sentido se posicionam VON WRIGHT598 e

STOLJAR599. Contrária e recentemente, ecoam algumas vozes no sentido de alterar

esta visão paradigmática, considerando que, na verdade, não existem razões linguísticas600 nem tão-pouco filosóficas601 para deixar de enquadrar as auto-

promessas como atos de fala válidos. Sou da opinião de que, no plano para- jurídico, os casos de auto-promessas, embora populares, não deixam de consubstanciar situações de esquizofrenia subjetiva que – e aqui, na esteira de STOLJAR – mitigam a tensão típica entre, por um lado, a intenção de prometer (e,

talvez, cumprir), e por outro, a expectativa de que o ato prometido seja praticado. Não me debruçarei sobre questões filosóficas e linguísticas. Preocupar-me-ei somente em enquadrar esta temática no plano jurídico.

Denomino por auto-promessa originária a promessa que, desde a sua génese, compreende uma equivalência de identidades entre o promitente e o promissário. Estas promessas são, regra geral, conceptualmente absurdas e

597 SEARLE, Speech acts, pp. 57 e ss. 598“On Promises”, pp. 277-8.

599Nas palavras do autor, “a promise merely to oneself may be popular usage but is nonetheless

odd: logically odd because it assumes away the very tension animating a typical promise, that between the intentions declared by one side and the expectations on the other to whom, and in fact for whom, these intentions are declared” (“Promise, Expectation and Agreement”, p. 193).

600 DURANTI, The Antropology of Intentions, p. 72.

601 ROSATI, “The Importance of Self-Promises”, pp. 124 e ss. A autora é da opinião que as auto- promessas servem de elemento fundamental na prossecução dos interessas da autonomia privada. A vexata quaestio não recai na incompatibilidade dos intervenientes abstratos serem, em concreto, reconduzidos a um único indivíduo, mas no facto de esta modalidade de promessas permitir a quem promete (e, ao mesmo tempo, a quem beneficia) revogar a todo o tempo a promessa feita, ou seja, extinguir a obrigação, de acordo com a clássica “promisee release condition”. ROSATI

remata com um retoque à famosa Simple Theory of Promising de OWENS, afirmando que as auto-

promessas configuram um exemplo de interesses individuais a tomarem uma posição autoritária sobre os próprios indivíduos e não, como propõe OWENS, o interesse autoritário do promissário

juridicamente inadmissíveis: alguém promete vender uma coisa e promete comprá- la, ou promete fazer uma obra ao mesmo tempo que se obriga a pagar o respetivo preço. É exatamente aqui que se mostra necessário retomar o problema do negócio consigo mesmo na vertente da atuação em nome próprio, mas por conta de terceiro, no quadro de um mandato sem representação, cuja resolução foi deixada em aberto. Com efeito, importa distinguir o regime jurídico em causa. Se o ordenamento jurídico acolher a tese da transferência imediata, não se verifica, em bom rigor, uma situação auto-promissória – a questão reconduzir-se-á à temática da representação e figuras afins. Contudo, e como sucede no caso português, poder-se-á configurar uma situação de auto-promessa originária nos casos a lei adota a tese da dupla transferência, na medida em que o mandatário assume, ex

lege, a obrigação de transferir num segundo momento a sua posição negocial, podendo optar por incumprir essa obrigação, incorrendo em responsabilidade obrigacional. Tal situação de equivalência de identidades na relação promissória aquando da celebração do negócio afigura-se como inadmissível na teoria do negócio jurídico. Ela não se confunde, todavia, com a confusão – passe a aparente repetição –, uma das causas de extinção da obrigação (artigos 868.º e ss. do CC602)

que, conforme veremos em seguida, apenas se aplica a casos de equivalência identitária secundária, ou seja, quando já se constituiu o vínculo obrigacional.

Por conseguinte, quando se verifique uma situação promissória segundo a qual a identidade de sujeitos aconteceu num momento posterior à emergência da obrigação independentemente da sua eficácia e exigibilidade: (Pt) ⇔(Pa) em (t1+x), estamos perante um caso de auto-promessa derivada. A sua causa jurídica

pode provir de diferentes situações tais como, cessão de crédito, transferência de posição contratual, assunção de dívida, ou mesmo um resultado de uma transferência mortis causae. Por razões de simplicidade expositiva, analisarei apenas o primeiro caso, deixando desde já claro que as conclusões que se extrair aplicar-se-ão, mutatis mutandis a todos os outros.

A mais direta e óbvia resposta para um civil lawyer é enquadrar as situações mencionadas numa das causas de extinção das obrigações jurídicas, a confusão. Assim, quando a mesma pessoa adquire a qualidade de credor da obrigação contida na promessa e devedor do ato prometido, consideram-se extintos “o crédito e a dívida”. Assumindo que o vínculo obrigacional tem natureza promissória, a lei considera juridicamente inoperantes as situações de auto-promessas derivadas. A confusão não prejudica, todavia, direitos de terceiro (artigo 871.º/1 do CC), ou seja, a eficácia externa do vínculo obrigacional perdurará não obstante os efeitos extintivos da confusão603. Julgo que estes casos demonstram a não extinção da

relação promissória (P) – que é diferente do vínculo obrigacional nela contido. Não deixa de ser verdade que os efeitos da confusão não se circunscrevem apenas à ineficácia ou a inexigibilidade da obrigação, mas provocam, sem dúvidas, a sua inexistência604. Todavia, embora o objeto da promessa (P) seja o elo obrigacional

estabelecido entre dois sujeitos diferentes, parece resultar do regime legal que quando a mesma afetar, direta ou indiretamente, interesses de terceiros, a promessa manter-se-á existente como fundamento jurídico de tais interesses. Por outras palavras, está-se perante uma situação de promessas existentes sem objeto. Este – o objeto – é uma conditio sine qua non da emergência de relações promissórias, mas não é essencial no decorrer da “vida” dessa relação. Neste sentido, os casos paradigmáticos da confusão como causa extintiva da obrigação serão sempre aplicados em casos de auto-promessas derivadas que, por definição, só se verificarão num momento posterior (t2) ao da constituição do elo obrigacional (t1):

(t1): (Pt) ⇎ (Pa1) [(P)(∃)] ∧ [(P)(e)]605;

(t1,5): transferência do crédito de (Pa1) para (Pa2); então, se

603 De acordo com o artigo 871.º/2 do CC, credores pignoratícios e titulares de direitos de usufruto sobre o crédito extinto verão os seus direitos subsistirem à eficácia da confusão.

604 Caso contrário seria possível, por exemplo, transferir o direito de crédito (confuso), o que seria totalmente antagónico com regime da extinção das obrigações.

605 Este é o exemplo de uma auto-promessa derivada. Por conseguinte, é pressuposto que em (t

1)

(t2): (Pt) ⇔ (Pa2); [(P)(∃)] ∧ [(P)( ¬e).]606

As auto-promessas derivadas são promessas quase-ficcionais porquanto embora assumindo uma estrutura subjetiva semelhante às auto-promessas originárias, resultam de uma operação legal autónoma ao modelo discursivo característico – neste caso, uma cessão de créditos607. Na medida em que a cessão

de créditos não exige, regra geral, consentimento do devedor608 (para nós,

promitente) para que opere, é possível arguir que, uma vez a promessa feita, as situações jurídicas a ela inerentes podem ser desligadas da força ilocutória contida na declaração promissória609. Entendo que esta posição é incorreta. Do ponto de

vista puramente promissório, qualquer alteração nas identidades subjetivas terá um de dois efeitos: (i) ou a promessa perdura sem objeto, nos termos supra referidos, (ii) ou ela se extingue, criando-se uma nova promessa com diferentes sujeitos. Este facto parece apontar para a natureza promissória de um acordo de cessão sobre (P), e assim será independentemente da exigibilidade de notificação ou aceitação por parte do devedor610. Na maioria dos ordenamentos jurídicos, a notificação ao

devedor ou a sua aceitação é uma condição de eficácia da cessão611 – não tem, pois,

natureza constitutiva. A isto acresce o facto de o acordo de cessão não

606 Em (t

2), (P) existe sem conteúdo.

607 O recurso ao exemplo da cessão de créditos tem subjacente uma razão específica. Os ordenamentos jurídicos de common law, durante muito tempo, tiveram uma certa relutância em aceitar a operação de assignment como válida aos olhos da lei (cfr. POLLOCK,MAITLAND, The

History of English Law, p. 226; CORBIN, On Contracts, pp. 783 e ss.) porquanto era difícil de

aceitar a ideia de se transferir algo tão intangível como um direito de crédito (TREITEL, The Law

of Contract, Cap. 15, §002). Atualmente, a operação de assignment – que, não inclui unicamente cessões de crédito, mas também algumas causas extintivas de obrigações como é o caso da novatio – tem sido considerada no âmbito da common law como válida e eficaz (especialmente desde o famoso caso Linden Gardens Trust Ltd. v. Lenesta Sludge Disposals Ltd. (1994) 1 AC 85); a

equity nunca gerou tal querela (TREITEL, The Law of Contract, Cap. 15, §§006 e ss.).

608 Salvo indicação legal ou convencional em contrário ou sempre que o crédito esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor (artigo 577.º/1 do CC).

609 O mesmo se poderá colocar, inversamente, quanto à assunção de dívida.

610 Não se confundam os efeitos da não aceitação do devedor quanto à cessão – condição de eficácia da cessão – com a proibição convencional da cessão – condição de validade da cessão. 611 Para desenvolvimentos, cfr. MENEZES LEITÃO,A cessão de créditos, pp. 359 e ss.

compreender qualquer ato prometido a ser praticado no futuro pelo promissário originário: o ato comunicativo não é um dever jurídico612.

Resta ainda analisar do ponto de vista da teoria da promessa a chamada

confusão imprópria que é a situação em que o credor (promissário) ou o devedor (promitente) assume a mesma identidade do garante pessoal. Nos termos do artigo 871.º/3 do CC, “se na mesma pessoa estiverem reunidas as qualidades de devedor e fiador, fica extinta a fiança, exceto se o credor nisso tiver interesse e na medida em que esse interesse se justifique”. Acompanho a doutrina e jurisprudência que interpreta extensivamente este preceito no sentido de incluir igualmente a identidade subjetiva das qualidades de credor e fiador613. Cumpre, então, analisar

ambas as situações. Antes de mais, é preciso relembrar que os negócios de garantia pessoal podem ter natureza promissória quando o seu objeto for obrigacional e, por conseguinte, a sua função eficiente, uma promessa614, que está sujeita a uma

condição de exigibilidade, se for acessória, ou incondicional, se for autónoma. Neste sentido, quando o promissário da obrigação principal é o promitente da obrigação garantida, a lei extingue o negócio de garantia, independentemente da acessoriedade ou autonomia615, de modo a evitar uma situação de confusão. Esta

solução é perfeitamente percetível e adequada às linhas estruturantes do direito privado. O mesmo efeito é indicado pela lei quando o promitente da obrigação principal corresponder ao promitente da obrigação garantida. Nesta segunda hipótese, a extinção do negócio funda-se na própria natureza dos negócios de garantia pessoal: é injustificável a vigência de uma promessa com função

612 MENEZES LEITÃO, Cessão de Créditos,pp.539e ss.; para o direito inglês,TREITEL, The Law

of Contract, Cap.15, §§020 e ss.; para o direito alemão, ver §§398 e ss. do BGB e PALANDT,

Kommentare, pp. 697 e ss.

613 Na doutrina, por exemplo, ALMEIDA COSTA, Obrigações, p. 1118; na jurisprudência STJ, proc. n.º 05A1247, de 07-06-2005 (FERNANDES MAGALHÃES).

614 FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, p. 559. Procurando estabelecer uma distinção entre promessa e garantia, HOGG, Promises and Contract Law, pp. 48 e ss.

615 Esta conclusão deriva da característica autonomia da garantia que não é necessariamente

abstrata. Se a garantia autónoma for munida de abstração negocial, a solução seria inversa àquela que foi acima proposta.

garantística se o seu promitente corresponde, em termos subjetivos, à pessoa do garantido.

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